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Samuel Titan Jr

Dostoiévski e Flaubert implodiram o narrador tradicional e criaram o romance moderno

Nascidos há 200 anos, escritores mergulharam a literatura nos conflitos do século 19

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Samuel Titan Jr

Professor de literatura comparada na USP e tradutor, com Milton Hatoum, dos “Três Contos” de Flaubert (Editora 34)

[resumo] Nascidos há 200 anos, o russo Fiódor Dostoiévski e o francês Gustave Flaubert —a despeito de inúmeras diferenças na formação social e na relação com a literatura— ocupam um papel semelhante na história do romance moderno, tendo ambos promovido a implosão do narrador tradicional e contaminado a prosa de ficção com os discursos em circulação na esfera social.

Há vários modos, dos triviais aos mais interessantes, de celebrar e comparar Gustave Flaubert e Fiódor Dostoiévski no bicentenário de seus nascimentos. O russo completa 200 anos na próxima quinta-feira (11); o francês, em 12 de dezembro.

Para fins de culto dos heróis, dos autores clássicos, vem a calhar a coincidência das datas inaugurais, que quase se repete no final da vida, quando Dostoiévski, morto em 9 de fevereiro de 1881, não chega a sobreviver um ano inteiro a Flaubert (8 de maio de 1880). Nessa mesma linha, basta acrescentar Baudelaire, também de 1821, e a trinca está completa.

Pela porta oposta, o do prontuário médico, já houve quem quisesse explicar este ou aquele traço das obras pela epilepsia de um e de outro, com resultados sempre mornos.

Retrato do escritor Dostoievski, pelo pintor russo Vassily Perov
Retrato do escritor Dostoievski, pelo pintor russo Vasily Perov - Reprodução

É igualmente possível comparar os dois autores pela via dos contrastes. O francês veio de uma boa família burguesa de Rouen; solteirão que viveu da renda que lhe deixou o pai, tinha obsessão pela "palavra certeira", passava anos a escrever, rasurar e reescrever seus romances.

O russo, filho de pai alcoólatra, foi um plebeu moscovita que se viu degredado para a Sibéria; pressionado por seus credores, nem bem terminava um romance e já iniciava o seguinte, chegando a ditar "Um Jogador" à futura esposa para se salvar das próprias dívidas de jogo.

Essa mesma toada muitas vezes ressoa em outro diapasão, proveniente dos escritos críticos de Mikhail Bakhtin e mais próximo do coração formal das obras.

Temos então, de um lado do ringue, o narrador onisciente, soberano e impassível de Flaubert, que paira sobre as tribulações e expõe os disparates de seus personagens por força da fria precisão realista com que os anota e registra.

Do outro lado, está Dostoiévski, a alma sôfrega de salvação, que as costuras do gênero romanesco já não têm como conter e que destrona o narrador "monológico" para converter o romance em um teatro de vozes, em uma "polifonia" em que se fazem ouvir, mais ou menos em pé de igualdade, os fantasmas e os anseios de todos os personagens.

O escritor francês Gustave Flaubert [1821-1880] - Reprodução

Do lado flaubertiano, portanto, uma escrita cética e estoica —ou, beirando o paradoxo, uma escrita tácita, objeto da admiração de Kafka e Beckett—, que se mantém longe do âmbito em que desejos privados e paixões políticas se pronunciam e se perdem.

De outro, por fim, uma obra que explode as convenções do romance oitocentista para suscitar em seus leitores uma resposta que já não seja meramente da ordem do gosto estético —isto é, com alguma grosseria da minha parte, o Dostoiévski de Bakhtin, do jovem Lukács ou dos existencialistas franceses (que, a começar de Sartre, não tinham muita paciência com Flaubert).

Muito disso terá sua parcela de verdade. Eu gostaria, contudo, de sugerir que, apesar das discrepâncias de toda ordem, é possível detectar em suas obras uma zona de poderosa convergência, em que se joga o lugar de ambos na história do romance e da modernidade literária.

Para entrever essa zona de convergência, voltemos à data inicial; 1821 não é um ano qualquer: é também, e talvez mais que tudo, o ano da morte de Napoleão, no distante exílio na ilha de Santa Helena.

Entre muitas outras coisas, o fim do imperador é um marco simbólico, pois com ele se encerram décadas da grande narrativa épica, de pretensões unificadoras, que da Revolução Francesa a Waterloo e à sua morte no Atlântico Sul acompanhou a derrocada do Antigo Regime e as dores de nascimento das sociedades modernas na França e na Europa.

Encerrada, ou talvez concluída, a aventura napoleônica, o continente se vê às voltas com uma paisagem ideológica em que a secularização, o desencantamento e o dissenso serão cada vez mais a norma, em proporções e virulência variáveis de país para país ou de década para década.

É nesse cenário que nossos dois autores viverão seus anos de formação: Flaubert, sob o reinado do "rei burguês", Luís Filipe, e logo em seguida na voragem da Revolução de 1848; Dostoiévski, sob o regime autoritário que se seguiu à repressão da revolta decembrista de 1825 e, depois, em seus anos de colônia penal.

Nos dois casos, portanto, em meio a uma profusão insanável de discursos na esfera da política, das ideias, dos sentimentos, que já não parecem se estabilizar em torno de um centro único ou pelo menos hegemônico.

Essa "perda do centro" terá sido uma experiência decisiva para toda a geração a que ambos pertencem —não por acaso, Flaubert dirá que "A Educação Sentimental" (1869) nasceu de seu desejo de escrever "a história moral dos homens da minha geração".

Mas o crucial, do ponto de vista de suas obras, talvez tenha se dado quando os dois autores abriram de vez as comportas que separavam o tecido verbal da prosa de ficção e os muitos discursos em circulação na esfera social, deixando que esses penetrassem até o coração das obras.

Ou, para formulá-lo por outra via, o gesto narrativo decisivo talvez tenha consistido em forçar a escrita literária a se precipitar "no meio do redemunho" verbal da época, mesmo que sob o risco de se perder nele, de se tornar indistinto do monstro verbal de muitas cabeças que se almejava capturar.

Algo desse movimento, é claro, já está em curso desde que o romance é romance —digamos, para simplificar, desde o "Dom Quixote" cervantino ou na "Comédia Humana" em que Balzac se lançara à tarefa de escrever uma história do século 19 francês que, em seu ritmo, parecia querer competir com o próprio jornalismo. Nada disso diminui, porém, a radicalidade que Flaubert e Dostoiévski imprimiram a seus respectivos gestos.

Pois, afinal, é isso que está em pauta na invenção flaubertiana de um narrador "impassível": criar uma voz narrativa tão despida quanto possível dos meneios retóricos de um Balzac, de um Victor Hugo, tão distante quanto possível de sua tradicional figura de autoridade que tudo sabe, aquilata e julga —torná-lo, no limite, um instrumento de precisão, capaz de fixar certa imagem do real para um leitor que, doravante, deverá interpretá-la e julgá-la por seus próprios meios.

Mais ainda: a invenção desse narrador impassível vai de mãos dadas com uma extraordinária explosão da narrativa perspectivística e do discurso indireto livre nos romances flaubertianos.

Em Flaubert, fixar uma imagem do real passa por fixar os modos como os personagens o experimentam e o formulam; leia-se: cristalizar por meio da prosa de ficção os modos múltiplos, disparatados e sobretudo irredutíveis de experiência do real que se entrechocam sem fim tanto na Yonville de "Madame Bovary" (1857) como na Paris da "Educação Sentimental" ou na Chavignolles de "Bouvard e Pécuchet" (1881, publicado postumamente).

O resultado é caleidoscópico e desnorteante: a estupidez e a brutalidade da história contemporânea (a famosa "bêtise") vicejam sem pejo, mal e mal contidas pela prosa encarregada de capturá-las.

Foi o que notou, já em 1857, o procurador encarregado de processar o autor de "Madame Bovary" por blasfêmia e pornografia: Ernest Pinard, que de tolo não tinha nada, observou que o perigo não morava nesta ou naquela cena, mas na ausência em todo o texto do romance de alguma figura de autoridade (personagem ou narrador) capaz de fazer Emma baixar a cabeça e, assim, prover o leitor de um norte virtuoso.

Em "Bouvard e Pécuchet", o grande projeto narrativo que o autor não chegou a concluir, esse efeito chegará à sua intensidade extrema. O próprio Flaubert formulou sua ambição de escrever uma obra em que o leitor, desprovido de pontos de apoio, já não teria como saber "se estão ou não estão zombando dele".

Todavia, não é menos verdade que, nesse romance que devia ser uma "enciclopédia da estupidez humana", a "bêtise" (compulsada, anotada, citada "ipsis litteris") ameaça, como a cabeça de Medusa, paralisar todo olhar que se volte para ela —inclusive o do narrador, cuja escrita vai se tornando mais e mais indistinguível daquilo que supostamente era seu objeto.

Como se adivinha, estamos a léguas de qualquer narrativa "monológica" e, portanto, pré-moderna, como já tantas vezes se pretendeu a propósito de Flaubert. Estamos, sobretudo, muito perto de um efeito comparável de descentramento e de implosão da voz narrativa central, ao qual Dostoiévski chega por seus próprios meios e caminhos.

Caminhos que começam pelas imagens cômicas e grotescas de esfacelamento do eu em "O Duplo" (1846), passam pelo devaneio romântico revisitado em feição cruel e paroxística cruel em "Memórias do Subsolo" (1864) e conduzem aos grandes romances, de "Crime e Castigo" (1866) a "Os Irmãos Karamázov" (1880).

Neste último, Dostoiévski chega a alturas e a abismos em tudo comparáveis aos que Flaubert atinge na "Educação Sentimental", mas em um tom que é inconfundivelmente seu.

No romance do autor francês, o desencontro e a dispersão ditam as regras e ganham tais proporções que, já muito avançado na redação, Flaubert exclamava, à beira do desespero, que nada parecia se encaixar e formar um desenho discernível ("ça ne fait pas la pyramide !").

No romance do russo, o desencontro vira conflito desabrido, incontornável e concentrado —inclusive literalmente, nas muitas cenas em que, encerrados em cômodos sufocantes, os personagens enfrentam-se em rinhas verbais sem apaziguamento à vista.

Para piorar as coisas e esquentar o romance, esse conflito se dá na ausência de árbitro. Convertido progressivamente em caixa de ressonância das vozes dos personagens, o narrador dispõe cada vez menos de um lugar retórico e moral de onde extrair sentido do redemoinho verbal em que tudo se precipita, levando de roldão as fronteiras convencionais entre o sentimental e o político, o religioso e o literário.

Daí a necessidade, com raízes tanto da fé pessoal do autor como nessa fratura narrativa de seus livros, que Dostoiévski tantas vezes sente de incluir, "in extremis", figuras e personagens dotados de um halo de pureza e redenção.

Pertencem a essa família algumas das grandes personagens femininas de Dostoiévski (como a Sônia de "Crime e Castigo") ou Aliosha Karamázov ou ainda as crianças das últimas páginas de "Os Irmãos Karamázov".

São personagens poderosas, mas são igualmente personagens que volta e meia entram em cena na condição de vítimas sacrificiais, a fim de lançar uma nova luz sobre o conflito em curso, sem contudo serem capazes de detê-lo ou resolvê-lo.

São também, por vezes, personagens que o autor dotará de feições extremadas ou paradoxais, sob o risco de empurrá-los para a incômoda vizinhança dos "demônios" à solta no mundo e nas páginas de Dostoiévski.

Como se, afinal de contas, o próprio autor soubesse que estão todos eles —seus personagens russos e seus "primos" franceses— às voltas com esse mesmo mundo desorbitado do qual nenhum de nós consegue mais escapar, com esse terreno movediço da história contemporânea, perigoso e promissor, para o qual Flaubert e Dostoiévski empurraram o romance moderno e de onde ele já não terá como sair.

OS PAIS DO ROMANCE MODERNO

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI

Vida
Nasceu em Moscou (Rússia), em 11 de novembro de 1821. Acusado de participar de uma conspiração contra o czar russo Nicolau 1º, é preso e condenado à morte por fuzilamento. A pena, contudo, é revertida na última hora para trabalhos forçados na Sibéria. Morre em São Petersburgo, em 9 de fevereiro de 1881, aos 59 anos

Principais livros
"Memórias do Subsolo" (1864), "Crime e Castigo" (1866), "Os Irmãos Karamázov" (1880)

GUSTAVE FLAUBERT

Vida
Nasceu em Rouen, na França, em 12 de dezembro de 1821. Vive da herança paterna, dedicando-se exclusivamente à literatura. Morreu também em Rouen, em 8 de maio de 1880, aos 58 anos

Principais livros
"Madame Bovary" (1857), "A Educação Sentimental" (1869), "Bouvard e Pécuchet" (1881, póstumo)

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