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Lúcia Teixeira

Biógrafa responde a Ruy Castro sobre Pagu e Oswald após 1930

Presa 23 vezes devido à militância comunista, escritora fez balanço crítico da literatura moderna do Brasil

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Lúcia Teixeira

Doutora em psicologia da educação, é presidente do Semesp, entidade que representa mantenedoras de ensino superior no Brasil

[RESUMO] Em resposta a questionamento de Ruy Castro, autora busca esclarecer o que aconteceu com Patrícia Galvão, a Pagu, e Oswald de Andrade nos meses seguintes à Revolução de 1930, que destronou a oligarquia paulista e levou Getúlio Vargas ao poder. Depois de anos de militância no Partido Comunista, Pagu questionou em textos dos anos 1940 o romance proletário e defendeu a autonomia do ofício de escritor.

A dúvida foi lançada, nesta Ilustríssima em 6 de fevereiro, por ninguém menos que Ruy Castro. No excelente artigo "Como a Semana de 22 virou vanguarda oficial depois de 50 anos esquecida", o grande escritor discute de que maneira a história da Semana de Arte Moderna de 1922 passou a ter a fama de verdade incontestável, recontada ufanisticamente por Oswald de Andrade a partir dos anos 1940.

A jornalista e escritora Patrícia Galvão, a Pagu, posa para foto em 1929 - Divulgação

O articulista duvida da relação da Semana com as insurreições políticas que a ela se seguiram e com a fundação do Partido Comunista do Brasil. Ao contrário de Oswald, Ruy afirma que a Semana e os modernistas de 1922, filhos de latifundiários, representavam o status quo.

Para pôr mais fogo na canjica, respondo ao questionamento de Ruy, ao falar de Oswald já em 1930, então casado com Pagu: "Não se sabe de fugas ou escapadas do casal, um mês depois do nascimento do filho Rudá". Isto é, a partir de outubro de 1930, quando irrompe a revolução liderada por Getúlio Vargas, o presidente Washington Luiz é deposto e Vargas assume a chefia do governo provisório.

Oswald havia rompido seu casamento com Tarsila de Amaral para viver um romance com Patrícia Galvão, a Pagu, iniciado em 1929, período em que essa surge no modernismo antropofágico, inicialmente musa, com desenhos na Revista da Antropofagia e nome literário criado por Raul Bopp. A separação do casal Tarsivaldo dissolve também esse movimento.

Para tentar esclarecer o paradeiro do casal Oswald Pagu, arguido por Ruy, já que "as peripécias políticas de Oswald costumam ser confundidas com as de Pagu, que pagou o preço de prisões e risco de vida", trago a palavra da própria, com seus textos da época, cartas e cadernos, alguns inéditos.

Pagu informa em novembro de 1930 o destino do casal, em caderno inédito, entrevistando a si mesma com o sobrenome Andrade: "Vou recomeçar minha vida intelectual, depois de uma folga de meses, aproveitada para a realização de um novo antropófago - Rudá".

Ela viaja para Buenos Aires em dezembro de 1930. Com 20 anos, almeja participar de um recital de poesia, como "embaixadora da antropofagia". Apesar de ter planejado viajar com Oswald e o filho Rudá, então com três meses, vai sozinha, decepcionada com as aventuras conjugais do companheiro.

"O cais. Havia dor na separação. Muita dor. Havia o desconhecido. Atrás, Oswald, que já significava muito pouco, e meu filho."

Da Argentina, escreve a Oswald, fazendo referência à correspondência que o marido enviou para ser entregue ao poeta Eduardo Mallea. Pagu aproxima-se da turma platina de vanguarda da Revista Sur: Jorge Luis Borges, Mallea, Victoria Ocampo, Norah Borges.

Retorna, desembarcando em Santos, carregada de livros marxistas, após receber um telegrama de Oswald que dizia que o filho estava doente.

No início de 1931, Pagu faz traduções de folhetos para o líder comunista Astrojildo Pereira, em São Paulo. Pedro Mota Lima a ajuda a convencer Oswald a se tornar comunista. Tem início a participação militante de Pagu nas agitações de São Paulo, mesmo que ainda sem uma base ideológica mais clara.

Nos primeiros meses de 1931, acometida por períodos de depressão e desiludida amorosamente, pede a Oswald para ir a Santos. Alugam um quarto no bairro do Boqueirão. Ela conhece o estivador negro Herculano de Souza, a quem passou a admirar e influenciou sua adesão ao Partido Comunista. Recebe determinações do partido para permanecer em Santos, e Oswald volta com Rudá para São Paulo. Pagu sofre com a ausência do filho e recebe sátiras dos companheiros pelo "sentimentalismo burguês".

O estivador Herculano morre nos braços de Pagu em agosto desse ano, durante comício comunista na cidade praiana. Ela é primeira mulher presa política do país. Ao ser libertada, o PCB a obriga a assinar um manifesto em que declara ter agido por motivos individualistas e desordeiros. O partido considerava que, sendo ela de origem "pequeno-burguesa", não operária, sua prisão era perniciosa para a causa.

Ao sair dessa que seria a primeira de suas 23 prisões políticas, volta para a casa de Oswald. O que os une? A camaradagem e o filho Rudá. Perseguidos pela polícia, credores e oficiais de Justiça, se escondem no Vale do Paraíba, na chácara do bairro de Santo Amaro, em São Paulo, e depois na Ilha das Palmas, em Santos.

Ela e Oswald, ao aderirem ao Partido Comunista, deram tratamento literário à luta ideológica. No livro "A Escada Vermelha", Oswald se inspira nas vivências com a gente simples da Ilha das Palmas e coloca como personagens os amigos da ilha-refúgio. Pagu é Mongol, aquela que influencia o rumo político do personagem claramente inspirado no próprio Oswald.

Nesse mesmo 1931, Pagu escreve "Parque Industrial", primeiro romance social proletário brasileiro, modernista e precursor, assinando Mara Lobo. É uma apologia do partido, uma forma de provar a sinceridade de propósitos. Oswald pagou a edição, que foi limitada, praticamente artesanal e clandestina, lançada em 1933.

A partir daí, além de impedir seu trabalho intelectual, o partido a obriga a realizar duros serviços para sobreviver, ordenando que ela corte a relação com o filho Rudá e com Oswald, considerado suspeito devido à sua ligação com a burguesia. Detida por quatro anos e meio, sofreu o diabo até sair, em 1940.

Após ser libertada, Pagu analisaria de forma crítica o período de militante comunista na década de 1930. Em caderno inédito, ela fala também "dos que acreditaram sem crítica" e da "fanática gente da literatura social".

Questionaria em jornais a literatura politizada promovida pelos comunistas, defendendo a autonomia do escritor, em balanço sobre a literatura moderna do Brasil.

"Naqueles curtos espaços de tempo em que havia inquietações intelectuais, surgiu no Brasil o 'romance proletário', a literatura social, 'socializante' diria hoje Sergio Milliet. E nela continuarmos coloniais…"

"Como nos faltava o 'espírito do tempo', pela incultura, pela falta de informação, pela ausência de contatos internacionais (a exacerbação nazista-fascista de fundo nacional-integralista portas adentro trancava toda a visão), crismamos de moderna também a literatura social, o romance proletário que importáramos" (1946).

Sobre Oswald, seus comentários foram por vezes contraditórios, como a própria vida:

"Leio um desses compostos a que também muita gente chama poema, assinado pelo sr. Osvaldo de Andrade, antigo herói do 'Pau Brasil' agora em marcha batida para o Brasil pau... O 'Canto do pracinha só', datado de depois da guerra, pela primeira vez apresenta o poeta em armadura mavórtica, mandando o pracinha marchar, combater, lutar, por causa da Pátria que espera as façanhas do referido pracinha só. É sem dúvida engraçado encontrar Osvaldo de Andrade, agora em delírio guerreiro sob a inspiração patrioteira:

'Pracinha./ São teus irmãos/ Churchill. Truman./ O eterno Franklin Delano Roosevelt./ O trabalhista Atlee/ O camarada Prestes/ O marechal Stalin./ Irmãos por parte de quem?'

Será que tais cantos vão impedir ou retardar a publicação do terceiro volume de 'Marco Zero', no qual continuo esperando que ressurja o pioneiro das "Memórias sentimentais de João Miramar'? O lugar do poeta, seu território de liberdade, sua luta e sua epopéia independem do pau de vassoura no ombro e do chapéu de papel na cabeça" (1945).

Um ano depois, ressalta Oswald e a "raça diversa" do movimento modernista:

"O que é incrível é que o movimento modernista tenha procriado uma raça de gente tão diversa. Editoras congestionam as tipografias. Livraria que é mato. Disputam-se até livros caros. E a terminologia é infernal, tão notável é um Kafka quanto um 'rebento' que pode pagar um editor para se colocar na lista de 'editado'… Ainda bem que lhe encontro, Oswald de Andrade, madrugando à porta do livreiro da rua Marconi, primeiro na 'fila', para comprar os 'NRF' acabados de chegar. Ainda bem que continua nem que seja como historiador, procurando ressuscitar a antropofagia, revisá-la, transformá-la – ou então inventar qualquer outra coisa" (1946).

Em 1954, crônica-homenagem pela morte de Oswald fala da pretensão do escritor a militante revolucionário. Revive o tempo em que passaram escondidos na velha ilha:

"Quando serviu de refúgio ao herói de 'A escada vermelha', transfiguração deformada da 'A escada de Jacó', porque Oswald se tornara um extremista, como sempre fora, aliás mas, então, com pretensões a militante revolucionário, a 'casaca de ferro' da Revolução Proletária... upa!".

No balanço da Semana de Arte Moderna, "apesar de nossa condição de colônia, na linha do determinismo histórico literário", ressalta o espírito do século 20:

"Desde menina ouvi falarem, na minha cidade, da literatura moderna… Na tranquila capital da província, com a garoa e as cotações do café, um grupo de literatos e artistas, muito reduzido, produzia escândalos com a literatura moderna. Nobres jornais, de venerados títulos e revistas, acolhiam a colaboração de Osvaldo de Andrade, Alcântara Machado, Mário de Andrade, Rubens Borba de Morais, Sergio Milliet. De todos, o que teve parada na província, para não mencionar o seu oposto, o parisiense-londrino Paulo Prado, Mário de Andrade foi o que fez a independência de sua concepção literária apenas pelos livros. O mais eram brasileiros itinerantes, gente que tinha semanalmente saudades da Europa. Eles conheceram a literatura moderna pelo contato com a civilização ocidental, e a sua reação na Semana de Arte Moderna, na Poesia Pau-Brasil, no 'Pathé-Baby' de Antônio, talvez se tenha feito nacionalista por se sentirem ainda coloniais perante a Europa. Acrescentaram porém à literatura brasileira o que nunca mais lhe seria acrescentado até agora: o espírito do século vinte. Embora canibalmente nacionalistas, a pesquisa e a preocupação linguísticas de Mário de Andrade são a melhor prova, foram modernos" (1946).​

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