Esoterismo e músicas de fossa influenciaram olhar poético de Eucanaã Ferraz

Escritor transita com desenvoltura por literatura, sala de aula, música e artes plásticas

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Alexandre Vidal Porto

Escritor e diplomata, é mestre em direito pela Universidade Harvard e autor de “Sergio Y. vai à América”, “Matias na Cidade” e “Cloro”

[resumo] Menino frágil e de sensibilidade feminina criado na Baixada Fluminense, em cidades sem livrarias, Eucanaã Ferraz descobriu na poesia uma poderosa forma de expressar seu deslumbramento pelo mundo, o que se manifesta hoje, já poeta consagrado, também em suas atividades como professor e curador.

Ele transita com desenvoltura por literatura, música e artes visuais. Acabou de produzir um programa de rádio de seis episódios com Maria Bethânia, para a Rádio Batuta, e fez a curadoria (junto com Veronica Stigger) da exposição "Constelação Clarice", que relaciona a obra de Clarice Lispector à de artistas visuais mulheres, em exibição no Instituto Moreira Salles de São Paulo.

Ao mesmo tempo, é professor de literatura brasileira na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e, no momento, organiza para a Companhia das Letras uma antologia do poeta português Eugénio de Andrade (1923-2005), vencedor do Prêmio Camões. Também colabora com a concepção do segundo Congresso Mundial de Bruxaria, que se realizará no Rio ainda neste ano. A primeira edição aconteceu em Bogotá, em 1974, e contou com a participação da própria Lispector.

Ele diz que gosta de moda, de cerâmica e que só faz poesia. Para quem o observa, no entanto, ele parece encarnar muitos outros personagens. Fica a pergunta: afinal, quem é Eucanaã Ferraz?

O escritor Eucanaã Ferraz na Feira Literária Internacional de Paraty, a Flip, em 2015 - Bruno Poletti/Folhapress

Ele nasceu em 1961, em Paracambi, na Baixada Fluminense. Ficou sem nome por sete dias até que o pai, mineiro e místico, anunciasse sua escolha para o filho: Eucanaã de Nazareno, associando a identidade do filho (Eu) à terra prometida do Velho Testamento (Canaã) e ao redentor Jesus de Nazaré.

"Muita gente acha que meu nome é indígena; tem origem bíblica, sim, mas se trata de uma invenção do meu pai", conta.

Foi uma criança tímida e se incomodava com a atenção que a estranheza de seu nome atraía sobre si. "Hoje considero meu nome uma bênção. Um nome que suscita interpretações, como a poesia."

Morou com os pais em vários lugares do subúrbio do Rio e da Baixada Fluminense: Penha, Mesquita, Bráz de Pina, Nova Iguaçu. Não tinha irmãos, mas vivia cercado de primas e primos da família materna, que era próxima. Seu avô e seus tios eram fotógrafos profissionais, e ele cresceu em meio a uma profusão de imagens familiares. Ele, no entanto, não gostava de ser fotografado porque se achava feio.

Desde a infância, Eucanaã foi exposto às manifestações do mágico, do imaterial e do sagrado. Em reuniões familiares, seus tios incorporavam entidades em rituais de umbanda improvisados. O pai tinha uma coleção de livros esotéricos e de magia cuja leitura era proibida ao filho, mas Eucanaã os lia escondido.

O poeta Eucanaã Ferraz e a cantora e compositora Adriana Calcanhotto durante as gravações do programa "Poesia em Movimento" - Divulgação

Cresceu ouvindo que sua avó paterna era bruxa. "Sou bruxo por hereditariedade", brinca. "No meu caso, o que interessa é a bruxaria ligada ao feminino, com significado de rebeldia e subversão. Eu era um menino frágil e feminino. Odiava a agressividade do mundo masculino. O mundo feminino sempre foi mais atraente e acolhedor para mim. Eu entendo a fluidez, mas minha bruxaria é a poesia, minha mágica, onde faço sozinho as experiências que quero."

Sua mãe, pernambucana, cantava música de fossa para ele dormir. "A coisa que mais me formou humanamente foi minha mãe me fazendo cafuné e cantando canções de desgraças amorosas. Fui formado nisso: imagens e metáforas de fracassos de amor", conta.

A impressão que fica para quem o conhece hoje é que as canções de Maysa e Nora Ney cantadas pela mãe acabaram desenvolvendo na criança uma sensibilidade emotiva e uma intensidade amorosa que continuam presentes no adulto.

"Fui uma criança sensível. Desde cedo experimentei o senso da beleza." Ele era apaixonado por Wanderléa e tinha roupas idênticas às de Roberto Carlos, cuja costureira morava no mesmo bairro que sua avó materna.

Na primeira vez que foi ao cinema, para assistir ao italiano "Dio, Come ti Amo" (1966), ficou tão impactado pelas cenas de amor que chegava às lágrimas todas as vezes em que ouvia Gigliola Cinquetti interpretar a canção-título do filme. "A questão emotiva é séria para mim. A arte tem que conversar comigo, me emocionar, me mover", afirma.

O universo musical do garoto Eucanaã se expandiu com discos de Scarlatti, Beethoven e Vivaldi que um tio lhe emprestava. Outro tio lhe apresentou Tim Maia. Os primeiros discos que ele próprio comprou eram de Caetano e Bethânia, que lhe passavam um sentido estético mas também de possibilidade existencial. "Ele era magro e feminino como eu; ela era moderna, mas cantava o repertório de minha mãe."

O primeiro contato com um livro de poesia se deu com um volume de "Eu e Outros Poemas", de Augusto dos Anjos, que encontrou por acaso entre os títulos esotéricos do pai. "Fiquei fascinado", lembra. Não havia livrarias onde morava. O mais parecido com isso eram bancas de jornal, e Eucanaã nessa época sonhava em ser jornaleiro, para trabalhar lendo.

O poeta Eucanaã Ferraz posa para foto, no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro (RJ), em 2012 - Bel Pedrosa/Divulgação

Adolescente, comprou em uma livraria em Nova Iguaçu seu primeiro volume de poesias, de Cecília Meireles. Depois, Fernando Pessoa. À medida que se acumulavam as leituras, aumentava seu fascínio pela poesia. O pai queria que ele estudasse medicina, e Eucanaã fez vestibular para letras escondido.
Chegou à faculdade querendo ser poeta, ainda morando com os pais em Mesquita. Escrevia muito, exercitando seu estilo. Formado, começou a fazer mestrado em semiologia, influenciado pelo francês Roland Barthes.

No entanto, passou no concurso para professor e animador cultural em dois Cieps (Centros Integrados de Educação Pública, projeto idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro).

Como animador cultural, mergulhou nas manifestações da cultura popular. Nessa época, trabalhou em projetos teatrais com Augusto Boal em várias localidades do estado do Rio.

"Os Cieps foram a grande reinvencão da educação no Brasil. O Rio teria outra realidade se o projeto tivesse seguido adiante", avalia. No trabalho, lidava com crianças carentes e sentia-se interessado no mundo real. Não lhe pareceu ser o momento de estudar semiologia.

No Ciep de Nova Aurora, conheceu a alagoana Graça, alfabetizadora no projeto, com quem está casado há 33 anos. Ele diz que se apaixonou irremediavelmente quando Graça fez uma observação sobre as flores estampadas em um de seus vestidos de infância.

Moravam no mesmo bairro, e Eucanaã fez o pedido de casamento no ônibus, a caminho do Ciep no qual ambos trabalhavam. "Graça é um dos meus temas poéticos, meu amor, minha melhor amiga, tenho com ela uma relação inamovível, que sustenta qualquer instabilidade no fluxo," define. Como diz um de seus amigos, o escritor Francisco Bosco: "Não existe Eucanaã sem Graça".

O reconhecimento público de Heloísa Buarque de Hollanda, professora e crítica que o incluiu na seleção "Esses Poetas: uma Antologia dos Anos 90" (Aeroplano, 1998), serviu como confirmação íntima de seu trabalho poético. Além disso, situou-o entre autores de sua geração, na qual encontrou interlocutores e fez amigos. Poetas que mais tarde se tornariam emblemáticos, como ele.

"Eu me apaixonei pela poesia de Eucanaã Ferraz sem conhecê-lo pessoalmente, o que foi bom, considerando-se o quão sedutor ele é", comenta Heloísa.

A poesia dessa "geração 90" trazia visões da periferia, mas era culta e trabalhada, ecoando Mallarmé e João Cabral de Melo Neto. Eucanaã mostrava tanto adesão quanto alguma diferença. "Eu nunca fui muito de referências intelectualizadas. O que procuro é a dignidade no poema. Meu poeta, no fundo, era o Drummond, que alia à construção uma abertura radical para o mundo", afirma. Não por acaso, fez mestrado sobre Drummond e doutorado sobre João Cabral.

Depois de já ter publicado dois volumes de poesia no Brasil —"Livro Primeiro" (edição do autor), de 1990, e "Martelo" (7Letras), de 1997— , seu terceiro livro, "Desassombro", de 2001, acabou curiosamente saindo primeiro em Portugal, publicado pelas Quasi Edições, dos escritores portugueses Jorge Reis-Sá e Valter Hugo Mãe. A edição brasileira, do ano seguinte, recebeu o prêmio de poesia Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional.

Eucanaã mantém uma relação muito especial com Portugal e com a poesia portuguesa. "[A poeta] Sophia de Mello Breyner é uma das mulheres de minha vida." No último mês de dezembro, ele recebeu o prêmio Oeiras, um dos maiores em Portugal para poesia. O livreiro Rui Campos, da Livraria da Travessa, seu amigo, brinca: "Eucanaã em Lisboa é tratado como um príncipe".

Eucanaã não tem perfil nas redes sociais. Suas relações são as que a vida lhe apresenta pessoalmente. O artista plástico Raul Mourão esclarece: "Ele gosta de conhecer gente, tem curiosidade pelas pessoas, a vontade de interagir é um traço dele".

Outra amiga, a cantora e compositora Adriana Calcanhotto, considera que Eucanaã de alguma forma preservou a qualidade infantil de estabelecer amizades quase que imediatamente.

O amigo e poeta Antonio Cicero o apresentou a Caetano Veloso, de cujas letras se tornou organizador e de quem também virou amigo. Foi outro amigo poeta, Waly Salomão, que o apresentou a Calcanhotto e a mulher dela, a cineasta Suzana de Moraes, falecida em 2015, que, por sua vez, o aproximou da obra de seu pai, Vinicius de Moraes.

Eucanaã e Antonio Cicero acabaram organizando a "Nova Antologia Poética" de Vinicius para a Companhia das Letras. "Vinicius mudou minha poesia, me libertou, virou uma espécie de amigo. Devo muitas coisas a ele", reconhece.

Uma das dívidas terá sido o primeiro contato pessoal com Maria Bethânia, no programa Poesia e Prosa sobre Vinicius apresentado pela cantora no canal Arte 1, em 2018. Dois anos depois desse, ele teve um sonho e enviou para a cantora um exemplar de seu livro infantil "Cada Coisa" (2016), com ilustrações suas e de Raul Loureiro —"dos meus livros, o que eu mais amo".

Daí surgiu o convite para o programa "Tabuleiro", com Bethânia, para a rádio digital do Instituto Moreira Salles, a Rádio Batuta, o que Eucanaã considera "um dos coroamentos" de sua vida.

É irônico e ao mesmo tempo inspirador que um menino que não teve livros na infância torne-se autor de livros infantis. "É difícil escrever para criança. Existe um código que você tem de dominar, que envolve muita coisa, de psicologia a linguagem", observa. "Não escrevo para crianças evitando temas, e a experiência com a linguagem tem que ser tão ou mais radical que a utilizada para adultos."

Ele sabe do que fala: seu livro de poemas infantis "Em Cima Daquela Serra", com ilustrações de Yara Kono (Companhia das Letrinhas, 2013), por exemplo, teve mais de 3 milhões de exemplares distribuídos pelo projeto Leia para uma Criança, do Itaú Social.​

Apesar desse mergulho no universo infantil, Graça e Eucanaã decidiram não ter filhos. "Não foi uma decisão fácil. Se o preço for ficar velho e sozinho, que assim seja." Quanto à experiência do amor incondicional que a paternidade incluiria, explica: "O meu amor ao mundo já é incondicional. Tenho essa experiência. O amor que eu tenho de dar ao mundo, eu dou. Sinto-me emocionalmente completo com a vida que levo".

"Tenho real inclinação pedagógica, por isso virei professor. Dou aula na universidade faz 15 anos e quero que meus alunos entendam a poesia como uma experiência de vida. Adoro ser professor. Gosto de dividir com quem posso o que sei e o que não sei. O que chamo de ‘inclinação pedagógica’ quer dizer também que gosto de ser aluno. Ouço com interesse qualquer pessoa que saiba fazer algo e que esteja disposta a explicar o que sabe. Meu negócio é espalhar e recolher, espalhar de novo e reunir", resume.

Segundo Veronica Stigger, que dividiu com ele tarefas de curadoria, Eucanaã sabe e gosta de trabalhar em grupo, "com tudo o que isso significa, que é ouvir o outro".

"Eu me entrego às pessoas em meu trabalho, e ele tem de falar por si. Escritor precisa de engajamento, de um prolongamento ético de seu trabalho. É bom que haja manifestação pública nas redes sociais, mas eu não tenho interesse. O caráter ético do que faço acontece nas minhas aulas e no que crio. Assim como a poesia, considero minha atividade como professor ação política. Nas minhas aulas, estimulo pensamento crítico e tento garantir aos meus alunos espaço de reflexão detida e cuidadosa da conjuntura da realidade brasileira, com liberdade total."

Prossegue: "Meu trabalho é um ato de liberdade. Tento mostrar a importância da poesia como a mais alta realização da potência intelectual e emotiva de uma pessoa. Quero apresentar a possibilidade de imaginar uma vida alternativa. Isso deveria estar ao alcance de todas as pessoas. Essa é minha ambição".

O poeta Fabricio Corsaletti diz achar que a intensidade e a paixão de Eucanaã vêm sempre acompanhadas de rigor profissional. "Ele gosta de trabalhar, gosta de coisas bem feitas", diz. Nas palavras do próprio Eucanaã, "exijo dedicação, não aceito o desleixo".

Mas em qualquer que seja o projeto, é sempre a identidade de poeta que se impõe. "Não me considero crítico, nem mesmo intelectual, eu sou só poeta. O que quer que eu faça é poesia, poesia em ação. Meu modo de aproximação em qualquer trabalho é sempre poético. Tudo o que faço é fruto de um exercício poético. Na universidade, é um poeta dando aula, nas colaborações de curadorias, é um poeta agenciando obras."

José Miguel Wisnik, compositor e professor de literatura brasileira na USP, afirma acreditar que a relação de Eucanaã com o mundo é sempre filtrada pela poesia. "Na sua obra, tudo pode ser falado, tudo pode ser assunto. Tudo pode se converter em matéria de poesia imediatamente."

Fica a impressão de que ele seria um prodígio, uma quase improbabilidade estatística: uma criança sensível, filho único de pais amorosos e indulgentes, crescido na Baixada Fluminense, que nunca encontrou barreiras familiares à expressão de sua sensibilidade indômita.

Ele diz só fazer as coisas que ama, mas essa seletividade não limita o seu gênio artístico. "Sou altamente apaixonável, sinto-me com 19 anos, sempre. Tenho muitos sonhos e realizo muitos deles, mas não faço projetos. As coisas acontecem."

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