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Fred Coelho

Como Oiticica e Torquato Neto viveram a Londres dos Beatles nos tempos de 'Get Back'

O artista plástico e o poeta embarcaram para a Inglaterra no final de 1968 e relataram opiniões e histórias ligadas aos Beatles

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Fred Coelho

Escritor, pesquisador e professor do Departamento de Letras da PUC-Rio. Autor, entre outros livros, de ‘Livro ou Livro-me: Os Escritos Babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978)’ e ‘Eu, Brasileiro, Confesso Minha Culpa e Meu Pecado: Cultura Marginal no Brasil nas Décadas de 1960 e 1970’

[resumo] O artista Hélio Oiticica e o poeta Torquato Neto embarcaram para a Inglaterra no final de 1968 e relataram em cartas opiniões e histórias ligadas aos Beatles nos tempos de ‘Get Back’. Oiticica contou a Lygia Clark ter ido a uma festa em que John Lennon e Yoko Ono apresentaram gravações inéditas, e que recebeu elogios por sua mostra na galeria Whitechapel.

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São infinitos os impactos e as camadas de "Get Back". A série sobre os Beatles dirigida por Peter Jackson permite que a cultura de uma época seja visitada por meio das quase nove horas e três episódios que retratam a saga de ensaios, produção e gravação de um disco, um show e a elaboração de um segundo álbum em 22 dias do mês de janeiro de 1969 (de 2 até 30, com alguns dias de folga entre rusgas da banda, descansos de fim de semana, mudança de estúdio e ajustes nos equipamentos de "Abbey Road").

As imagens impecáveis retiradas das 60 horas de filmagens feitas à época revolucionam nossa relação com a maior banda de rock de todos os tempos porque, pela primeira vez, podemos ver intimamente o que parecia impossível: o artesanato das canções que marcaram vidas e se transformaram em parte da imaginação pública mundial.

Podemos vê-las começar do zero, a partir de pequenos murmúrios, de melodias soltas, de letras incompletas, de improvisos, de jam sessions, de debates e desafios (como esquecer Lennon e McCartney tentando fazer a letra de "Get Back" em busca do melhor verso?).

Hélio Oiticica no interior de galeria de arte em Londres
Hélio Oiticica na montagem de sua exposição na galeria Whitechapel, em Londres, inaugurada em fevereiro de 1969 - Projeto Hélio Oiticica/Divulgação

Para quem ama música e artes em geral, o filme é, definitivamente, a prova de que os dois discos imensos que saem daqueles dias ("Let It Be" e boa parte de "Abbey Road") são fruto de trabalho, tensões e, principalmente, amor.

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No ano de gravação de "Get Back", havia artistas brasileiros "vivendo juntos" com os Beatles em Londres. Esta é uma breve história de alguns deles, em especial de Hélio Oiticica e Torquato Neto.

Era 9 de dezembro de 1968 quando o artista e o poeta embarcaram em um navio cargueiro no porto do Rio de Janeiro em direção a Londres. A tão esperada exposição de Oiticica na galeria Whitechapel estrearia em fevereiro do ano seguinte.

Ambos saíram do Brasil quatro dias antes da publicação do AI-5. Duas semanas depois do fatídico decreto ditatorial, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em São Paulo e, após longo período de detenção e de isolamento, conseguiram ir para a Europa, passando por Lisboa e Paris antes de finalmente chegarem a Londres.

Se Oiticica e Torquato tinham ido para o mundo visando ampliar horizontes, a dupla de compositores baianos fora expulsa de seu país e obrigada a se adaptar a uma realidade totalmente diferente.

É notório o impacto que a obra dos Beatles, principalmente após 1965, causou nos trabalhos dos compositores tropicalistas. Ao chegarem a Londres, em outubro de 1969, encontraram o recém-lançado "Abbey Road" (setembro) e, no ano seguinte, a versão de Phil Spector para "Let It Be", disco que impactou Caetano Veloso ao compor em 1971 "It’s a Long Way" (em que faz referência explícita à "The Long and Winding Road"). Só que tudo isso ocorre depois das filmagens de "Get Back".

Durante janeiro de 1969, era a dupla Oiticica e Torquato que se encontrava na mesma cidade em que o diretor Michael Lindsay-Hogg tentava viabilizar ideias mirabolantes para tentar que os quatro músicos que se viam —e ouviam— em impasses pessoais e profissionais fizessem novamente algo aparentemente impossível: tocarem juntos ao vivo.

A banda vinha de uma experiência de dissolução criativa no disco "White Álbum" e buscava se reconectar como roqueiros, compondo canções olho no olho. O público, em sua maior parte, sabia por meio de tabloides e fofocas que algumas rusgas estavam acontecendo (até mesmo a revista Manchete, no Brasil, noticiava uma suposta briga física entre Lennon e Harrison), mas ainda parecia que o final do grupo não era possível. Vemos em "Get Back" Paul McCartney lendo um texto desses jornais e dizendo que nenhum deles seria capaz de sobreviver em carreira solo.

Aos 24 anos, Torquato Neto chegava a Londres em uma das suas mais dramáticas transições pessoais e profissionais. Casado com Ana Araújo, tinha perdido seu posto de letrista com Gil e Caetano e buscava um novo espaço profissional que, nos anos seguintes, abarcaria também o jornalismo cultural e o cinema. Um dos trabalhos que ele fazia para sobreviver em Londres era, justamente, tentar entrevistas.

Em cartas enviadas para o seu cunhado Helinho (Hélio Silva), Torquato mostra como os Beatles eram uma espécie de termômetro da cidade e de seus interesses (as cartas estão publicadas na biografia "Pra Mim Chega", de Toninho Vaz).

Em uma das tentativas de fazer um dinheiro, ele teria cogitado uma entrevista com John Lennon para a revista Realidade e uma aproximação com o músico por meio de amigos de Oiticica. Imbuído desse objetivo, comprou na livraria Indica o então polêmico disco "Two Virgins", de Lennon e Yoko Ono.

Torquato também estava atento ao que vinha ocorrendo na cena musical da cidade, o que envolvia, de alguma forma, os acontecimentos que se desenrolavam entre os estúdios em Twickenham e a Apple.
Em outra carta para Helinho, datada de 21 de abril, ele desdenha do lançamento do compacto de "Get Back / Don’t Let me Down", dizendo que "anteontem saiu um compacto novo dos Beatles, que me entristeceu dos pés à cabeça porque é ruim como qualquer rock mixuruca".

Do ponto de vista de quem assiste à feitura dessas canções a partir do documentário atual, é quase impossível entender o que um jovem antenado como Torquato esperava do trabalho de uma banda que tentava justamente retomar a verve cotidiana de um grupo de rock que grava um disco praticamente ao vivo, sem "overdubs".

De fato, Torquato estava ligado naquele momento em outro músico fundamental dessa geração que, ao contrário de Lennon ou McCartney, ele conheceu pessoalmente. Era ainda o primeiro semestre de 1969 quando teve acesso a uma tarde com ninguém menos que Jimi Hendrix. Entre baseados de haxixe e menos de uma hora na mesma sala, a conversa de que Torquato participa tem como trilha sonora o álbum branco dos Beatles.

Torquato Neto veste um parangolé na mostra de Hélio Oiticica em Londres  - Reprodução

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Em Londres, os caminhos de Oiticica e dos Beatles estavam correndo muito próximos —ao menos do ponto de vista do artista brasileiro. Vemos, nas diversas cartas que ele escreveu para amigos e a família, durante 1969, o quanto a presença da banda ainda em atividade irradiava certo frisson em brasileiros como ele e Torquato.

Sua ida para a cidade inglesa era resultado de um processo de internacionalização do seu trabalho, que se iniciara ainda em 1965, por meio da galeria Signals, então conduzida por Paul Keeler e um grupo de artistas e curadores que se reuniam ao redor de um boletim editado por eles.

Além de Keeler, que já tinha exibido trabalhos dos brasileiros Sérgio Camargo e Lygia Clark, o crítico Guy Brett e David Medalla, o líder do grupo experimental Exploding Galaxy, eram entusiastas da obra de Oiticica.

Após convidá-lo para uma exposição individual em 1966, a galeria acaba encerrando os seus trabalhos. O problema é que diversas obras já tinham sido enviadas do Brasil, e foi Brett quem as guardou em sua casa e lutou para que a mostra ocorresse, dessa vez na prestigiada galeria Whitechapel.

O projeto, porém, só foi realmente viabilizado em fevereiro de 1969. Nessa longa espera, Oiticica produziu "Éden" ou "​Whitechapel Experiment", como chamou sua exposição. Com dezenas de obras criadas nos cinco anos anteriores —dos bólides aos penetráveis, como "Tropicália", passando pelos parangolés, ninhos e outros trabalhos—, a mostra teve boa repercussão no meio de arte londrino.

Os principais jornais e revistas da cidade deram algum destaque para a experiência que encheu a galeria com areia de praia e propôs uma série de situações suprassensoriais então no cerne do pensamento estético do artista.

É sabido que os Beatles, principalmente por meio de Paul McCartney e John Lennon, estavam nesse período muito próximos do meio artístico da cidade. Em "Get Back", vemos rapidamente em um dos episódios a presença de Robert Fraser (ou Groovy Bob), um dos principais negociadores de arte da Inglaterra naquele período.

Sua galeria na rua Duke foi um point fundamental na vida cultural dos artistas e músicos londrinos. Foi Fraser quem colaborou com a feitura da capa de "Sgt. Pepper’s" e intermediou a participação de Richard Hamilton na capa do "White Album".

Por fim, em mais um nó dele com os Beatles, foi Fraser quem patrocinou (com o apoio de um entusiasta McCartney) "Unfinished Paintings", a exposição de Yoko Ono na galeria Indica em 1966, dirigida então por Barry Miles e John Dunbar.

Essa presença de pessoas como Fraser e de outros artistas na convivência com os Beatles permite que especulemos se eles leram algo sobre a exposição de Oiticica na Whitechapel. Afinal, uma das cenas mais recorrentes em "Get Back" são as leituras coletivas dos jornais ingleses.

Aliás, é impressionante perceber pelos diálogos da série como a banda era ligada em tudo o que ocorria na cultura pop ao seu redor, fossem shows, programas de TV, discos de outros grupos ou notícias da atualidade. Pode não ser absurdo eles terem visto matérias publicadas sobre Oiticica em jornais e revistas como Financial Times, International Magazine, Arts and Artists, Telegraph ou Daily Mirror.

Independentemente de os Beatles saberem ou não que um brasileiro chamado Hélio Oiticica estava montando uma exposição no mínimo incomum enquanto eles atravessavam as contendas e epifanias da gravação de "Let It Be", o fato é que o artista buscou estar próximo do casal que atraía obviamente sua atenção —isto é, John Lennon e, principalmente, Yoko Ono.

Em uma carta escrita para sua amiga Lygia Clark em 20 de junho daquele ano, Oiticica conta: "Esta semana estive numa festinha para lançamento em primeira mão (ouvi o disco ainda no acetato) do novo disco dos Beatles; era na casa do Fawcett, assistente do John Lennon, muito simpático, e fiquei surpreso que todos me conheciam da exposição; Lennon e Yoko vieram, maravilhosos".

Anthony Paul Fawcett foi assistente de Lennon entre 1968 e 1970, exatamente durante o período de "Get Back". Ele apareceu na vida do Beatle por ter sido assistente justamente de Robert Fraser em 1966. Ou seja, era a pessoa que estava próxima de toda a relação entre Lennon e Yoko a partir da exposição na Indica.

Outro fato incrível e controverso do trecho era que Oiticica ouvia com exclusividade ("ainda no acetato") um "novo disco" da banda.

O curioso é que, nesse momento, nem "Abbey Road" tinha sido terminado —de fato estavam em pleno processo de gravação do disco nos estúdios da EMI— e nem "Let It Be" estava pronto. Qual seria, então, o acetato a que Oiticica se refere?

Segundo sites de discografia da banda, o único lançamento possível desse momento seria o compacto duplo que trazia do lado A "The Ballad of John and Yoko" e no lado B, "Old Brown Shoe", de George Harrison. Duas canções espremidas entre o show na Apple em 30 de janeiro e o início dos trabalhos —e das rupturas definitivas— a partir de maio, com as gravações de "Abbey Road".

Além da surpresa legítima de Oiticica em ser um artista conhecido nesse evento tão privado e exclusivo (sem sabermos se John e Yoko estavam entre os que o conheciam de sua exposição), o mais impressionante da carta é quando ele diz que Fawcett achou sua exposição "o hit do ano" e que eles teriam conversas futuras de trabalhos —com, pasmem, a especulação de que ele poderia vir a fazer "quem sabe se a capa de Beatles para disco, ou outra coisa".

O poeta e jornalista Torquato Neto faz o papel de vampiro no filme "Nosferatu no Brasil", 1971, de Ivan Cardoso - Reprodução

Como podemos ver, não era pouca a ambição de Oiticica sobre sua presença em tal ambiente. Ele era mais velho que todos da banda, se via naquele momento como um artista entre a marginalidade terceiro-mundista e a ascensão internacional e se sentia à vontade no meio contracultural que circundava o casal mais famoso do mundo.

Aliás, logo que chegou a Londres, ainda em dezembro de 1968, ele relata em uma carta escrita na véspera do Natal para Lygia Clark que vira, durante um espetáculo performático, Lennon e Yoko entrarem "em um saco branco, germinante, e lá ficaram muito tempo, fazendo alguns movimentos que refletiam na estrutura por fora. Achei bonito, como um ovo-útero".

Mais para frente, na mesma carta, Oiticica divide a mesma expectativa que Torquato e diz que Paul Overy, crítico e historiador da arte inglês, conhecia Yoko Ono e "vai nos apresentar a eles".

Por fim, ele vislumbra uma aliança esperada e planejada por ele: "Estou louco para conhecê-los, pois o Lennon tem muito a ver com muitos dos problemas que procuro erguer". Mesmo com essa proximidade da entourage dos Beatles, nada disso viria a acontecer.

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Um dos momentos mais pungentes da série de Jackson é quando, no segundo episódio, depois da saída temporária de George Harrison e dos atrasos e ausências constantes de Lennon, Paul embarga a voz e fica com os olhos cheios d’água ao perceber que seu parceiro da vida estava indo embora. Entre os Beatles e Yoko, McCartney constata que John ficará com Yoko.

Esse momento de fragilidade da máquina produtiva que é McCartney prenuncia o que realmente viria pela frente. Na época em que Oiticica escuta o acetato inédito ao lado do casal (junho), John e Yoko estavam prestes a se mudar para o isolamento de Tittenhurst Park (rotina que pode ser conferida em outro documentário, "John & Yoko: Above Us Only Sky", de Michael Epstein) e, já no ano seguinte, para Manhattan.

Curiosamente, Oiticica moraria novamente por anos e anos na mesma cidade que Lennon e Yoko. Ele chega, inclusive, a enviar uma carta para a artista, porém não tem sucesso no contato. Também é notória a presença do livro "Grapefruit", de Yoko, em uma das cosmococas criadas por Oiticica, ao lado de Neville de Almeida, em 1973.

Apesar de ter se tornado um fã ardoroso dos Rolling Stones e de Hendrix durante o período nova-iorquino, ele sempre teve o casal John e Yoko em suas referências criativas. E, apesar de seus planos ambiciosos, nunca conseguiu de fato trabalhar junto aos dois.

Um dos textos que o artista carioca escreveu durante sua estadia em Londres ficou conhecido pelo título de "Londocumento". Ao afirmar que "não tem lugar no mundo", indica que podia ser um artista, simultaneamente, do Terceiro Mundo e livre de amarras nacionais, pronto para assumir sua condição de "subterrâneo" frente ao Primeiro Mundo.

Já Torquato Neto, depois de uma temporada em Paris, acaba retornando para o Brasil e passa por uma série de internações que culminarão em seu suicídio em novembro de 1972.

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Em 1971, uma canção —feita por mineiros que não estiveram em 1969 perto dos Beatles, que não entraram em casas com Hendrix ou em festas com Yoko Ono e John Lennon— resume bem o que restava da relação de brasileiros no Terceiro Mundo com o legado da banda que se esfacelava brilhantemente em seu auge pelas lentes das câmeras de "Get Back".

Fernando Brant e os irmãos Márcio e Lô Borges compõem para Milton Nascimento o manifesto sonoro sobre o nosso lugar de lixo ocidental na América do Sul e falam diretamente com os maiores compositores de sua geração: vocês nunca saberão de nós.

Uma mensagem agônica dos exilados não só na Inglaterra, mas no próprio país em brutal regime ditatorial. Um grito no escuro de quem estava tão perto e ao mesmo tempo tão longe. "Para Lennon e McCartney."

John Lennon escreve uma letra de música em uma folha de papel, ele está ao lado de Yoko Ono
John Lennon, ao lado de Yoko Ono, tenta criar uma nova letra para a música "Give Peace a Chance". em 1969 - Luiz Garrido
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