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Fernando Conceição

Risério, ideólogo de senhores brancos, distorce a verdade sobre racismo

Razões para autor demonizar negros se parecem com obsessão de textos catárticos da psique racista

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Fernando Conceição

Mestre e doutor em ciências da comunicação pela USP e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia)

[RESUMO] Em artigo publicado na Folha, Antonio Risério comete um erro primário e proposital ao pôr na mesma balança as relações raciais do Brasil e dos EUA para defender a existência de racismo de negros contra brancos. Autor generaliza processos históricos sem contextualizá-los, mostra que distorcer a verdade é seu artifício comum e, com seu reacionarismo, se viabiliza candidato a herói de Sérgio Camargo.

Há alguns anos, fui ao apartamento da mãe de Antonio Risério, a seu convite, que o ocupava naquele período, nas imediações do Farol da Barra, em Salvador, região onde também fica o Calabar, favela onde nasci, para entrevistá-lo para o jornal em que trabalhava.

Não sei se a propósito de algumas de suas estripulias ou do livro que o fez conhecido, "Carnaval Ijexá", trabalho de etnografia cultural que toma blocos afros e afoxés como atores da transformação positiva da festa popular.

Antonio Risério durante mesa da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2015 - Zanone Faissat - 2.jul.15/Folhapress

Agora o reencontro, provocando reações diversas —algumas até rancorosas demais— em artigo sobre um suposto racismo negro contra brancos. Branco e sorrateiro, saberá usá-las em reforço ao que nos últimos tempos tem alardeado. Solicitei espaço não para xingá-lo, já que isso seria entrar em seu jogo, nem espinafrá-lo, como ele tem feito com a luta dos movimentos sociais negros, colocados por ele no balaio do identitarismo.

Pão ou pães é questão de opiniões (Guimarães Rosa). O "antropólogo" tem direito de falar, falseando os fatos?

Se Haile Selassie se transformou em tirano e foi deposto pelos etíopes, não se deve menosprezar sua liderança no combate à ocupação da Etiópia pelo projeto colonizador europeu, repelindo as tropas fascistas. Líderes da Frente Negra Brasileira eram Integralistas? Nem todos. Alguns eram carnívoros, outros veganos?

Pôr na mesma balança atores, relações raciais distintas e os diferentes modos com que as diferentes sociedades, a cada momento do processo histórico, lidam com as especificidades no enfrentamento do complexo racial é erro primário proposital. Risério sabe: as experiências brasileira e estadunidense no trato do tema são completamente particulares.

Dito isso, respondo à "pergunta fundamental" posta pelo autor em seu artigo. É falaciosa a premissa que ele utiliza para construir sua tese, portanto é fácil demonstrar sua fragilidade, como fez Zara Figueiredo Tripodi em artigo publicado na Folha.

A tese de Risério é que existe o que ele chama de "neorracismo identitário". Como uma Cassandra, ele teme o pior. Seria isso, o racismo dos negros contra os "brancos" o leitmotiv do discurso de afirmação da identidade negra. Que se queixe ao Papa, a Edward Said e a Frantz Fanon.

Uma de suas conclusões: estaríamos passando "da política da busca da igualdade para a política da afirmação da diferença". Ele que aponta a "esquerda" —classicamente, ao menos a partir de Rousseau, estuário da pretensão da "igualdade"— trai-se como defensora da busca da igualdade, agora contradita pela afirmação da diferença.

Nos debates do heterogêneo, supra e mesmo apartidário movimento negro, apenas ingênuos acreditam ser possível estabelecer uma sociedade de iguais. Nem mesmo na "Utopia", de Thomas More, inspiração de revolucionários socialistas dos quais Risério quer distância, há esse receituário.

No Brasil, a bandeira de luta que unifica os negros pós-escravidão sempre foi mais modesta e se intensificou na presente quadra da democracia iniciada com a Constituição de 1988. A luta política sempre foi e é por tratamento equitativo e igualdade de oportunidades —o que é distinto de "igualitário"— na disputa por espaços políticos, institucionais e de prestígio social historicamente apropriados por brancos.

Risério começa seu artigo afirmando que "todo o mundo" sabe que existe racismo branco antipreto. Nesse "todo o mundo" do autor estão incluídos todos os aparelhos ideológicos que mantém a máquina do Estado azeitada? Os megaempresários? Os juízes, tribunais, polícias assassinas? Bolsonaro e os atuais chefes dos demais poderes da República? Cúpulas de universidades, da Igreja, do mercado de bens simbólicos e a "ordinary people"?

Outra generalização: "Muçulmanos escravizaram e mataram durante séculos de tráfico negreiro na África". Aqui trata-se da expansão do Islã, a partir do século 7 da era cristã, da Península Arábica pelo norte da África.

Porém, ao citar, sem contextualização, fatos que são fruto do processo histórico de determinada época, Risério esquece de antecedentes, da Antiguidade Clássica, de Genghis Khan, dos incas, dos belgas no Congo.

Ele desinforma ao não contar terem sido aqueles muçulmanos superados, do século 14 em diante, pelo empreendimento europeu de base cristã e pelo tráfico que deu base à acumulação primitiva do capital. O que se conceitua como racismo científico está de mãos dadas com o euroetnocentrismo e propagadores como Arthur de Gobineau, que rejeito ser sua atual leitura de cabeceira.

O "antropólogo" diz que a mídia mainstream é conivente com o identitarismo negrorracista e cita William McGowan, autor de "Coloring the News", publicado em 2001 nos Estados Unidos. McGowan, mente do conservadorismo, quer atacar a pauta do liberalismo abraçada pelos democratas. Sua crítica não se restringe ao debate das relações raciais e abarca a agenda LGBTQIA+ e o direito ao aborto.

Para tentar confirmar a tese com exemplos estadunidenses —alguns fatos isolados narrados em terceira mão—, Risério toma como "destaque o racismo preto antijudaico, que não é de hoje". Ele ilustra isso simplesmente escrevendo: "Em Crown Heights, no verão de 1991, os pretos promoveram um formidável quebra-quebra [...] durante o qual gritavam ‘Heil Hitler’ em frente às casas de judeus".

O artifício comum de Risério, distorcer a verdade, fica aqui evidente. Para uma compreensão abalizada das ocorrências, sem o registro documental da exaltação a Hitler, indico o livro do historiador judaico-americano Edward S. Shapiro, "Crown Heights: Blacks, Jews, and the 1991 Brooklyn Riot", de 2006.

Em um país clivado por ressentimentos raciais como os Estados Unidos, ler ainda "Negroes Are Anti-Semitic Because They're Anti-White", de James Baldwin (de forma alguma uma defesa do antissemitismo negro) também desanuviaria os espíritos.

Crown Heights é uma área multiétnica do Brooklyn onde, na noite de 19 de agosto de 1991, durante uma procissão comandada pelo rabino do Chabad-Lubavitch, um dos ramos hassídicos do judaísmo ortodoxo, um carro dirigido por um judeu —sem licença, de acordo com confirmação posterior— avançou o sinal e atropelou duas crianças de imigrantes guianenses da vizinhança.

Gavin Cato, 7, morreu. Sua prima de mesma idade, severamente ferida, sobreviveu. Uma ambulância da comunidade judaica chegou ao local em minutos para levar a um hospital privado o atropelador, Yosef Lifsh, 22.

As crianças atropeladas ficaram no asfalto debaixo do carro aguardando socorro. Seguiu-se a revolta de manifestantes, com jovens negros atacando judeus —um foi assassinado—, casas e estabelecimentos comerciais nos três dias seguintes.

As razões pelas quais Risério agora demoniza os negros —além de "antissemitas" seriam "antiasiáticos", "anticoreanos" etc.— assemelha-se à obsessão presente em vários textos catárticos da psique racista. Um deles, "To Kill a Mockingbird", de Harper Lee, escolhido o melhor livro dos últimos 125 anos por leitores do Book Review, do jornal The New York Times.

Vê-se o racismo operando como um sistema de força e de poder e o medo que desperta nos senhores brancos, exorcizado com a prática da violência institucionalizada. Esse racismo tem seus ideólogos.

Risério, reacionário, é forte candidato a herói da Fundação Cultural Princesa Isabel, no modelito proposto pelo atual presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo.

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