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Zeca Camargo

Documentário necessário e preciso mostra explosão criativa do Velvet Underground

Dirigido pelo premiado cineasta Todd Haynes, filme está disponível na Apple TV +

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Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”

[resumo] Documentário necessário e preciso do cineasta Todd Haynes, exibido em Cannes e disponível na Apple TV +, mostra a ebulição criativa da Nova York transgressiva dos anos 1960, que moldou a formação da banda de vanguarda The Velvet Underground, uma das mais influentes da história do rock.

Como ser elegante, como ser brutal. Tão desafiadora quanto uma sofisticada fórmula matemática, essa definição do que era o som do Velvet Underground é anunciada por John Cale com uma simplicidade tão serena que você até se surpreende quando ele não grita: "Eureka!!".

Mas, claro, a famosa expressão de Arquimedes não teria espaço no novo documentário sobre a banda, também chamado "The Velvet Underground". Na história reconstruída pelo diretor Todd Haynes o retrato da Nova York de meados dos anos 1960 é tão detalhado e preciso que o surgimento de uma entidade como o Velvet Underground parece quase inevitável. E, ao mesmo tempo, improvável.

O documentário, que foi exibido no Festival de Cannes, em julho, fora de competição, está disponível na Apple TV +.

Andy Warhol e a banda Velvet Underground
Andy Warhol (o segundo a partir da esq.) e a banda Velvet Underground - Gerard Malanga/Reprodução

Abençoado por Andy Warhol no auge da sua trajetória artística, o universo de sons criado por John Cale, Lou Reed, Sterling Morrison e Maureen (Moe) Tucker era tão fora da curva que não teve inicialmente sucesso comercial algum.

Foi a história que consagrou a banda, sobretudo o álbum de estreia, o clássico "The Velvet Underground and Nico" (1967). E foi a persistência de Reed que fez de seu talento bruto uma referência para virtualmente todas as gerações de músicos posteriores.

Ainda assim, apesar de tanta importância, a banda não tinha ganhado até hoje um documentário à altura de sua relevância. Não deixa de ser curioso que esse desafio tenha sido abraçado por um diretor que começou sua carreira com um documentário "maldito" sobre a cantora Karen Carpenter —e saindo-se muito bem.

Haynes é conhecido por filmes artisticamente elaborados, como "Carol" (2015), indicado a seis Oscars, ou "Velvet Goldmine" (1998), que flertava com o cenário da música pós anos 1960, contando uma história ambientada no glam rock, com notas de David Bowie e Iggy Pop.

Mas seu primeiro trabalho foi "Superstar: The Karen Carpenter Story", uma produção super independente de 1987, que contava a saga da cantora dos Carpenters enfrentando sua anorexia.

Um dos filmes mais cultuados do final do século 20, ele está fora de circulação oficial desde de 1990, quando o irmão e parceiro musical de Karen, Richard, ganhou uma ação contra o uso das músicas da dupla no documentário. Já as imagens da cantora não foram um problema, uma vez que toda a história era contada com bonecas Barbie...

Vinte anos separam o primeiro disco do Velvet Underground e "Superstar", mas é possível conectar o espírito das duas eras. Guardadas as proporções, a Nova York de Reed e a Califórnia de Haynes têm bons paralelos no quesito "ebulição criativa".

É um processo orgânico e natural. Para que qualquer caldo cultural aconteça, é necessário que um grupo de pessoas talentosas e transgressoras se esbarre e comece a esboçar um movimento.

Cópia do primeiro LP da banda The Velvet Underground, autografado por Lou Reed (Foto – Dodô Azevedo – Acervo pessoal)
Cópia do primeiro LP da banda The Velvet Underground, autografado por Lou Reed - Dodô Azevedo – Acervo pessoal

Da Semana de 22, em São Paulo, à Nova York transgressiva dos anos 1970 —que colocou Patti Smith e Robert Mapplethorpe juntos—, da nouvelle vague à bossa nova, esses cenários artisticamente explosivos são ao mesmo tempo imprevisíveis e infalíveis.

Podemos lamentar, hoje, a falta de conjunções assim, justamente quando o mundo e as artes mais precisam de novas ideias. Mas, se não podemos prever epifanias futuras, o documentário de Haynes nos lembra que é preciso celebrar as do passado.

Como essa que juntou Cale e Reed em 1965 num certo apartamento na rua Ludlow, no Lower East Side nova-iorquino. A erudição do primeiro era a contrapartida que a erupção sonora do segundo precisava para dar corpo a não apenas um, mas a vários experimentalismos que surgiam na época.

Dessa química entre os dois nasceu o Velvet Underground. Morrison e Tucker apareceram quase que por acaso, algo que o documentário deixa bem claro: um encontro no metrô, uma vaga de baterista. E pronto: a história estava em movimento.

Faltava uma centelha: a cineasta experimental Barbara Rubin insistindo com Warhol para que ele visse o Velvet Underground tocando. Entusiasmado, foi ele quem deu o toque final naquela criação: uma certa atriz, modelo e cantora alemã chamada Nico.

Num dos depoimentos mais surpreendentes registrado por Haynes, a crítica americana de cinema Amy Taubin, que estava na órbita da Factory, o QG de Warhol na Union Square, confessa desconfortavelmente que a beleza podia ser algo discriminatório naquela ambiente.

Suas palavras são inseridas no segmento sobre a decisão de colocar Nico no projeto musical que Warhol tinha então abraçado, uma jogada talvez oportunista e tendenciosa, mas que se revelou fundamental.

Com sua beleza polar, Nico fez o Velvet Underground realmente explodir. Todas as músicas daquele lançamento eram poderosas demais para passar em branco, mas certamente a voz de Nico, nas faixas em que ela participou, fez toda a diferença.

Musa de filmes recentes, como um drama sobre seus últimos anos ("Nico, 1988"), ela ganha um espaço relativamente pequeno no filme de Haynes, mas não se pode reclamar do equilíbrio brilhante dos depoimentos que ele colheu.

Lou Reed marca presença apenas com áudios; aliás, como David Bowie, que faz apenas um comentário —como seria de se esperar, mais que pertinente. Do compositor alternativo La Monte Young ao diretor John Waters, cada presença no filme o recheia não exatamente de nostalgia, mas de um contexto que ajuda a entender a grandiosidade do Velvet Underground.

A presença excepcional, evidentemente, é John Cale, que graciosa e justificadamente domina a narrativa com seus testemunhos. É como se sua lucidez validasse aquelas histórias inacreditáveis, mesmo levando-se em consideração as peripécias lisérgicas da época.

A banda Velvet Underground com Nico (centro), em foto de Stephen Shore - Divulgação

Por exemplo, dá para acreditar que o primeiro show oficial da banda foi num lugar chamado Café Bizarre? Ou que o evento que ajudou a transformar as performances do Velvet Underground em peregrinações alucinógenas era conhecido como Exploding Plastic Inevitable, ou Plástico Explosivo Inevitável, numa tradução apressada?

Nessas noites, que aconteciam no mitológico bar Dom, filmes de Warhol projetados na parede; uma lista de convidados impecável na sua modernidade e o som hipnótico da banda catapultaram a imagem deles para uma espécie de culto.

E de lá eles saíram para a estrada, um caminho, como mostra Haynes, sem retorno. Fora de Nova York, o Velvet Underground provocava estranheza e até uma certa indiferença. Mas foi quando chegaram a Los Angeles que conheceram algo muito pior: profunda rejeição.

"Nada supera isso, a não ser o suicídio", escreveu uma certa artista iniciante chamada Cher numa das inúmeras críticas arrasadoras sobre a passagem deles pela Costa Oeste. A antipatia, como deixa claro Moe num dos melhores momentos do documentário, era mútua: "Aquela bobagem de paz e amor, odiávamos isso! Cai na real gente...".

Aquele bando vestindo roupas pretas era um contraste não só visual aos hippies ensolarados da Califórnia. A música também era drasticamente diferente, e o diretor demonstra isso de maneira cruel, quase nos fazendo ter vergonha de um dia ter gostado de "Monday Monday", do The Mamas and The Papas.

De volta a Nova York, nada era como antes. O Dom tinha fechado. Lou Reed demitiu Andy Warhol (sim, Lou Reed demitiu Andy Warhol). Nico partiu tão subitamente quanto chegou à banda. E o segundo disco do Velvet Underground, "White Light/White Heat" (1968), apareceu como uma besta desgovernada, com preciosidades escondidas em camadas e camadas de bile.

O músico Lou Reed em 1966, quando integrava o Velvet Underground - Reprodução

Novamente é Cale que dá o retrato mais preciso: Lou Reed estava incontrolável. Sua inspiração vinha ainda mais bruta e sem vocação para qualquer parceira.

A tão produtiva e rica associação com o maior artista dos anos 1960 também virou história. Dentre as preciosas e raras imagens regatadas por Haynes, vemos uma série de fotos de Warhol com Reed num sofá, numa intimidade adolescente —mesmo aquela em que nitidamente se vê Warhol com a mão na virilha de Reed.

Um registro de uma conexão que rapidamente se dissolveu. Aquela perfeição, como tantas no pop, não tinha nascido para durar.

E, no entanto, eles ainda gravariam mais três álbuns de estúdio. Reed seguiria sólido em carreira solo, vagando por lados ainda mais selvagens, ativo e genial até seu fim. Mais importante do que isso, o Velvet Underground seria eterno. Para sempre brutal e elegante.

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