Descrição de chapéu
Marcelo Ferraz

Lina Bo Bardi, morta há 30 anos, fez arquitetura comprometida com a convivência e as pessoas

'Fenômeno Lina' está em processo de decantação e ainda há muito da obra da arquiteta a ser compreendido

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A foto é feita do térreo para o alto e mostra as passarelas de concreto em forma de V ou seta que ligam dois prédios

Vista das passarelas do edifício do Sesc Pompeia, projeto de Lina Bo Bardi Leonardo Finotti/Divulgação

Marcelo Ferraz

Arquiteto e sócio-fundador do escritório Brasil Arquitetura, foi colaborador de Lina Bo Bardi de 1977 a 1992 e dirigiu o Instituto Lina Bo e P. M. Bardi de 1992 a 2001

[RESUMO] Mulher, estrangeira, casada com o diretor do mais importante museu de São Paulo e intransigente em seus princípios e opções políticas, Lina Bo Bardi, morta há 30 anos, concretizou a fusão de programa com projeto em arquitetura e deixou uma obra profundamente comprometida com o bem-estar geral e a construção do abrigo humano para todos.

Muito se falou e se escreveu sobre Lina Bo Bardi nos últimos anos, culminando recentemente na publicação de duas biografias e no prêmio póstumo da Bienal de Veneza, o Leão de Ouro.

Lina morreu há exatos 30 anos, em 20 de março de 1992, ainda pouco conhecida mundo afora. No Brasil, sua obra começava a ser mais reconhecida e respeitada à medida que a importância do Sesc Pompeia, então em seus primeiros anos (o centro de lazer foi inaugurado em duas fases: a primeira em 1982 e a segunda em 1986), se consolidava.

Retrato de Lina Bo Bardi em 1992 - Juan Esteves - 27.dez.92/Folhapress

O sucesso de sua intervenção radical no conjunto fabril, construído pelos irmãos Mauser nos anos 1930, era tamanho e tão evidente que não poderia ficar fora da agenda da produção arquitetônica da época e do mundo acadêmico. Mesmo os que tentaram tapar o sol com a peneira tiveram que reconhecer a importância de seu original projeto ao se deparar com uma nova luz no cenário da arquitetura brasileira, brilhando no bairro da zona oeste paulistana.

Os críticos eram, em sua maioria, os que apoiaram os 20 anos de ditadura militar e que viam na cultura de resistência e convivência —na qual Lina sempre militou— um inimigo. Eram, também, figuras do próprio meio profissional e acadêmico que negavam a ela, até então, seu merecido lugar no panorama da arquitetura contemporânea brasileira.

Um lugar de importância mais que óbvio, se mirarmos pelos olhos de hoje, 30 anos depois de sua morte. Afinal, o Masp e o Solar do Unhão já eram obras realizadas, mas não haviam sido ainda digeridas e aceitas em meio às correntes hegemônicas do fazer arquitetônico brasileiro.

Lina sempre foi um caso à parte e sabia perfeitamente seu lugar, onde devia estar e acompanhada de quem. Quando se negava a participar de eventos ou publicações que a colocavam no segundo ou terceiro escalão de profissionais brasileiros, diante de nossa insistência para que ela participasse, não hesitava em dizer: "Se for com Niemeyer ou Lucio Costa, eu topo".

O fenômeno Lina está em processo de decantação e há ainda muito de sua obra a ser esmiuçado e compreendido. Mulher, estrangeira, casada com um poderoso e polêmico diretor do mais importante museu de São Paulo, o Masp, discreta e recolhida em sua casa e seu trabalho, mas alimentando lendas e mitos, intransigente em seus princípios e opções políticas, Lina incomodava muito. Uma vez morta, abriu-se o espaço para bons trabalhos críticos, mas também para sua folclorização.

Com os novos ares trazidos ao país pelo fim da ditadura militar, o Sesc Pompeia apontava a arquiteta que fundia programa com projeto, sem possibilidade de separação, em uma retroalimentação mútua que resultava em arquitetura de uso pleno, arquitetura em que todos se sentem em casa, em que todos compartilham e são acolhidos ao mesmo tempo.

Uma verdadeira ação arquitetônica, nos moldes das vanguardas europeias do começo do século 20, retomando a discussão em torno da ideia de obra de arte total, a "Gesamtkunstwerk" de Wagner, ou do Teatro Total, de Gropius e Piscator. Imbuída desse espírito e já com três décadas de Brasil na bagagem, Lina enfrentava a difícil realidade terceiro-mundista.

Muitos poderiam dizer que toda arquitetura sempre foi feita assim: programa e depois projeto. Onde está a diferença? Talvez, revelando um pouco do método de trabalho de Lina, seja possível arriscar argumentos que fazem diferença nos resultados.

Lina começava seus projetos pelo fim. Explico: seu programa consistia em visualizar o projeto pronto e, mais que isso, em uso; pessoas em ação nos espaços, convivendo, se divertindo, criando. Sim, criando, porque a arquitetura não se encerra com o fim das obras, ela se faz viva e vital a partir do momento em que é habitada, no uso e na experiência do espaço.

Lina nunca quis para a arquitetura o simples recipiente de funções, mas algo além: um propulsor de ações, movimentos, encontros, criações e até tensões, arquitetura para fazer pensar, provocar os neurônios. São muitas as polêmicas sobre seus trabalhos, que vão dos cavaletes de vidro do Masp às cadeiras duras do teatro do Sesc Pompeia, passando pelas soluções "pobres", como costumava dizer em tom provocativo sobre a Igreja do Espírito Santo do Cerrado, em Uberlândia, ou chamando de feios o Masp e as torres de concreto do Sesc Pompeia.

Para ilustrar esse método —começar pelo fim—, cito alguns projetos. No centro histórico de Salvador (1986), Lina desenhou (projetou) uma cena de crianças brincando na praça municipal, tomando banho em uma cascata chamada por ela de "cachoeira de Pai Xangô".

Na reforma do Palácio das Indústrias, em São Paulo (1989), para abrigar a prefeitura municipal, ela começou com a imagem de crianças correndo atrás da banda da Polícia Militar em volta do palácio que, para ela, lembrava um castelinho de brinquedo.

No concurso para o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Sevilha (1991), Lina iniciou o projeto com o elenco das comidas que seriam servidas aos visitantes —os sorvetes e os sucos de frutas nativas brasileiras, a mandioca em suas infinitas possibilidades gastronômicas e por aí afora.

Muitos são seus estudos aquarelados e anotações de eventos e cardápios para as festas de inauguração de seus projetos, como na Casa do Benin e no Teatro Gregório de Mattos, na Bahia, ou no Centro de Convivência em Cananeia. Os projetos propriamente ditos viriam em seguida ou à medida que as imagens fossem se afirmando como os verdadeiros programas.

Veja, ainda, em uma das inúmeras anotações de Lina com reflexões sobre os mais variados temas, como ela via a arquitetura nessa perspectiva de programa/projeto: "Para um arquiteto, o mais importante não é construir bem, mas saber como vive a maioria do povo. O arquiteto é um mestre de vida, no sentido modesto de se apoderar de como cozinhar o feijão, como fazer o fogão, ser obrigado a ver como funciona a privada, como tomar banho. Ele tem o sonho poético, que é bonito, de uma arquitetura que dá um sentido de liberdade".

O fato, porém, é que Lina estava nadando contra a corrente em seu tempo de atuação. Combateu fortemente o movimento pós-moderno na arquitetura, acusando seus membros de irresponsáveis diante do "esforço enorme da humanidade em construir um mundo mais justo", livre, sem a exploração dos homens e sem fome.

Em uma de suas anotações, diz: "A dureza, a não elasticidade do sistema ocidental é a causa da não aceitação das vicissitudes humanas. Vide o episódio do Post Modern na arquitetura. Philip Johnson acordou de repente, com 70 anos. Teve medo, o tempo passa — com 70 anos é preciso ser conservador, ‘rever’ o passado".

Sua formação europeia no entreguerras e a vivência dos tempos duros da Segunda Grande Guerra marcaram indelevelmente a sua personalidade. Em uma entrevista ao cineasta Walter Lima Jr. para o documentário "Arquitetura — A Transformação do Espaço" (1982), Lina disse:

"Uma nova arquitetura deveria ser ligada ao problema do homem criador dos seus próprios espaços; uma arquitetura de conteúdos puros, conteúdos que criassem as próprias formas. Uma arquitetura na qual os homens livres criassem os próprios espaços. Esse tipo de arquitetura requer uma humildade absoluta da figura do arquiteto, uma omissão do arquiteto como criador de formas de vida, como artista, e a criação de um arquiteto novo, um homem novo ligado a problemas técnicos, a problemas sociais, a problemas políticos, que abandone completamente a enorme herança mesmo do movimento moderno, que acarreta umas amarras enormes, que são as amarras que produzem a atual crise da arquitetura ocidental. Eu digo ocidental porque o Brasil está tomando parte de uma crise geral da arquitetura que não é somente brasileira, que é uma crise de formalismo, de pequenos problemas, de involuções individuais que nada têm a ver com os problemas do homem atual".

Essa consciência, por outro lado, é que lhe fazia "livre de amarras", como costumava dizer. Não devia seguir moda, modelos, estilos e nem "procurar a beleza, somente a poesia". Ao projetar, procurava mergulhar fundo na realidade do projeto, na geografia física e humana do lugar, tirar daí todas as soluções, ir ao encontro dos anseios, desvendar o programa não evidente, não óbvio. Assim Lina se livrava das amarras. Seu compromisso arquitetônico sempre foi pautado pelas demandas humanas, explícitas e não explícitas.

Isso explica muito de seu sucesso nos dias de hoje. Depois de assistirmos à decadência dos projetos mirabolantes da "arquitetura show", que dominou a cena nas últimas décadas, vemos movimentos de arquitetos e promotores da arquitetura se voltarem àquele fundamento-base —a criação do abrigo humano, seja ele casa ou cidade. Isso está cada vez mais nítido nas bienais, nas indicações e premiações de arquitetos, projetos e ações. Os últimos prêmios Pritzker, o mais importante da área, exemplificam esse movimento.

Em tempos duros, como o que estamos vivendo, as vísceras da sociedade —em nível planetário— se expõem, as mazelas estão por toda parte, a concentração de riqueza nas mãos de poucos é um escárnio. A solidariedade tem que gritar mais alto.

Precisamos de arquitetura e arquitetos que, como Lina, se coloquem a serviço do bem-estar geral, da construção de cidades que não segreguem, que promovam a tolerância entre os diferentes, enfim, que dignifiquem e abriguem a todos indiscriminadamente em uma atitude não somente estética, mas, sobretudo, política.

É utopia? É sonho? Sim, a boa arquitetura sempre foi feita de sonhos. Depois de 30 anos, essa continua sendo a atualidade de Lina.

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