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Amara Moira

Alegoria trans em novo 'Matrix' passou de libertação a desencanto

Pesquisadora analisa questões de sexualidade e de gênero na série

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Amara Moira

Travesti, feminista e doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp. Autora de ‘E se Eu Fosse Puta’ (hoo editora, 2016) e ‘Neca + 20 Poemetos Travessos’ (O Sexo da Palavra, 2021)

[resumo] Pesquisadora analisa questões que perpassam os filmes da série ‘Matrix’, criada pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski, que se declararam mulheres trans, anos depois do lançamento do longa original. ‘Matrix Resurrections’, o quarto filme que está nos cinemas e no streaming, parece se distanciar da ideia ingênua de que a transição se resume à libertação, diz autora.

Dependendo do malabarismo que se esteja disposto a fazer, qualquer obra pode ser lida como alegoria da condição trans, mas é inegável que algumas facilitam bastante essa interpretação —sem contar que acontecimentos externos podem influenciar a maneira como passarão a ser entendidas.

O primeiro "Matrix", de 1999, reúne esses dois atributos, porque tanto é um trabalho que favorece múltiplas interpretações quanto é afetado pelo fato de as duas pessoas que o dirigiram e o roteirizaram, as irmãs Lilly e Lana Wachowski, terem se assumido mulheres trans uma década e pouco após o lançamento do filme.

A obra prestar-se a interpretações inusitadas é algo já bastante conhecido, mas talvez haja alguma resistência quanto a considerar que a transição de gênero das diretoras pode impactar na sua produção de sentido —resistência que me parece profundamente conectada com o receio de que isso "empobreceria", "limitaria" a narrativa.

Em outras palavras, é como se, ganhando força essa interpretação, a obra passasse a interessar apenas a quem faça parte da sigla LGBTQIA+, sobretudo quem se identifica com a letra T.

Por si só, os pontos citados já nos convidariam a uma releitura da obra, mas um novo elemento traz ainda mais força a esse convite: a declaração de Lilly Wachowski em 2020 de que "Matrix" efetivamente é uma alegoria trans. Segundo ela, elementos que tornariam esse entendimento mais evidente acabaram eliminados do filme, uma vez que no final do século 20 havia ainda menos espaço na indústria do cinema para uma abordagem do universo trans.

O caso do personagem Switch é bastante ilustrativo. Inicialmente, Switch (palavra que, entre outras coisas, se traduz por mudar, trocar) seria homem no mundo real, mas, ao adentrar a Matrix —a realidade simulada criada pelas máquinas para subjugar a humanidade—, se transformaria em mulher.

De acordo com o filme, a maneira como a pessoa se vê e é vista dentro da Matrix é reflexo da sua "autoimagem residual", o que nos levaria a pensar em duas possibilidades de sentido para essa ideia.
Na primeira, Switch se entende como mulher, só sendo possível existir dessa forma na Matrix. Na segunda, Switch se entende como homem, mas a sua "autoimagem residual" (ou seja, a maneira como a Matrix o teria condicionado a ver-se) é de mulher.

Daria ainda para pensar em uma figura que transita entre os dois gêneros, sem se identificar exclusivamente com nenhum deles, mas falta materialidade a qualquer dessas hipóteses, uma vez que a ideia ficou pelo caminho e não deixou elementos concretos para analisarmos. O que restou de Switch, no filme, é uma figura andrógina, nada mais.

Outros tantos pontos que permaneceram na história permitem identificar alegorias da condição trans de maneira mais consistente, como o embate entre as duas identidades do protagonista (Thomas Anderson e Neo, seu nome social) interpretado por Keanu Reeves, a vida dupla imposta a quem se liberta da Matrix, a dita real e a dita virtual, ou mesmo o discurso de Morpheus (Laurence Fishburne) sobre o que seria a realidade: pessoas não nascem, mas são plantadas e vivem em cativeiro e completamente alheias ao fato de existirem sob o jugo da escravidão.

Ora, somos todos criados para performar um gênero e uma sexualidade específicos, para existir de acordo com eles e ter medo de nos imaginar outra coisa que não aquilo que nos foi imposto. Daí, podemos facilmente nos perguntar se, em relação a gênero e sexualidade, somos efetivamente o que somos ou se aquilo que acreditamos ser não é nada mais do que um conjunto de crenças que fomos programados para reproduzir.

Além disso, o fato de cada pessoa não liberta poder se transformar na Matrix em um agente não pode representar a internalização das normatividades de gênero e sexualidade, capazes de tornar cada um de nós agentes mantenedores do sistema?

Também é interessante, nesse sentido, a pergunta que Neo faz a Morpheus logo depois da sua libertação ("eu não posso voltar atrás, posso?"), que tem como resposta: "Não, mas se você pudesse, você realmente gostaria?". O retorno a um estágio anterior, de inconsciência, se torna em boa medida desejável, muito em função dos obstáculos que teremos pela frente a partir da libertação.

O educador Paulo Freire falava que o oprimido, ao expulsar de dentro de si a sombra dos opressores, precisa preencher o vazio com outro conteúdo, o de sua autonomia. Sem isso, não é possível manter-se livre, o que vemos com Cypher (Joe Pantoliano), outro personagem central do primeiro filme.

Em um momento emblemático, ele negocia o seu retorno à Matrix, exigindo apenas não se lembrar de nada da época em que foi livre e voltar como uma pessoa rica. "A ignorância é uma bênção", diz.
Cypher também é quem lamenta, em uma conversa com Neo, não ter tomado a famosa pílula azul, o que teria lhe permitido continuar vivendo na ilusão da realidade simulada. Difícil não pensar em "terapias de conversão" nesse passo, as famosas "cura gay" e "cura trans", que não são nada mais que a lavagem cerebral desejada por ele.

Aqui, chegamos à Oráculo (Gloria Foster), outra das grandes personagens da saga. Dois diálogos dela com Neo são os que mais me interessam.

O primeiro gira em torno de um vaso quebrado: ela diz para Neo não se preocupar com o vaso e, no que ele gira procurando o objeto, seu cotovelo esbarra em um, que se espatifa no chão. Quando Neo lhe pergunta como ela sabia o que iria acontecer, a resposta é intrigante: "A pergunta que vai fazer seus miolos queimarem é: ‘você ainda o teria quebrado se eu não tivesse dito nada?’".

Pode parecer estranho trazer essa passagem para discutir uma interpretação trans de "Matrix", mas ela é crucial, porque põe em debate o quanto do comportamento e do desejo é fruto do nosso livre-arbítrio e o quanto é puro efeito de sugestão, de manipulação.

Qual a relação, por exemplo, entre os procedimentos cirúrgicos inventados e as intervenções corporais que desejamos realizar? O que queremos, de fato, modificar em nossos corpos e o que só modificamos em função das pressões sociais? De onde vem, aliás, o desejo de transformar nosso corpo? Essas dúvidas acompanham pessoas trans ao longo de toda a vida.

Isso se conecta diretamente ao segundo diálogo. A Oráculo diz a Neo que ele já sabe o que ela irá dizer, e ele devolve: "Que eu não sou o escolhido?". A Oráculo não diz nem que sim nem que não e deixa a responsabilidade da resposta nas mãos do protagonista, que a toma como um não.

Aqui, poderíamos pensar nas tantas pessoas trans (ou seus familiares) que buscam em terceiros, sobretudo médicos, a confirmação de sua transgeneridade. É como se as irmãs Wachowski, por meio da Oráculo, nos dissessem que qualquer confirmação do tipo seria falsa, porque a única realmente válida teria que vir da própria pessoa.

O filme se encerra com Neo tendo entendido a questão e colocando-se como um disseminador da ideia de que é possível existir para além da Matrix, em um mundo "sem regras e controles, sem limites e fronteiras, onde tudo é possível". A cena remete aos seus superpoderes, à capacidade de voar, desviar de tiros, pará-los com a mão, mas nada nos impede de imaginar que essas rupturas possam se dar também no âmbito da sexualidade e do gênero.

Os dois filmes seguintes da série não acrescentam muito à discussão. Poderíamos, no máximo, encontrar algo nos diálogos entre Neo e a Oráculo a respeito do sentido das escolhas.

No entanto, o quarto filme —o recém-lançado "Matrix Resurrections", dirigido apenas por Lana Wachowski— redimensiona completamente o debate trans, mas tomarei cuidado para não trazer muitos spoilers. O longa está em cartaz nos cinemas e também disponível na HBO Max.

Nesse episódio, a paródia e o nonsense dão o tom, enquanto no restante da série a seriedade imperava. O filme começa com um Thomas Anderson/Neo frustrado, depressivo, trabalhando em uma desenvolvedora de videogame e a Matrix transformada em um mero jogo criado pelo protagonista, um sucesso de vendas da empresa. Dali, vamos para a sala do chefe, Smith, que lhe comunica que a Warner Bros. está exigindo a todo custo uma continuação do jogo.

Toda a situação é absurda. Cenas do interrogatório de Neo por Smith no primeiro filme surgem intercaladas ao longo do encontro, sem que, nesse ponto, tenhamos como determinar o seu sentido. Memórias, delírios, cenas do jogo? O Smith de agora, seu chefe, é aquele vilão da trilogia?

O próprio Neo parece não ter muitas certezas a respeito. Na cena seguinte, ele diz para o psicanalista que não sabe se está tendo um novo colapso mental ou se, na verdade, ele vive efetivamente dentro de uma realidade gerada por computador.

O analista o acalma, dizendo que ele sobreviveu a um suicídio e possui uma imaginação poderosa, fatores centrais para a paranoia que o ataca de tempos em tempos. Neo volta de lá com a receita renovada da sua medicação, as famosas pílulas azuis, que ele não sabe se deve ou não continuar tomando.

Pouco depois, em uma sessão de brainstorming para a produção do novo jogo, discute-se o que é a Matrix. Entre as várias definições propostas, temos "filosofia embalada em apertadas e brilhantes roupas de PVC", "exploração capitalista" e "políticas trans".

Risos tensos acompanharão todo o filme, dado o clima de absurdo a que nos vemos expostos desde o princípio. As provocações de Lana são geniais.

Críticas ao capitalismo que transforma tudo em mercadoria (inclusive pautas trans), críticas ao esvaziamento de sentido por que passam as obras quando apropriadas pelo sistema (o que nos permitiria fazer uma interessante reflexão sobre representatividade), críticas ao nível de absurdo que vamos aprendendo a tolerar (por meio do vício causado tanto pelas redes quanto por medicamentos e sessões de terapia) e, no meio disso tudo, a dúvida em relação a que diabos aconteceu com a Matrix.

Assim como nos três filmes anteriores, nenhuma referência explícita é feita às questões trans (salvo na efêmera frase dita no brainstorming, em tom de piada). Ainda assim, é como se agora elas estivessem presentes em cada momento do filme, porém não mais como libertação, o que se explica pelo fato de "Matrix Resurrections" ter sido dirigido por uma mulher trans já transicionada e que, possivelmente, não acredita mais na ideia ingênua de uma transição, por si só, libertadora —algo que as irmãs Wachowski talvez fantasiassem na época do primeiro filme.

A frase que me vinha à cabeça, ao longo do filme, é uma citação do começo do "Ulisses", o centenário romance de James Joyce: "A história é um pesadelo do qual tento acordar".

Pensando na trilogia original e, sobretudo, neste "Matrix Resurrections", não sei se estamos, agora, finalmente despertando ou se, ao contrário, apenas nos aprofundando em nossos sonhos de emancipação.

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