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Antonio Risério

Não posso ser julgado pelo que não está em 'Sinhás Pretas', diz Risério

Autor rechaça acusações de que seu livro legitimaria a escravidão

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Antonio Risério

Poeta, romancista e antropólogo, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros", "Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária" e "As Sinhás Pretas da Bahia"

[resumo] Antropólogo refuta críticas de que seu livro "As Sinhás Pretas da Bahia" legitimaria o racismo e a escravidão. Ele argumenta que a experiência nacional brasileira não pode ser reduzida em termos maniqueístas —e que, entre senhores brancos e escravos pretos, circulava na Bahia uma população livre numerosa, formada, em sua maioria, por gente mestiça.

Um autor deve ser julgado por suas próprias palavras e não por palavras alheias – especialmente, em tempos de agressiva irresponsabilidade acadêmico-militante, como o que estamos atravessando.

Lembro isso porque deu pano pra manga um texto publicado aqui na Folha, a propósito do meu livro “As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, Suas Joias”.

Como ficou claro que os contendores não leram o livro e suas disputas tomaram caminhos variados, acabei me vendo no meio de uma confusão, na qual fica parecendo que eu disse coisas que não disse — e que jamais diria.

Os principais absurdos foram os seguintes. Escrevendo sobre negras escravistas que se cobriram de sedas e joias, eu pretenderia duas coisas: arrefecer um ânimo antirracista e, pior, legitimar a escravidão. Nem uma coisa, nem outra. Elas realmente se cobriam de joias e ostentavam sua própria escravaria. Não inventei essa história. E isso nada tem a ver com a luta contra o racismo.

A luta contra a opressão social, que é maior do que a luta contra o racismo, não deve privilegiar a cor da pele de ninguém – ou não teríamos como condenar a atual exploração do negro pelo negro em África ou o “Black Lives Matter”, com seu racismo antijudaico e seus acenos nazistas.

Quanto a legitimar a escravidão, por favor, a imbecilidade não tem o direito de ir tão longe. Mas quero esclarecer alguns pontos.

A primeira observação que faço no livro é: não há originalidade neste trabalho. O que fiz foi coletar as informações existentes sobre o assunto, levando em consideração o que merecia ser considerado, do estudo hoje clássico de Heloïsa Alberto Torres às recentes investigações de Lisa Earl Castillo, acendendo luzes novas sobre o candomblé.

Meu tema: a existência de pretas, mulatas e mestiças em geral, que, nos séculos 18 e 19, conseguiram ficar livres e ricas, deixando de ser escravas para se tornarem senhoras escravistas.

Mulheres que ingressaram na elite econômica negra do Brasil (se querem exemplos, tudo está documentado no livro; aqui, num artigo, só posso me referir a poucos casos) – algumas das quais se encontram na origem mesma do candomblé.

Mulheres que viveram numa África milenarmente escravocrata e que não deixaram de ser escravistas pelo fato de terem sido escravizadas. Fazia parte do jogo.

É claro que não foram apenas pretas que enricaram. Pretos, também. E casais. Um exemplo de cada.

Capa de 'As Sinhás Pretas da Bahia', de Antonio Risério
Capa de 'As Sinhás Pretas da Bahia', livro de Antonio Risério - Reprodução

Anna de São José da Trindade, que, além de escravos e imóveis, tinha uma coleção espetacular de joias de ouro e objetos de prata. Joaquim d’Almeida, ex-escravo do também ex-escravo Antonio Galinheiro, que se dedicou ao tráfico negreiro, chegando a ser dono de 36 escravos em Havana e 20 em Pernambuco, além dos que mantinha sob seu controle direto na Bahia. O casal nagô Antonio Xavier e Felicidade Friandes, donos de escravos, lojas, tavernas e dezessete imóveis, com o filho estudando filosofia e as filhas tocando um piano “playel” na sala de música da casa.

Todos integrantes de uma mesma rede social. Da elite socioeconômica negra. Mas meu foco incidiu sobre as mulheres, as sinhás pretas da Bahia. Até porque as pesquisas mostram que mulheres negras libertas e livres formavam então o contingente mais rico da população brasileira, depois dos homens brancos (mulheres brancas sem marido ficavam abaixo delas).

Abordo então a diferença de posturas de sinhás pretas e brancas diante do trabalho e do espaço urbano. O monopólio feminino do pequeno comércio — convergência de uma tradição lusitana, relativa a brancas pobres, e outra africana, como ainda hoje se vê na Nigéria. Sem ocultar o fato de que senhores e senhoras de cor negra jogavam pesado com sua escravaria igualmente preta.

Basta lembrar que escravos fugiam então não só de seus senhores brancos, como de seus senhores pretos. Como no caso dos escravos que fugiram do jugo do ex-escravo nagô Antonio Xavier (o que não quer dizer que inexistissem laços afetivos, como vemos em testamentos tanto de senhores brancos quanto de senhoras pretas, quando alegam motivos para alforriar seus escravos; há mesmo documentos que surpreendem, como o de uma ex-escrava que deixa bens para sua ex-senhora, em reconhecimento pela “boa criação” recebida).

Iyá Nassô cobrou um preço bem mais alto do que a média do mercado para alforriar sua escrava e filha de santo Marcelina Obatossí, que viria a ser a primeira ialorixá da Casa Branca, também enriquecida, com suas joias, casas e escravaria – e cobrando caríssimo por cartas de alforria para suas escravas.

Este aspecto da história do candomblé deve ser realçado. Além de Iyá Nassô e Marcelina Obatossí, também era proprietário de escravos o casal formado pelo jeje Francisco Nazareth (afilhado do também jeje Antonio Narciso Martins da Costa, mestre de navios negreiros) e a nagô Maria Júlia Conceição, que abriram o agora famoso terreiro do Gantois.

E não vamos nos esquecer do caso de Otampê Ojaró, da família real de Ketu, neta do rei Akebioru, capturada ainda criança e vendida à Bahia por traficantes negros do Daomé, e que aqui se tornou senhora escravista e criou o terreiro do Alaketu.

Ainda hoje nos terreiros, de resto, a relação mãe e filha de santo, inflexivelmente hierárquica, ecoa o modelo senhorial-escravista da relação da sinhá preta com suas iniciadas, nos séculos 18 e 19.

Era comum a figura da mulher chefe-de-família, a matrifocalidade reinando na Bahia e nas Antilhas, por exemplo. Mas não só. Duas coisas chamam também a atenção. A preferência das sinhás pretas por escravas (nunca por escravos) e a formação de famílias femininas, quando uma ex-escrava, em vez de se juntar a um homem, preferia viver numa família composta só de mulheres.

Razões econômicas prevaleciam aqui, do potencial reprodutivo das fêmeas à maior capacidade feminina de ascensão social através do comércio ou da prostituição, mas motivos sexuais não devem ser descartados.

O homossexualismo correu solto não apenas nos sobrados, entre sinhás brancas e mucamas pretas, como nos mostram historiadores como Emanuel Araújo e Ronaldo Vainfas, e talvez nas unidades residenciais exclusivamente femininas, mas também no candomblé, tema de vários estudos antropológicos, como os de Vivaldo da Costa Lima e Lorand Matory.

Outro ponto é que a tese de Florestan Fernandes, estabelecendo que os escravos foram entregues ao deus-dará e à miséria depois da abolição, pode começar a ser desconstruída desde aqui.

Primeiro, por se chocar com a notável e comprovada ascensão social de pretos e mulatos em nosso século 19, de Pedro II aos primeiros dias republicanos. Depois, pelo fato de que, no 13 de maio de 1888, escravos praticamente inexistiam no país. Terceiro, porque a ascensão social negromestiça se deu antes, durante e depois da abolição.

Quarto, no caso particular da Bahia, as informações indicam que não houve maior alteração na situação dos escravos pós-abolição. Os agora ex-escravos continuaram exercendo ofícios tradicionais, além de avançar em outras direções. A conjuntura não foi diversa no Rio de Janeiro. Mas ainda pretendo mapear novamente, a partir de Roger Bastide, a situação paulista.

No caso baiano, o 13 de Maio ficou longe de ser uma catástrofe. Nina Rodrigues, contemporâneo dos eventos, não fala de nenhum empobrecimento dos pretos no pós-abolição – diz, antes, que os negros, que se viram então livres do cativeiro, aderiram a meios tradicionais de ganho entre os pretos. Afirmação que é confirmada pela sociologia baiana do século 20, como vemos em estudos de Maria de Azevedo Brandão e Muniz Sodré.

Maria sublinha a forte participação de jejes e nagôs na formação de uma classe média negromestiça na Bahia. Muniz assinala que, no mesmo período, continuamos a ter uma expansão da estrutura de serviços urbanos e de pequenas manufaturas, beneficiando o processo ascensional dos pretos.

É essa elite negra que tem dinheiro para comprar terrenos, construir casas de culto, realizar os ritos, fazer oferendas. No contexto sociológico, o dito (que Vivaldo da Costa Lima atribui a uma mãe de santo) “sem folha, não há orixá”, merece a companhia de uma variante: “sem grana, nada de deuses”.

O historiador Manolo Florentino, no texto que escreveu para a apresentação do meu livro, observou: “...nossa estranha química social se resolve de fato quando levamos em conta os históricos padrões de ascensão social durante a etapa escravista, quando a alta frequência de alforrias redundava na enorme participação de ‘pessoas de cor’ que, enriquecidas como as sinhás pretas, levavam o negrume da base para o topo e, ali, reproduziam o status quo escravista”.

O escritor Antonio Risério durante uma mesa na Feira Literária de Paraty (FLIP), em 2015 - Zanone Fraissat - 02.jul.15/Folhapress

Nada de dualismo rígido, nenhum esquematismo. O que desejamos mostrar, com esses fatos e processos, é justamente isso. A sociedade escravista baiana não se dividia rigorosamente entre dois extremos polarizados: o dos senhores brancos e o dos escravos pretos. Entre tais extremos, circulava uma população livre numerosa, formada, em sua maioria, por uma gente mestiça.

As sinhás pretas eram exceções? Sim. Brancos ricos também. Se a massa negra era miserável, a massa branca era pobre também (sempre foi, de Thomé de Sousa aos dias de hoje). Mas ex-escravos escravistas e seus descendentes não formavam um contingente insignificante da população. Vejam o primeiro censo nacional, realizado em 1872. Salvador tinha então cerca de 130 mil habitantes: 69% de pretos e mestiços — destes, apenas 12% eram escravos.

Temos de lembrar isso porque a experiência nacional brasileira não pode ser reduzida, em termos grosseiramente maniqueístas, a um filme de bandido e mocinho, como se quer em nossa atual “era das desculpas”. Ou como quer a “história penitencial”, fábrica fraudulenta de novos estereótipos dos “oprimidos” — todos invariavelmente puros e angelicais —, sob a regência lucrativa dos que se renderam aos últimos modismos norte-americanos e às pressões violentas do fascismo identitário.

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