Descrição de chapéu
Sérgio Rodrigues

Patrulha linguística é a pior inimiga de sua própria causa ao embarcar em fake news

Lista de 'expressões racistas' sem fundamento dá munição ao reacionarismo linguístico

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Sérgio Rodrigues

Colunista da Folha

[resumo] Lista de expressões tidas como racistas, publicada pela agência de checagem Lupa no Dia da Consciência Negra, virou alvo de críticas por apresentar erros e teses sem comprovação sobre as origens da locução "nas coxas" e da palavra "doméstica", por exemplo. Episódio ilustra como o policiamento da linguagem, julgando-se moralmente superior, muitas vezes dispensa a exatidão histórica, o que acaba por macular o salutar debate acerca de termos como "mulato".

No último sábado (20), Dia da Consciência Negra, a agência Lupa malbaratou uma parte da boa reputação que vem angariando como checadora de informações em nosso tempo assolado por notícias falsificadas, mais conhecidas como fake news.

Sob a curiosa rubrica "Dicionário da Desinformação", publicou aquilo que seria uma lista de sete expressões racistas. A conclusão era categórica e triunfal: "Já pode riscar essas expressões de seu vocabulário".

ilustração ilustríssima
Ilustração de Thallytha Medeyros - Silvis

A lista era basicamente lero-lero, com lastro linguístico escasso. Ia do carente de comprovação ao claramente fajuto, passando pelo forçado, com umas poucas verdades na mistura —como já veremos.
Nada diferente do que circula há anos no ambiente virtual, impulsionado pela militância antirracista e pela relativa inocência linguística da maior parte do público. A novidade, bastante significativa, foi uma agência de checagem se sentir desobrigada de... checar.

Só três dias depois, diante da quase unânime reação contrária no Twitter, a Lupa retirou os posts do ar e tratou de ouvir historiadores e professores de português. Mesmo com diferentes níveis de rigor entre os entrevistados, não sobrou muita coisa de pé da lista original.

Mas a versão corrigida foi publicada sem assumir o erro inicial, e na sexta (26) a agência fez um mea-culpa explícito: "Essa publicação tinha erros; falhamos ao demorar a corrigi-los e ao não publicar de modo transparente que havíamos errado".

Louve-se a correção, ainda que tardia. Para os propósitos deste artigo, interessa mais a mecânica do erro, que dá nitidez a um ponto de vista difuso cada vez mais disseminado na paisagem: o de que devemos policiar implacavelmente a linguagem para purgá-la de impurezas morais acumuladas ao longo de séculos, mesmo que, eis o xis da questão, seja preciso embaralhar ficção e realidade, inventando as impurezas e dispensando o acusador do ônus da prova.

Afinal, se o racismo é estrutural —e é—, supõe-se que os fins justifiquem os meios, pois a linguagem estaria contaminada como um todo e, de resto, basta uma vítima se declarar ofendida para ter razão.
Trata-se de uma visão de mundo neopuritana e paranoica que tem como corolário um excludente de ilicitude ético: sendo evidente sua superioridade moral, a causa se situa acima do plano comezinho em que se enfrentam verdades e mentiras, dispensando até uma renomada agência de checagem de fazer seu trabalho.

E nem teria sido tão trabalhoso. A tese de que a locução adverbial "nas coxas" (de forma descuidada) se relaciona com telhas "moldadas nas coxas de escravizadas e escravizados", lenda de grande circulação, é facilmente desmentível por uma fartura de argumentos: o anatômico (só gigantes teriam coxas do tamanho das telhas coloniais brasileiras), o funcional (telhas moldadas assim teriam tamanhos e formas tão variados que inviabilizariam um telhado decente) e o econômico (por que ter produtividade tão baixa se era fácil providenciar moldes de madeira?).

É provável que a expressão se refira ao ato sexual sem penetração, embora não se deva descartar a possibilidade de aludir a qualquer pessoa que use as próprias coxas, em vez de mesa ou bancada, como apoio para um trabalho apressado, como sugere a expressão sinônima "em cima da perna".
Se telhas feitas nas coxas têm o elemento pitoresco típico da etimologia romântica, o mesmo não ocorre com a afirmação de que palavra "doméstica" (adjetivo relativo ao lar, à casa) derivou de "domesticada", uma vez que "os negros eram vistos como animais". Nesse caso a falsidade vem em estado puro, sem a atenuante da graça.

Também não há evidência de que o nome do móvel conhecido como "criado-mudo" tenha origem em "um dos papéis desempenhados pelos escravizados dentro da casa dos senhores brancos: o de segurar as coisas para seus ‘donos’".

Criado-mudo, tudo indica, é uma palavra importada do inglês "dumbwaiter", que tem o mesmo sentido histórico de móvel de apoio numa sala de jantar. Para explicar o batismo curioso basta uma razão metafórica e lúdica, baseada no fato de que mesas, ao contrário de mordomos, não falam. Simples demais?

No caso da origem de palavras e expressões, o rebuscamento costuma ser mau sinal. Outra tese favorecida pela etimologia romântica que carece de evidências históricas é a de que "meia-tigela" nasceu de uma punição —meia porção de comida— aplicada a trabalhadores escravizados que não atingissem suas metas.

Mais provável é sua filiação a toda uma família de expressões populares cômicas que indicam precariedade ou qualidade inferior, como "meia-sola", "meia pataca", "meia-boca" e "meia-bomba".

Apenas três verbetes do "Dicionário da Desinformação" escapam de serem riscados como fake news ou encarados com sérias reservas. Dois são um tanto óbvios: "macumbeiro" e "chuta que é macumba" têm mesmo carga pejorativa, enquanto a expressão "não sou das tuas negas", remetendo ou não à escravidão, é flagrantemente grosseira e ofensiva. Mas só o terceiro caso, o mais interessante de todos, justifica uma análise mais detida.

Tudo indica que a palavra "mulato" tem berço racista. Embora haja quem defenda uma origem no árabe, a maioria dos etimologistas afirma que ela foi importada do espanhol e trata como fato incontroverso seu parentesco com mula e mulo, ou seja, burro —animal que é o produto estéril, nas palavras do dicionário Houaiss, do "cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento".

Mais do que desumanização, o que parece ter presidido essa associação é a ideia de hibridismo. Seja como for, é impossível separar a palavra do ambiente escravocrata em que ela nasceu há meio milênio.

A trama se adensa —mas isso o "Dicionário da Desinformação" não disse— quando levamos em conta que a palavra se revestiu ao longo da história de sentidos variados, alguns deles positivos.

Na exaltação da mestiçagem como uma originalidade cultural brasileira, que é parente mas não se confunde com o mito da "democracia racial", Martinho da Vila cantou nos anos 1970 um refrão festivo:

"Salve a mulatada brasileira!". Nada de surpreendente nisso: longe de serem reféns da etimologia, palavras mudam o tempo todo. "Brasileiro" já foi um termo depreciativo.

Naturalmente, a mudança por que passam as palavras não tem mão única. Depois de um processo em que foi em parte se descriminalizando, nos últimos anos o termo mulato tem sido obrigado por setores do movimento negro a carregar novamente o peso de seu pecado original e de suas contradições históricas, numa campanha até certo ponto bem-sucedida que espelha um deslocamento profundo no modo de compreender a negritude e a mestiçagem.

É isso que torna seu caso o mais interessante —e subaproveitado— da malfadada lista: aqui temos um debate de grande atualidade sobre o papel da problematização de palavras como auxiliar no combate a mazelas sociais.

O caso de mulato tem certa semelhança com o do verbo "judiar" (maltratar, ou seja, tratar como se imagina que os judeus mereçam ser tratados ou como trataram Cristo), entulho lexical de inspiração antissemita. O fato de que a maioria dos falantes emprega a palavra sem a consciência da conotação vil não tira o mérito do trabalho de denunciá-la.

Uma vez exposto a esse conhecimento, décadas atrás, aposentei a judiação para sempre —e nunca me senti censurado por isso. Entendo quem se incomoda com todo tipo de patrulhismo, inseparável da ideia de repressão: se a língua pertence a todos os falantes, qualquer um que se meta a policiá-la terá sempre um quê de miliciano. Mesmo assim, negar que a linguagem seja um palco legítimo de lutas políticas revela desconhecimento sobre sua natureza.

Como diz o linguista americano John McWhorter, "a linguagem não molda o pensamento tanto quanto se costuma supor, mas as palavras podem empurrar as ideias em certas direções".

Ele dá como exemplo positivo a substituição cada vez mais comum de "escravo", palavra que pode ser lida como indicativa de uma condição essencial, por "escravizado", termo que é claramente contingente.

Eu acrescentaria que mudanças desse tipo só são efetivas de verdade quando adotadas por cada falante como fruto de reflexão e não por imposição, como expansão do conhecimento e não por censura.

Se condenar como autoritária toda problematização de palavras é uma forma de reacionarismo linguístico, convém reconhecer que as patrulhas vocabulares são frequentemente as piores inimigas de sua própria causa ao embarcar em fake news.

Quando se diz que o verbo "esclarecer" tem fundo racista, devendo ser substituído por "escurecer", uma importante fronteira de ridículo é cruzada. Pode-se gostar ou não da campanha pela criminalização de "mulato", mas ela tem como fundamento informação histórica, não um arroubo lírico.

Listas como a que a agência Lupa inadvertidamente chancelou dão munição a quem gostaria de desacreditar em bloco os debates sobre o tema.

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