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Rubens Figueiredo

'Crime e Castigo' e 'O Idiota' expõem revolta de Dostoiévski contra ordem burguesa

Retórica emocional e defesa da irracionalidade tiveram função combativa na obra do escritor

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Rubens B. Figueiredo

Autor de romances como "Passageiro do Fim do Dia" (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e tradutor dos clássicos russos "Guerra e Paz" e "Anna Kariênina", de Tolstói, e "Crime e Castigo" e "O Jogador", de Dostoiévski

[RESUMO] Pressionado por dificuldades financeiras, Dostoiévski emendava um romance no outro, compensando falhas de estilo e composição com doses fartas de melodrama, violência e erotismo. Tal necessidade prática revelou depois seu caráter estilístico funcional, municiando o autor russo em sua defesa da irracionalidade contra a ordem liberal burguesa.

Durante quase toda a vida, Dostoiévski escreveu premido por necessidades financeiras urgentes, a exemplo de escritores mais ou menos seus contemporâneos, como Balzac e Camilo Castelo Branco, que morreram endividados com os fornecedores das velas que ambos usavam para escrever.

Como eles, Dostoiévski era obrigado a vender sua mão de obra para os proprietários de editoras e periódicos e, antes mesmo de concluir um livro, tinha de negociar outro, pois o dinheiro do pagamento já desaparecera entre seus dedos.

No caso da Rússia, em particular, a circunstância denota o impacto que a abrupta introdução das relações capitalistas produziu sobre a produção intelectual. É difícil deixar de perceber o preço que tais circunstâncias cobraram dos livros de Dostoiévski.

gravura de homens do campo
Xilogravura de Oswaldo Goeldi feita em 1945 ilustra a capa de 'Escritos da Casa Morta', livro com que a Editora 34 completa a publicação da obra completa de Dostoiévski - Divulgação

Não são um primor de estilo nem de composição, e o autor, consciente disso, se esforçou para compensar tal falta com a ajuda dos recursos que estavam imediatamente a seu alcance, e nos quais, de fato, ele se mostrou exímio: o patético, o melodrama, a violência, o erotismo.

Tratava-se de prender a atenção do leitor e conquistar suas emoções de forma imediata e irrefletida. A lógica, a coerência e os argumentos demandam tempo, elaboração. O efeito retórico, a oratória emocional, os apelos às sensações, aos recalques e aos dramas morais produzem efeitos instantâneos e profundos sobre o leitor e o dominam de um só golpe. Talvez não seja inoportuno apontar que há nisso algo de moderno ou mesmo de contemporâneo.

O interessante, porém, é que tal expediente artístico, de caráter acidental na origem, logo revelou sua necessidade funcional, no quadro dos conflitos históricos que, de forma crescente, ano a ano, pressionavam Dostoiévski e a intelligentsia do país.

Nos livros "Notas de Inverno sobre Impressões de Verão", "O Jogador", "Crime e Castigo", "Memórias do Subsolo" e "O Idiota", podemos observar o esforço de Dostoiévski para defender, com unhas e dentes, a irracionalidade —ou pelo menos para desmoralizar a autodeclarada e orgulhosa racionalidade das diretrizes da ordem burguesa.

Neste ponto, cabe sublinhar que, na visão liberal de Bentham, Mill, Adam Smith, Thomas Buckle (pensadores britânicos muito citados nos livros de Dostoiévski), o ser humano fará sempre escolhas racionais, que, embora visando em primeiro lugar o seu benefício individual, produzirão, no fim, a felicidade geral.

Esse otimismo é objeto da revolta do escritor russo, sobretudo por conta do entendimento de que, nele, se ocultam interesses nunca declarados. Além do mais, tal otimismo histórico, postulado em abstrato, equivalia a uma espécie de milenarismo religioso —e, portanto, uma heresia, aos olhos de um escritor que, cada vez mais, se aferrava aos dogmas do cristianismo da Igreja Ortodoxa.

Desse modo, a defesa da intuição, da emoção e da irracionalidade adquire, em Dostoiévski, uma função combativa em um conflito de forças históricas bem definidas.

Para avançar, a ordem burguesa, naquela sua primeira fase, precisava atacar a religião, a igreja e a monarquia absolutista. Civilizações tidas como atrasadas tinham de ser subjugadas à cultura do "livre comércio".

Pois bem: o homem que escreve as "Memórias do Subsolo" busca, no subterrâneo, o abrigo contra tal bombardeio. Ele extrai da dimensão irracional do ser humano sua munição e, assim, ao contestar a certeza de que "dois e dois são quatro", como ele tanto repisa, põe em dúvida o cálculo dos benefícios e lucros individuais. Ou seja, o cálculo utilitarista de Bentham e Mill (lembremos, a propósito, que Bentham almejava que a ética fosse uma "ciência exata como a matemática").

Daí a coerência, e também a oportunidade tática, do apego de Dostoiévski à Igreja Ortodoxa, à monarquia tsarista e ao nacionalismo russo —as três balizas, decerto ilusórias, com que ele pretendia erguer uma barreira contra ideias percebidas como invasoras. E sobretudo contra as formas sociais (e os interesses concretos) de que tais ideias eram, no fundo, meros veículos de momento.

Entretanto, após o desfecho das revoluções de 1848 na Europa e da Comuna de Paris, em 1871, a burguesia selou aliança com a igreja e a monarquia, já enfraquecidas, contra seus novos inimigos históricos: as massas trabalhadoras urbanas, em expansão.

Desse ângulo, também podemos entender os últimos livros de Dostoiévski, como "Os Demônios" ou "O Adolescente". Neles, o autor volta suas armas, quase exclusivamente, contra o até então (por volta dos anos 1870) incipiente movimento socialista russo.

Antes, tais ideias apareciam, em seus livros, como subprodutos, meio caricatos, do ideário burguês, derivações diluídas da ideologia do capitalismo. Nas obras finais, no entanto, passaram a ser pintadas como demônios —imagem do temido, mas também do desejado.

Portanto, será enriquecedor ter em mente a maneira como as opções artísticas patentes no percurso literário de Dostoiévski compreendem conteúdos históricos muito dinâmicos. Nem poderia ser diferente: a rápida evolução dos processos históricos tinha de pressionar a fundo o escritor russo. Não menos do que as contas dos vendedores de velas.

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