Início do PCB foi marcado por debilidade ideológica, apontou Astrojildo Pereira; leia artigo

Em autocrítica, líder de comunistas nos anos 20 escreveu sobre equívocos da direção do partido

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Astrojildo Pereira

Nascido em 1890, se engajou no movimento anarquista e nas lutas operárias no Rio de Janeiro na década de 1910. Aproximou-se do comunismo depois da Revolução Russa e foi um dos fundadores do PCB (Partido Comunista do Brasil) em 1922. Expulso do partido em 1930, se afastou da política e passou a se dedicar à crítica literária. Autor, entre outros livros, de "Crítica Impura", "Formação do PCB" e "Machado de Assis"

[RESUMO] Publicado originalmente em 1954, este artigo é parte de "Formação do PCB", que discute as origens do comunismo no Brasil e a primeira década de existência do partido. Lançado em 1962, por ocasião dos 40 anos do PCB, o livro ganha agora, no centenário de fundação da agremiação, nova edição da Boitempo e da Fundação Astrojildo Pereira.

​Algumas observações autocríticas

As grandes lutas operárias que se desenrolaram no Brasil a partir da greve geral de São Paulo, em julho de 1917, e se multiplicaram por todo o país até 1920, revelavam não só um vigoroso espírito combativo, mas um verdadeiro espírito revolucionário, se bem que ainda espontâneo e elementar, inspirado, sobretudo, pelo exemplo da revolução vitoriosa na Rússia.

Já desde o começo da Primeira Guerra Mundial, em 1914-1915, o proletariado brasileiro lançara-se à frente da luta popular contra a guerra, em favor da paz entre os povos; e a onda de greves, que se seguiu ao movimento pela paz, era uma demonstração de que a capacidade combativa da classe operária crescia de mais em mais.

Retrato de Astrojildo Pereira, cofundador do PCB (Partido Comunista do Brasil) - Instituto Astrojildo Pereira/Divulgação

Mas estávamos num país de estrutura semifeudal e semicolonial; faltava-nos uma tradição marxista; nosso proletariado de formação recente e heterogênea (de origem escravista, artesanal e imigratória) havia seguido até então, em suas organizações e suas lutas, dois caminhos igualmente falsos —de um lado, sob a influência social-reformista, mistura de economismo sindical e de reformismo legalista ou parlamentar, e, de outro lado, sob a influência anarcossindicalista, que se perdia em desbragado verbalismo "revolucionário".

Sem uma direção política, esclarecida e firme, que só um partido proletário de orientação marxista podia imprimir ao movimento, a onda de greves e as lutas de massa, espontâneas e irresistíveis, se esvaíram quase sem deixar vestígios, além de algumas conquistas econômicas parciais.

Mas ficou a experiência, e essa experiência levava a compreender claramente a necessidade de um partido da classe operária, organização política independente, ao qual incumbiria precisamente a missão de dirigir as lutas operárias. O exemplo da Revolução de Outubro era concludente e servia também para mostrar que era preciso buscar outro caminho, diferente daqueles até então seguidos.

Nasceu assim o Partido Comunista do Brasil, em 1921-1922, como legítima expressão de uma necessidade sentida pela classe operária, que fazia na prática o seu aprendizado de marxismo.

Aprendizado que se prolongaria ainda por muitos anos, irregular, difícil, sofrendo os percalços de uma série de condições adversas, tanto de ordem objetiva quanto de ordem subjetiva; aprendizado que se confunde com a própria história da origem, da fundação e do desenvolvimento do partido.

Compreende-se que a ausência de uma tradição marxista (basta lembrar que o "Manifesto Comunista" de Marx e Engels só foi publicado entre nós, sob a forma de livro, em 1924) havia de tornar ainda mais difícil, nas condições do nosso país, a tarefa de extirpação das influências reformistas e anarquistas, que perduravam no movimento operário em geral, mesmo depois das experiências de 1917-1920, e se refletiam desastrosamente no partido e, sobretudo, em sua direção.

É certo que o partido se formou, historicamente, na luta contra tais tendências estranhas à ideologia marxista, e isto apesar das insuficiências e erros da direção; mas devemos reconhecer que esses erros e insuficiências da direção do partido (refiro-me particularmente à direção em exercício no período de 1922-1930, da qual era eu o principal responsável) contribuíram em larga escala para retardar o processo de extirpação das perniciosas sobrevivências ideológicas que restavam do período anterior a 1917-1918.

Considere-se, por outro lado, que a composição social da direção do partido, nos primeiros anos de sua existência, não obedecia a um critério adequado: intelectuais de origem pequeno-burguesa, operários da pequena indústria, empregados no comércio, artesãos, com a agravante de uma quase absoluta impreparação teórica. Em tais condições, a atividade do partido não podia deixar de ser o que foi, durante anos, caracterizando-se por uma permanente vacilação e por métodos de trabalho extremamente falhos.

Era uma atividade empírica, descontínua, meramente praticista, espontaneísta e burocrática. Poder-se-ia talvez dizer que o partido se desenvolvia e crescia, apesar de tudo, como uma força histórica necessariamente ligada ao próprio desenvolvimento objetivo da classe operária e suas lutas. E é um fato que em mais de uma ocasião o partido permaneceu a reboque de tais lutas.

O partido era constituído, na realidade, por pequenos grupos de agitação e propaganda, o que aliás permitia manter viva a ideia do partido, fazendo sentir a sua presença e a sua palavra —e isto sem dúvida não se deve desprezar. Mas é claro que mesmo essa agitação e propaganda sofria, em seu conteúdo e em seus objetivos, da ausência de uma linha política, determinada e coerente. Essa era a regra, e daí o seu efeito o mais das vezes negativo e até contraproducente.

O partido sempre baseou a sua atividade principalmente nos sindicatos operários, o que lhe permitia uma certa ligação com as massas. Mas ainda aqui padecia o nosso trabalho os efeitos da ausência de uma linha política que não só correspondesse às necessidades imediatas da luta sindical mas exprimisse uma orientação concorde com os interesses gerais da classe operária e da revolução brasileira. Nossa atividade sindical se perdia, também, entre o verbalismo sectário, "esquerdista", e o oportunismo economista puro e simples.

Nossas ligações com as grandes massas, mesmo nos centros operários de maior densidade, eram em geral muito precárias, e é claro que isto, se resultava de toda uma série de profundas incompreensões, ia por sua vez refletir-se de maneira desastrosa em todo o trabalho político da direção.

Não seria razoável dizer-se que a direção do partido, durante o período que estou considerando aqui, não realizou nenhuma tarefa positiva, que contribuísse de alguma forma para o fortalecimento do partido. Mas não é meu propósito aqui fazer história, com a exposição e análise dos acertos e desacertos que se verificaram no período em questão.

Estou apenas fazendo algumas observações autocríticas que possam servir para história do partido e que possam aproveitar, nesse sentido, à preparação do IV Congresso. Limito-me, pois, necessariamente, a acentuar e caracterizar alguns dos mais graves de tais desacertos, como os entendo hoje, no esforço que realizo para compreendê-los.

Chego então à conclusão, que me parece justa e a que me referi no artigo anterior1: que nossa grande debilidade na direção do Partido resultava principalmente de insuficiência de natureza ideológica e teórica, sobretudo na questão fundamental relativa ao caráter da revolução brasileira.

A direção do Partido, pelos motivos que apontei (e ainda outros, que talvez me escapem ou me parecem de menor importância), não possuía capacitação bastante para proceder, do ponto de vista marxista, a uma análise, mesmo elementar, da realidade histórica brasileira. Não possuíamos um conhecimento sequer aproximado da verdadeira situação do país no concernente à sua estrutura econômica e política, às forças sociais em presença, à natureza e ao conteúdo das lutas de classe em seus diversos setores, etc.

Víamos e encarávamos os acontecimentos de maneira superficial, por assim dizer —impressionista, sem nenhuma compreensão dialética da sua verdadeira significação. Não podíamos perceber o que realmente se passava em torno de nós, nem podíamos portanto, imprimir à atividade do partido uma orientação acertada, clara, firme e consequente.

Não compreendíamos sequer o sentido exato da verdade segundo a qual sem teoria revolucionária não pode haver ação revolucionária. Teoria revolucionária significava, para nós, aplicar —mecanicamente, livrescamente— a linha política e a experiência revolucionária de outros povos.

Creio, por fim, que podemos resumir tudo em poucas palavras, dizendo que estávamos sujeitos, em consequência, a uma permanente oscilação entre o verbalismo "revolucionário" de esquerda e o oportunismo de direita na prática.

1 Eis o trecho da referência: "Pretendo abordar, a seguir, a questão que me parece encontrar-se na base de todos os nossos erros, debilidades e vacilações na direção do Partido, durante o período de 1922 a 1930 — a questão do caráter da revolução brasileira. A incompreensão teórica desta questão é que nos levou não apenas a desvios de esquerda ou de direita na aplicação de uma linha política que expressasse com alguma coerência a estratégia e a tática do Partido. A realidade é que toda a nossa atividade — sem dúvida alguma sincera, devotada ao Partido e à classe operária, assinalada não raro por duros sacrifícios pessoais — se desenvolvia caoticamente, sem rumo certo e sem firmeza. Era uma atividade empírica, meramente praticista, espontaneísta, imediata.

Nossa grande debilidade era fundamentalmente uma debilidade de natureza ideológica e teórica.

Veremos isso em próximo artigo".

(Trecho final de artigo do autor, publicado na "Tribuna do IV Congresso", suplemento da Voz Operária de 19 de abril de 1954)).

Boitempo promove debates sobre Astrojildo Pereira e o centenário do PCB

De 28 a 31/3, das 15h às 16h30, no YouTube da editora

28/3: Política e cultura, com José Paulo Netto e Joselia Aguiar (mediação de Luccas Maldonado)

29/3: Intérprete do Brasil, com Antonio Carlos Mazzeo e André Kaysel (mediação de Renata Cotrim)

30/3: Um comunista pelo mundo, com Marly Vianna e Dainis Karepovs (mediação de Fernando Garcia)

31/3: Formação do PCB: testemunho histórico-político, com Sofia Manzano e José Luiz Del Roio (mediação de Renata Cotrim)

Formação do PCB: 1922/1928

  • Quando Lançamento em 8.abr
  • Autor Astrojildo Pereira
  • Editora Boitempo e Fundação Astrojildo Pereira
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