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Carlos Adriano

Romance póstumo de Flaubert sobre a estupidez humana parece falar do Brasil de hoje

Nascido há 200 anos, autor francês queria 'ejacular sua cólera' contra a tolice em 'Bouvard e Pecuchet'

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Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

[RESUMO] Romance póstumo e inacabado de Gustave Flaubert, "Bouvard e Pécuchet" mantém-se espantosamente atual em tempos de discursos de ódio e idiotia difundidos pela internet. Nascido há 200 anos, Flaubert pretendia ‘ejacular sua cólera’ contra a estupidez humana por meio da história de
dois amigos que catalogam documentos e citações para compor um "dicionário das ideias feitas".

"Seria necessário que, em todo o livro, não houvesse uma só palavra de minha autoria, e que, depois de lê-lo, as pessoas não ousassem mais falar, com medo de dizerem uma das frases que lá se encontram." Assim Gustave Flaubert confessa, em dezembro de 1852, um dos escopos do segundo tomo de sua última obra, "Bouvard e Pécuchet".

O bicentenário de nascimento do escritor (12 de dezembro de 1821) propicia pensar na projeção de seu legado como atualização. No centenário da morte de Flaubert, Augusto de Campos invoca, em ensaio de 1980 (coligido em "À Margem da Margem", 1989, Companhia das Letras), "Bouvard e Pécuchet" como a obra de "um Flaubert espantosamente vivo", "o Flaubert que faz falta".

No ensaio que abre a coletânea dedicada a pontos luminosos que definem uma periferia de insubordinação artística, o poeta e tradutor concretista chama de "testamento ou maldição, obra inclassificável" a segunda parte do livro, inacabada e inacabável não só pelo tema inesgotável da estupidez, mas por sua ambiciosa fatura.

Óleo sobre tela "Spix et Bouvard Martius und Pécuchet" (2010), de João Câmara Filho
Óleo sobre tela "Spix et Bouvard Martius und Pécuchet" (2010), de João Câmara Filho - Reprodução

"É preciso estar absolutamente louco para empreender um tal livro —temo que ele seja, por sua própria concepção, radicalmente impossível", diz Flaubert a George Sand em carta de 1874.

O segundo volume de "Bouvard e Pécuchet" é composto basicamente de um dicionário de ideias (e frases) feitas e um repositório de citações disparatadas e estapafúrdias (com autores anônimos, célebres, desconhecidos). Em fevereiro de 1879, ele afirma que o subtítulo da obra seria "enciclopédia da tolice humana".

Em dezembro daquele ano, considera outro subtítulo para essa irônica alusão à "Enciclopédia" de Diderot e d’Alembert: "Da Falta de Método nas Ciências". Amigo e discípulo do autor de "Madame Bovary", Guy de Maupassant foi convocado pela sobrinha de Flaubert para organizar os originais, mas desertou da tarefa.

Em carta de agosto de 1872 a Edma Roger des Genettes, Flaubert sentencia: "Será a história de dois homenzinhos que copiam, uma espécie de enciclopédia crítica em forma de farsa".

Inicialmente intitulado "História de Dois Tatuzinhos – os Dois Funcionários", o livro narra a amizade dos escriturários Bouvard e Pécuchet, que se isolam do mundo para uma série de experimentos manuais e intelectuais (o oitavo capítulo é exemplar do engenho divertido do autor).

Desiludidos, decidem encerrar-se no compêndio: copiam livros, jornais, anúncios, cartas; classificam as citações sob rubricas e estilos (agrícola, literário, médico, político etc.); editam o Dicionário das Ideias Feitas e o Catálogo das Ideias Chiques.

O escritor francês Gustave Flaubert - Reprodução

Jecas totais, Bouvard e Pécuchet são esdrúxulos avatares dos copistas que servem ao oráculo hodierno Google e à enciclopédia colaborativa Wikipédia. Com seus TOCs maníacos, esses escrivães do século 19 são como os escravos do TikTok, tabulando uma taxonomia de clichês gestuais.

Confinados no campo, confiam sem controle no remoto trabalho. No século 21, seriam a reprodução tardia da linha de montagem fordiana, capilaridade perversa de anônimos e algoritmos a nutrirem de dados as corporações de informação e entretenimento (e sua correlata manipulação de nós).

É óbvia e ululante a atualidade da obra terminal de Flaubert, em termos destes tempos de discursos de ódio e idiotia difundidos pela internet. As ferramentas digitais de busca e de "copy and paste" atrelam ferraduras mentais aos que pastam no baldio terreno virtual.

A miragem (na polpa de um clique) do livre acesso compartilhável a um manancial de conhecimentos turvou-se em tempestade perfeita para tormentas de rancor e cascatas de notícias falsas.

Para Maupassant, "o mais prodigioso romance filosófico já escrito" traz o achado crítico chamado "Sottisier", que Augusto de Campos traduz por "Tolicionário". Seria uma matriz do Febeapá (festival de besteira que assola o país), cunhado por Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto, em 1966, após o golpe militar.

Campos evoca "o grau zero da escrita" na operação de Flaubert, além de remetê-la a Duchamp e seu degrau do "readymade". Recorro a uma noção de Barthes, a da "morte do autor", que emancipou o leitor sob o colapso entre consumidor e produtor (de informação e cultura), catapultado pela democratização dos meios digitais.

E completo a remissão duchampiana com o "mal de arquivo" de Derrida, a compulsão de reciclar e remixar o acumulado capital do saber em cúmulos de expropriações. Outros exemplos da ressonância seriam o situacionismo (terrorismo verbal dos desvios de Guy Debord), o laboratório desautomático do OuLiPo e a "escrita não criativa" de Kenneth Goldsmith.

A atriz Isabelle Huppert em cena do filme "Madame Bovary" (1991), versão de Claude Chabrol para a obra de Gustave Flaubert - Divulgação

Desde 1850, Flaubert acalentava o projeto de "Bouvard e Pécuchet", seu último livro, publicado postumamente em 1881. Em 8 de maio de 1880, quando morreu de hemorragia cerebral, concluía o capítulo final (o de número 10) do primeiro volume, com questões de educação.

Entre 1872 e 1874, Flaubert leu 294 obras de referência, em áreas tão diversas quanto as estudadas pela dupla ficcional. Em janeiro de 1880, indaga a Genettes: "Sabe a quantos chegam os volumes que precisei absorver para meus dois homenzinhos? Mais de 1.500!".

Segundo ele, o capítulo 11 reuniria "documentos" e "anotações" e seria "quase que só composto de citações". Os manuscritos não permitem ter uma ideia precisa do aspecto definitivo. Ele encerra a "Conferência XII" ("Conclusão"): "Acabar pela visão dos dois homenzinhos, debruçados em suas escrivaninhas, copiando".

A última edição brasileira de "Bouvard e Pécuchet", com tradução de Marina Appenzeller, lançada pela Estação Liberdade em 2007, traz os dez capítulos, os trechos inacabados e esboçados —"Conferência", "Sua cópia" e "Conclusão"— e os "fragmentos para o segundo volume", feitos de citações: "Notas dos autores lidos anteriormente", "Papéis velhos comprados por peso", "Espécimes de todos os estilos", "Belezas", "Dicionário das ideias feitas" e "Catálogo das ideias chiques".


Registrem-se ainda as traduções de Galeão Coutinho e Augusto Meyer (Nova Fronteira, 1981) e de Fernando Sabino (apenas o "Dicionário das Ideias Feitas", no volume "Lugares Comuns", 1952).

É obra para "desconcertar o leitor sistematicamente", escreve Stéphanie Dord-Crouslé na apresentação da edição de 2007. Especialista em Flaubert e autora de "Bouvard et Pécuchet: une Encyclopédie Critique en Farce" (2000), ela é responsável pelo projeto de sua edição eletrônica (www.dossiers-flaubert.fr).

Segundo a pesquisadora, "a correspondência não cessa de insistir na ligação íntima entre a concepção do último romance e a fúria vingadora de que Flaubert é então presa". Nas palavras do próprio escritor, sua meta é "ejacular minha cólera".

Assim até parece que Flaubert fala do Brasil atual. Em 1863, ele escreve aos irmãos Goncourt: "Tenho medo de ser apedrejado pelo povo e de ser deportado pelo governo". Para Genettes, crava: "Nesse tempo de avacalhamento universal, vomitarei sobre meus contemporâneos o desgosto que eles me inspiram". Para Turguêniev, clama: "A estupidez pública me submerge".

Em agosto de 1868, Flaubert responde a George Sand, inquieta sobre o retrato que ele fez dos revolucionários de 1848 no romance "A Educação Sentimental": "Os reacionários serão ainda menos poupados do que os outros, pois me parecem mais criminosos. Já não seria hora de fazer a Justiça entrar na Arte?".

Em fevereiro de 1873, em carta a Genettes, ele dizia: "Só gostaria de ir visitar as bordas sombrias após vomitar o fel que me sufoca. Isto é, não antes de escrever o livro que estou preparando".

Os "dois tatuzinhos" de Flaubert deram lugar a toupeiras fanáticas que proliferam a partir de esgotos e gabinetes. O número talvez nem tenha aumentado em relação ao passado, mesmo o mais remoto de priscas eras, mas o risco país, a taxa de mediocridade e a exposição subiram: furando o teto de pastos, a internet deu visibilidade maciça às hordas de idiotas.

No capítulo 8 de "Bouvard e Pécuchet", Flaubert escreve: "Então, uma faculdade lastimável desenvolveu-se em seu espírito: a de ver a tolice e não tolerá-la mais". Tristeza não tem fim; estupidez também não.

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