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Eduardo Muylaert

Golpe só interessa a quem quer escapar de crimes e desmandos

Apoiadores não passam de massa de manobra em manifestações que preparam rupturas democráticas

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Eduardo Muylaert

Advogado criminal, foi juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) de 2002 a 2007

[RESUMO] O que vem depois de um golpe de Estado nunca é o esperado por seus apoiadores. Quem pretende ir às manifestações de 7 de setembro para defender a quebra da legalidade do país deve lembrar que é possível saber como um golpe começa, mas nunca como terminará.

Todo golpe de Estado acaba frustrando boa parte de seus apoiadores. O que vem depois nunca é o esperado. As manifestações que precedem ou preparam a insurreição acabam sendo uma triste encenação em que os empenhados atores, em geral, não passam de massa de manobra.

O último golpe vitorioso no Brasil, o de 1964, foi precedido, é bom lembrar, pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A gigantesca manifestação reuniu, no centro de São Paulo, uma multidão inconformada com os rumos preocupantes do governo de João Goulart.

As conclamações inflamadas de Goulart —e mais ainda as de Leonel Brizola— excitavam o povo em comícios como o da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Eram anunciadas reformas de base profundas e mudanças na Constituição. Havia, ao mesmo tempo, agitação de militares de baixa patente, em evidente quebra de hierarquia.

A reação não se fez esperar. Na Praça da Sé, marco zero da Pauliceia, não foi só a extrema direita a se manifestar. Estavam presentes a assim chamada elite, a igreja, a classe média urbana, empresários, donas de casa, profissionais liberais e sindicatos patronais. Cartazes e faixas atacavam o "comunismo”. O ato terminou numa missa “pela salvação da democracia”.

O regime democrático da Constituição de 1946, entretanto, estava com os dias contados. Se Goulart era uma ameaça, a fratura do regime veio do lado dos conservadores.

Os ingênuos entusiastas de 1964, que depois tiveram que fazer o mea-culpa, achavam que os militares iam botar a casa em ordem e, nas eleições seguintes, devolver o poder aos civis, seus aliados. Não foi, como se sabe, o que ocorreu.

Castello Branco, o primeiro presidente militar (1964-1967), manteve o Congresso funcionando e pretendia realizar as eleições presidenciais de 1965, o que acabou não acontecendo. Os sucessivos atos institucionais foram endurecendo o regime, e, aos poucos, quadros conservadores influentes, os apoiadores iniciais, foram rompendo com o regime militar. Vários foram depois cassados e até exilados.

Julgado moderado na Força, Castello foi substituído em 1967 por Costa e Silva (1967-1969), cujo governo foi marcado principalmente pelo AI-5, que inaugurou o período mais repressivo da ditadura. Nos chamados anos de chumbo, qualquer oposição era asfixiada, a imprensa censurada, a tortura e morte eram negadas, mas praticadas nos interrogatórios.

Médici governou (1969-1974) por decisão do Alto-Comando das Forças Armadas, após o AVC que derrubou Costa e Silva. A repressão ainda aumentou: nesse período Marighella e Lamarca foram mortos em emboscadas e a guerrilha do Araguaia foi implacavelmente exterminada.

A censura à imprensa também só fazia aumentar. “Brasil, ame-o ou deixe-o” era o lema de uma campanha ufanista sustentada por um reaquecimento da atividade econômica, à custa de enorme endividamento externo. Com a crise do petróleo de 1973, a debilidade da nossa economia se tornou evidente.

No governo Geisel (1974-1979), a crise econômica não foi superada. A oposição, inicialmente sufocada, avançou com expressivas vitórias eleitorais em 1974 e 1976. Setores radicais começaram a exorbitar, matando sob tortura civis como Vladimir Herzog (1975) e Manoel Fiel Filho (1976). Começaram fortes reivindicações por anistia e por uma nova constituinte.

Geisel, que anunciara um projeto de abertura lenta e gradual, acabou afastando os radicais do governo, revogando o AI-5,e conseguindo fazer de João Figueiredo seu sucessor.

No governo Figueiredo (1979-1985) veio a anistia, com a volta de muitos exilados. A ala radical dos órgãos de repressão tentou tumultuar a abertura com atos de terrorismo, como a bomba que visou a OAB e matou sua secretária, Lyda Monteiro da Silva (1980), e o frustrado ataque ao Riocentro (1981).

Um show, anunciado como “o maior acontecimento musical de todos os anos” comemorava o 1º de Maio. Uma das bombas que deveria ser colocada dentro do pavilhão e que poderia ter provocado uma carnificina explodiu no colo de um sargento do DOI-Codi, dentro do carro em que chegou, ainda na área de estacionamento.

Esses atentados visavam manter o clima de radicalização política, mas também pressionar governo e a sociedade a que garantissem impunidade pelos crimes e atrocidades cometidos na ditadura.

Fala-se de um acordo tácito: os militares não seriam punidos, mas deveriam parar com o terror. Por outro lado, garantia-se o prosseguimento do processo de abertura, com as eleições estaduais de 1982, em que foram eleitos importantes governadores da oposição (Franco Montoro em São Paulo, Tancredo Neves em Minas e Leonel Brizola no Rio).

O general Figueiredo só deixou a presidência em 1985, após a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. Doente, Tancredo não assumiu, morreu em seguida, deixando a Presidência ao vice José Sarney que, egresso da Arena, tentou fazer um governo de conciliação, no qual foram aprovadas as eleições diretas, o voto do analfabeto e eleita a Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a Constituição de 1988.

De lá para cá, são mais de 30 anos da nossa democracia cheia de altos e baixos, mas sempre com eleições nunca contestadas, a imprensa livre, e os três Poderes funcionando de modo independente.

De novo, estamos e uma situação difícil, com a economia em frangalhos, muito desemprego, o real desvalorizado, a inflação descontrolada, os juros elevados, o combustível nas alturas, a energia escassa, a alimentação cada vez mais cara e, principalmente, os salários em um nível que não assegura mais o consumo básico das famílias.

Isso tudo em quadro de grave crise sanitária, com um governo que nega a ciência, afronta as instituições e opta pelo espetáculo e pela provocação. A quem poderia interessar hoje um golpe? Não há sequer um inimigo, como em 1964.

A quebra da legalidade, concretamente, só pode servir a quem queira manter o poder a todo custo, desmantelar a separação de Poderes, fugir das eleições, acirrar conflitos e, especialmente, escapar da responsabilidade pelos desmandos e crimes cometidos.

Quem pretende ir às manifestações de 7 de setembro e acha que um golpe poderia ser bom para o país é bom que lembre o que já aconteceu e o que pode acontecer depois de um golpe. Sabe-se como começa, mas não onde vai parar. E nem quem vai arcar com as consequências.

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