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Inveja do pênis, de Freud, é ridícula e falsa, diz Hélène Cixous

'O Riso da Medusa', referência do feminismo da escritora franco-argelina, chega ao Brasil cinco décadas depois

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Obra da artista Anna Maria Maiolino que está na exposição Mulheres Radicais, na Pina

Obra da artista Anna Maria Maiolino Divulgação

Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

[RESUMO] A escritora franco-argelina Hélène Cixous comenta em entrevista seu livro "O Riso da Medusa", ensaio referencial sobre o feminismo que chega ao Brasil quase 50 anos depois de sua publicação original. Obra convoca as mulheres a escreverem como forma de combater domínio patriarcal e aponta nova visão sobre fundamentos da psicanálise ao desconstruir as ideias freudianas da castração feminina e inveja do pênis.

"É preciso que a mulher se coloque no texto —como no mundo, e na história—, por seu próprio movimento."

A frase está na abertura de "O Riso da Medusa", ensaio referencial do feminismo escrito pela franco-argelina Hélène Cixous. Poeta e dramaturga, pioneira dos estudos de gênero na Europa, ela é uma das fundadoras da Universidade Paris 8 ao lado de intelectuais como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida.

Publicado em 1975 na França em uma edição da revista L'Arc sobre Simone de Beauvoir e traduzido meses depois para o inglês, "O Riso da Medusa" convoca mulheres a escreverem —ofício do qual "foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos"— e se inscreverem na vida política e simbólica, rompendo o silêncio ao qual foram submetidas em um mundo dominado por homens.

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Hélène Cixous profere conferência no Institute for Cultural Inquiry, em Berlim - ICI Berlin/Divulgação

"As mulheres hoje fazem bastante barulho", diz Cixous. "Por isso, imagino que mulheres mais jovens, dos tempos de #MeToo, tenham dificuldade de imaginar como era 50 anos atrás. Mas, quando eu comecei a escrever e a gritar, eu buscava em torno de mim quem gritasse comigo. Não havia ninguém", lamenta.

Cixous diz ter encontrado em Clarice Lispector (1920-1977) a companhia pela qual tanto ansiava. "No Brasil, havia alguém à frente disso tudo: Clarice Lispector, que não lutou pelo direito das mulheres de escrever, mas cuja escrita tem raízes na sexualidade de homens e mulheres e nos mistérios da alma humana e é sintomática da grandeza da mulher", exalta a ensaísta, que dedicou parte de sua obra à escritora nascida na Ucrânia, o que projetou internacionalmente sua literatura.

"Cinquenta anos atrás, você seria um homem", ilustra Cixous à repórter durante entrevista à Folha, concedida virtualmente do apartamento em Paris, que ela divide com seus gatos.

"Eu atacava a intelligentsia que ditava a imagem da mulher e pensava sobre ela, mesmo aqueles que estavam em campos de maior liberdade, como a psicanálise e certo tipo de filosofia", afirma Cixous, cuja obra dialoga tanto com a de psicanalistas como seu amigo Jacques Lacan (1901-1981) e Sigmund Freud (1856-1939), quanto com a de filósofos e seus interlocutores, como Foucault (1926-1984) e Derrida (1930-2004).

"Tudo o que se pensava sobre diferenciação sexual e sobre humanidade estava fortemente enviesado a partir da repressão à mulher. Mesmo meus amigos mais próximos estavam cegos para isso e para o fato de que metade da humanidade era mulher."

Quase 50 anos depois de sua publicação, "O Riso da Medusa" chega agora ao país pela editora Bazar do Tempo, em cuidadosa tradução de Natália Guerellus e Raísa França Bastos.

Para Cixous, a demora na transposição de seu manifesto para diferentes línguas se dá "por motivos políticos e também religiosos" e "pode funcionar como um termômetro do progresso" das mulheres em cada território. No caso brasileiro, fazer essas contas é um exercício tão desconfortável quanto revelador.

"Levamos quase 50 anos para termos esse texto importantíssimo em português, o que revela a invisibilidade de autoras da magnitude de Cixous por aqui", diz a psicanalista Vera Iaconelli, colunista da Folha.

Estudiosa de James Joyce (1882-1941), Cixous fez parte de um grupo de feministas e psicanalistas e foi uma influenciadora de Lacan.

"Ela aponta para uma nova visão sobre fundamentos da psicanálise, como a escuta das 'histéricas', colocadas aqui entre aspas, porque são os homens que as nomeiam dessa maneira a partir de uma lógica falocêntrica", explica Iaconelli, para quem essa lógica não é só dos homens, mas também das mulheres que estão alienadas a ela.

Segundo o psicanalista Rafael Kalaf Cossi, Lacan "recebe as críticas dessas feministas, encabeçadas por Cixous, e desenvolve melhor a psicanálise, articulando sua teoria da sexuação". Essa teoria, afirma, ajuda a pensar a diferenciação sexual a partir de uma lógica não binária, na relação de sujeitos que se colocam na posição de homem ou na posição de mulher, sem necessariamente serem homens ou mulheres, biológica ou socialmente.

Autor de "Lacan e o Feminismo: a Diferença entre os Sexos", Cossi aponta uma tensão entre a crítica feminista e a psicanálise no Brasil. "São críticas que nos fazem avançar, mas que não são tão levadas em conta por aqui. Parece que existe uma dificuldade de trazer para cá os livros das feministas que criticaram a psicanálise. Na Argentina, eles foram publicados há muito mais tempo. Por que no Brasil esses livros demoraram tanto para chegar? É algo curioso e diz muito da nossa cultura."

Para Cixous, "ao longo da história, o grande problema estratégico enfrentado pelas mulheres foi o fato de tantas delas serem misóginas e se tornarem suas próprias inimigas, sem coragem e sem generosidade, de tanto que queriam agradar os homens".

"Elas começaram a se juntar muito recentemente e, quando fizeram isso, perceberam que não estão isoladas e que, juntas, são mais fortes", avalia.

Aos 84 anos, Cixous diz assistir às mobilizações de mulheres de hoje com muito interesse. "É a realização da minha profecia", diz, orgulhosa. "Hoje, vejo mulheres em toda parte, mas o que eu espero é que, em algum tempo, seja possível ver homens e mulheres indiferentemente."

No manifesto que chega agora a mais brasileiras, a escritora incita as mulheres a usurpar do domínio patriarcal a linguagem e as representações que sequestraram suas vozes, seus corpos e seu sexo, relegando a elas o lugar de bruxas ou de histéricas. Para ela, as mulheres escrevem e falam com seus corpos. "Ela se expõe. Na verdade, ela materializa de modo carnal o que pensa."

Esse movimento de abandono da posição de objeto e tomada da posição de sujeito é apontado como precursor de outras transformações sociais e culturais para além da oposição homem-mulher, típica do mundo binário, articulada em prejuízo daquilo que é feminino, relegado a uma posição de inferioridade e marginalidade, dos mitos à psicanálise.

Para isso, Cixous lança mão da poderosa figura da Medusa, cujas línguas faziam com que "os homens saíssem correndo" de horror, e que acaba decapitada na lança da espada de Perseu.

"O meu livro influenciou de tudo em toda parte, não porque eu seja um gênio, mas porque o mito da Medusa é tão poderoso e verdadeiro", afirma. "O fato de ela ser decapitada aponta que ela não pode ter cabeça, não pode pensar."

"A Cabeça da Medusa" é o título de um ensaio, com o qual a autora dialoga, em que Freud faz um paralelo entre o mito e o medo da castração, em um jogo simbólico que caracteriza o genital feminino a partir da ausência de um pênis e que cria as bases para outro fundamento do pensamento freudiano, a inveja do pênis. Trata-se de uma leitura que se convencionou chamar, por motivos óbvios, de falocêntrica.

"A ideia de inveja do falo é ridícula e falsa", ri Cixous, para quem desconstruir essa lógica implica o reposicionamento não só do feminino como também do masculino.

"De tanto afirmar e de implementar o primado do falo, a ideologia falocrática fez mais de uma vítima: sendo mulher, eu pude ser ofuscada pela grande sombra do cetro, e disseram-me: adore-o, esse que você não ostenta", ela escreve. "Mas, com o mesmo golpe, deu-se ao homem esse grotesco e, imagine só, pouco desejado destino de ser reduzido a um só ídolo com bolas de argila. E, como notam Freud e seus sucessores, de ter pavor de ser uma mulher!"

Para Cixous, autora de uma peça de teatro em que desconstrói o caso Dora, de Freud, e a nomeação da histeria feminina, a análise do pai da psicanálise "é certa nisso: o medo da castração é algo que se vê em todo lugar, a todo o tempo, entre os homens comuns".

"Especialmente agora, quando há movimentos de mulheres tão poderosos, homens estão tremendo nas bases porque se sentem realmente castrados. O poder da mulher lhes parece uma ameaça terrível porque eles não foram preparados para isso", sustenta. "Quando crianças, disseram aos homens que o poder era deles. Ou seja, na educação, o mito segue."

A autora aponta como exemplos as reações a mulheres que buscaram o poder, como Angela Merkel (ex-chanceler da Alemanha), Michelle Bachelet (ex-presidente do Chile), Hillary Clinton (ex-candidata à Presidência dos EUA) e Dilma Rousseff. Talvez não seja coincidência que todas tenham sido retratadas como Medusa em algum ponto de suas trajetórias políticas.

"O problema é que os políticos e a esfera política estão muito atrasados. Talvez uns cem anos", diz. "Simplesmente porque querer o poder e lutar por ele, roubar ou ser corrupto são características da cena política que requerem uma veia libidinal primitiva. É por isso que aqueles agraciados com diversão, alegria e riso não enxergam prazer em se embrenhar nessa selva, a não ser que sejam idealistas e acreditem que vão mudar as coisas."

Judia nascida na Argélia, Cixous conta que cresceu sob a urgência do colonialismo e do antissemitismo, em um contexto em que violência sexual e abuso "eram permanentes". "Foi só quando cheguei à França, aos 18 anos, que percebi que o grande inimigo era aquele que subjugava as mulheres. Foi péssimo porque era algo muito primitivo e antigo", afirma.

"Eu não conseguia pensar em um dilema sem outro, sempre multiplicados. Não se pode lutar em um campo só, mas em três ou quatro. O principal deles, para mim, era o campo das mulheres."

Para Aza Njeri, professora da PUC-Rio e pesquisadora de África e afrodiáspora, o texto de Cixous bebe tanto na "luta anticolonial, que estava a todo vapor" quanto "nos protestos de maio de 1968 na França, do qual Hélène participou ativamente ao lado de outros intelectuais da época". "Com isso, ela nos convida a nos apoderarmos dessa força e do nosso corpo para construir uma nova narrativa."

O chamamento da autora para que as mulheres escrevam dá contornos ao que ela nomeia como "escrita feminina", que, ao contrário do que o nome sugere, não é exclusiva das mulheres, mas extrapola a racionalidade engessada do pensamento patriarcal, o mesmo que hierarquiza a diferença sexual, em direção da liberdade de brincar com as palavras e seus efeitos.

"Cixous convoca as mulheres a tomarem a palavra, falando ou escrevendo, para fazer o feminino vigorar –o que não quer dizer que o homem não possa fazer isso também", explica a escritora e psicanalista Betty Milan. "O feminismo dela não implica oposição ao sexo masculino. Por isso, nos anos 1970, defendeu a psicanálise freudiana contra a rejeição das feministas americanas, para quem Freud, por ser homem, deveria ser banido."

Cixous afirma que a escrita feminina "é uma metáfora da abertura para o outro e para tudo o que for possível". "Não se trata de oposição nem exclusão, mas de reunião", diz ela, que empreende no texto um experimento pioneiro de linguagem não binária ao fundir, em francês, os pronomes masculino (ils) e feminino (elles) para criar "illes", traduzido na edição brasileira como "elxs".

"Eu falo em 'elxs'. Não tem porque excluir um do outro. É algo que flui e irriga tudo."

Os experimentos de Cixous com as palavras e seus significados receberam dedicação especial na tradução de Guerellus e Bastos, que pontuam o texto com notas minuciosas sobre os neologismos da autora, entre eles sexto (flexão de sexo e texto) e ginocídio (o genocídio simbólico da mulher).

Ainda que tenha avançado nessa direção, a autora diz ver os imperativos da linguagem neutra do ponto de vista de gênero como um certo exagero do nosso tempo.

"A linguagem inclusiva é um dos sintomas das mudanças radicais dos movimentos nesses tempos —que, às vezes, são radicais demais. A linguagem tem seu próprio desenvolvimento e, na minha opinião, não se pode impor mudanças a ela", pondera. "É um experimento que dá arrepios em muita gente, mas por ora só funciona em pequenos círculos. Pode ser aceito e entrar no mainstream ou não ser aceito e se tornar um fantasma ameaçador para conservadores e reacionários."

Criadora da primeira cadeira de estudos de gênero da Europa, hoje chamado de Centro de Estudos Feministas e de Estudos de Gênero, Cixous afirma ver a recente onda de ataques a esse campo, com demandas pelo fechamento de cursos do tipo nos EUA e na Europa, como um "típico backlash".

"É uma guerra antiga, que existiu ao longo de toda a minha carreira. Fomos reprimidos e abolidos muitas vezes pelo governo francês e tivemos de mudar de nome para resistir", diz. "Agora é diferente: o curso se chama estudos de gênero e é algo mais amplo. Acho que está mais na moda", brinca.

"Primeiro, o curso era composto apenas por estudantes mulheres. Depois, gradualmente, o número de homens foi crescendo até chegar à proporção de metade homens e metade mulheres. Hoje, não é possível diferenciar esses meninos dessas meninas em termos de suavidade e de tranquilidade. Levou 50 anos, e eu tenho certeza que vai continuar."

Ao desatar nós que amarravam as mulheres em um lugar de exclusão e de ausência, a partir de ideias como castração feminina e inveja do pênis, Cixous as liberta para um futuro de protagonismo para a construção de um mundo novo, na linguagem e na vida pública.

"Ela faz frente a uma lógica tecnocrata, que suprime tudo em nós que não temos coragem de reconhecer, que é da ordem do corpo, da poesia, do que sobra. É essa lógica que tem regido as nossas vidas e tem levado o mundo à destruição", aponta Vera Iaconelli. "Cada vez mais estamos precisando de uma expressão que escape da nossa fantasia de controle, de racionalidade que está destruindo o planeta."

Com isso, Cixous subverte a Medusa de horror em esperança, e escreve: "Basta olhar a Medusa de frente para vê-la: ela não é mortal. Ela é bela e ela ri".

O riso da medusa

  • Preço R$ 58 (112 págs.); R$ 42,90 (ebook)
  • Autor Hélène Cixous
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução Natália Guerellus e Raísa França Bastos
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