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Fábio Palácio

PCB, criado há 100 anos, atraiu intelectuais e marcou vida cultural brasileira

Partido extravasou o âmbito da esquerda e deu contribuições essenciais para o país

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Fábio Palácio

Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)

[RESUMO]Criado há cem anos, em um momento de iniciativas históricas de modernização do país, o PCB deu contribuições essenciais para transformações políticas, econômicas e culturais, transcendendo limites partidários, e mesmo os da esquerda, para marcar a vida brasileira.

Era o final do mês de setembro de 1908. Em seu solar no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, Machado de Assis agonizava no leito de morte. Na sala principal da casa, Coelho Netto, Euclides da Cunha, Graça Aranha, José Veríssimo, Mário de Alencar e Raimundo Correia antecipavam, com comentários lamuriosos, a saudade que logo se faria sentir em todo o país.

Foi quando, inadvertidamente, um menino de 17 anos assomou ao portão. Pediu licença e se explicou: após saber do estado grave do escritor que tanto admirava, tinha tido a ideia de visitá-lo. Entre tímido e trêmulo, solicitou: "Gostaria de ver o enfermo. Ou deem-me notícias".

Luís Carlos Prestes (à direita) entrega a Candido Portinari sua ficha de filiação ao PCB, sob o olhar do escritor Graciliano Ramos (sentado, de óculos) e na presença de Aydano do Couto Ferraz, Pedro Motta Lima (então diretor do jornal Tribuna Popular) e Álvaro Moreyra - Acervo Projeto Portinari/Divulgação

Após breve burburinho, concedeu-se que entrasse —segundo consta, com a anuência do próprio Machado. O rapaz se dirigiu ao leito do mestre, ajoelhou-se e, reverencioso, beijou-lhe a mão. Despediu-se logo após e saiu.

Euclides da Cunha relatou o episódio em uma crônica emocionada, publicada dois dias depois no Jornal do Commercio. "Qualquer que seja o destino desta criança", dizia o autor de "Os Sertões", "ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade".

Embora o menino tenha dito seu nome —indagado por José Veríssimo já à porta de saída—, a verdade é que nenhum dos que ali estavam jamais chegaria a saber quem de fato era, nas palavras de Euclides, o "anônimo juvenil". Aquela identidade só seria revelada anos depois. Tratava-se do líder político e escritor Astrojildo Pereira, que anos mais tarde estaria entre os nove fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB), em 25 de março de 1922.

Já de início, uma explicação: no início da década de 1960 o partido mudaria a linha programática, e seu nome, para Partido Comunista Brasileiro. Ocorreu então um "racha". Um grupo deixou a sigla, dando origem ao atual PCdoB. Ambos sempre se consideraram os herdeiros da organização fundada em 1922.

O nascimento da legenda, ocorrido sob o influxo da Revolução Russa de 1917, resultou de transformações na sociedade brasileira, que se industrializava e via crescer um nascente proletariado urbano. Segundo o Censo de 1920, o país possuía então 300 mil trabalhadores industriais, concentrados nos ramos têxtil e alimentício. O número não inclui assalariados em transporte, comércio, serviços portuários etc.

Essa nova classe trabalhadora começava a se organizar. Em 1906, ocorreu o Congresso Operário Brasileiro, que lançou as bases para a primeira central de trabalhadores do país. A essa altura, o movimento sindical era dirigido por líderes anarquistas, como o próprio Astrojildo Pereira.

A criação do partido aconteceu quase simultaneamente a outras iniciativas de dimensão histórica, que refletiam os desejos de modernização e democratização. Em fevereiro aconteceu, em São Paulo, a Semana de Arte Moderna. Pouco depois, em 5 de julho, eclodiu o levante do Forte de Copacabana, marco inaugural do tenentismo. Em 9 de agosto, foi fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Um anseio difuso unia atores aparentemente independentes e desarticulados. Eles se moviam separadamente, porém conectados por aquilo que Raymond Williams chamou de estrutura de sentimento, isto é, "um padrão de impulsos, restrições e tons" que, naquele momento, expressava ansiedades e angústias reais, emanadas da falência da República Velha.

Revolução nas tendências artísticas, revolução social na base econômica e revolução democrática nas instituições políticas era o que propunham os setores vanguardistas da sociedade no ano em que se comemorava o primeiro centenário da Independência do Brasil.

Muitos desses avanços acabariam truncados pelas poderosas forças da continuidade social. Outros sairiam da promessa, ao menos em parte, ao longo dos anos seguintes, configurando processos de inovação e emancipação que teriam muitas vezes no Partido Comunista um vetor decisivo.

No que diz respeito ao tenentismo, esse movimento constitui, como escreveu João Quartim de Moraes, "um episódio de rara densidade ético-cívica em nossa história política". Expressão de camadas médias urbanas ligadas às Forças Armadas, o movimento vocalizou tendências modernizantes e antioligárquicas que logo se articulariam aos esforços do Partido Comunista. Em particular após a Coluna Prestes, a "rebelião dos tenentes" encontraria no partido um de seus desaguadouros.

O principal fruto dessa convergência foi a Aliança Nacional Libertadora, organização antifascista de frente única criada em 1935. Empunhando um programa patriótico e democrático, apresentado sob o lema "Pão, Terra e Liberdade", a ANL prestou grandes serviços na luta contra o nazifascismo que campeava no mundo.

Após organizar levantes voluntariosos no Rio, no Recife e em Natal, a ANL foi posta na ilegalidade. Milhares de democratas e comunistas passaram a ser perseguidos. Quadros do partido, como Luís Carlos Prestes, enfrentaram longos períodos de cárcere, exílio ou clandestinidade.

É possível dizer que os comunistas levaram às últimas consequências os impulsos democratizantes do movimento tenentista. O partido teve participação destacada no combate a duas ditaduras: a do Estado Novo e a militar de 1964, contra a qual o PCdoB, guiando-se pelo maoísmo, chegou a pegar em armas, promovendo a guerrilha do Araguaia.

Em razão da repressão e das incontáveis tentativas de liquidá-lo, o PCB teve de passar por inúmeras reconstruções. A primeira delas ocorreu na célebre Conferência da Mantiqueira em 1943. A reunião projetou uma notável geração de quadros dirigentes que inclui Prestes, Carlos Marighella, João Amazonas, Diógenes Arruda, Maurício Grabois, Pedro Pomar e Mário Alves, entre outros.

Mesmo atuando em condições difíceis, o partido deu contribuições importantes para a modernização do país. No plano econômico, os comunistas participaram das principais lutas em defesa da indústria nacional, como a campanha pela implantação da siderurgia —que resultaria na criação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) em 1941— e a campanha "O petróleo é nosso!" —que levou à fundação da Petrobras em 1953.

No plano social, o partido construiu grande protagonismo nas lutas estudantis, feministas e antirracistas, entre outras. Em 1930, o Bloco Operário Camponês, frente eleitoral de esquerda sob direção comunista, lançou o primeiro candidato negro à Presidência da República, o operário Minervino de Oliveira.

A agremiação foi pioneira na defesa da livre organização dos trabalhadores —seja da cidade, seja do campo. Dessa atuação, brotaram conquistas como a jornada de trabalho de oito horas, a licença-maternidade, o direito de greve, a lei de férias e o abono de Natal.

Importantes passos também foram dados no terreno parlamentar. Na Constituinte de 1946, emenda apresentada pelo escritor e deputado comunista Jorge Amado garantiu ampla liberdade religiosa, inclusive para os cultos afro-brasileiros. Na Constituinte de 1988, o partido, com forte atuação nas juventudes organizadas, propôs e aprovou o voto aos 16 anos.

No terreno cultural, os comunistas desenvolveram fortes vínculos com a intelectualidade. Por suas fileiras, como também acontecia em outras siglas comunistas internacionais, passaram importantes intelectuais, escritores e poetas como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Patrícia Galvão (a Pagu), Rossini Guarnieri e Dalcídio Jurandir.

A atuação cultural do partido também ajudou a formar cineastas consagrados, a exemplo de Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, e dramaturgos como Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri. Eles levaram para as telas e os palcos a ideia do nacional-popular, que influenciou experiências como os CPCs (centros populares de cultura) da UNE, o Teatro de Arena e a própria dramaturgia televisiva.

As fileiras comunistas abrigaram músicos de renome, como Cláudio Santoro e Guerra Peixe; grandes personagens da arquitetura e das artes plásticas, como Oscar Niemeyer, Candido Portinari e Di Cavalcanti; esportistas como João Saldanha e cientistas como Mário Schenberg.

Além de realizarem as primeiras traduções de Marx em nosso país, autores ligados ao partido deram contribuições significativas à interpretação da realidade brasileira. Nesse panteão figuram Caio Prado Júnior, Octávio Brandão, Nelson Werneck Sodré, Leôncio Basbaum, Alberto Passos Guimarães, Rui Facó, Ignácio Rangel, Clóvis Moura, Edgard Carone, Jacob Gorender e Paula Beiguelman, entre outros.

Os grandes jornais também tinham suas Redações povoadas de comunistas. O jornalista Cláudio Abramo, com longa história na Folha, afirmou em depoimento que os comunistas eram "disciplinados e comprometidos" devido à sua cultura política.

Veículos como A Classe Operária e outros da imprensa comunista funcionavam como escolas de formação. Por isso, não deve causar espanto o célebre bordão de Roberto Marinho, o grande empresário da Globo, que, instado pela ditadura de 1964 a entregar uma lista de comunistas empregados em sua emissora, afirmou: "Dos meus comunistas cuido eu!".

Mais que um projeto político, o partido configurou uma cultura política que transcendeu limites partidários, extravasou o âmbito da esquerda e influenciou a cultura nacional. A bem da verdade, isso não aconteceu só no Brasil. O italiano Antonio Gramsci fazia notar, argutamente, que o marxismo é "um momento da cultura moderna".

Ao longo desse trajeto centenário, o partido cometeu muitos erros, passou por muitas cisões e jamais chegou ao poder federal. Porém, fundiu-se de múltiplas formas à corrente da história nacional, a ponto do poeta Ferreira Gullar deixar consignado em seus versos: "Quem contar a história do nosso povo e seus heróis tem que falar dele./ Ou estará mentindo".

Essa história caudalosa já estava inscrita no gesto de um segundo em que o menino Astrojildo beijou a mão de Machado como se beijasse a mão do Brasil, de seu povo e sua cultura. Ali, naquele momento, ocorria um encontro de tradições, que se desenvolveria ao longo das décadas seguintes.

O que surpreende não é tanto o encontro em si, mas que Euclides da Cunha, ao presenciá-lo, tenha pressentido que diante de seus olhos passava, furtivamente, o próprio futuro. Na frase final de sua crônica sobre "a última visita" a Machado, Euclides sentencia: "Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade".

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