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Rodrigo Ianhez

Reações à guerra na Ucrânia expõem russofobia e racismo ocidentais

Cancelamento da cultura da Rússia é violência simbólica, sem qualquer sentido prático sobre a guerra

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Rodrigo Ianhez

Historiador formado na Universidade Estatal de Moscou e tradutor, é especialista em história da União Soviética

[RESUMO] Contraste entre a comoção com a invasão da Ucrânia e a indiferença a guerras no Sul Global, como o conflito do Iêmen, expõe racismo ocidental, sustenta historiador. Russofobia, que atingiu Dostoiévski e estrogonofe, ganha contornos macarthistas e pode servir como arma a Putin em sua guerra informacional interna.

Em 2014, teve início uma guerra civil em um país distante que logo escalaria para um grande conflito. Uma ditadura sanguinária interveio no confronto, causando ainda mais mortes e destruição, por meio de intensos bombardeios aéreos. A população civil, como sempre, foi quem mais sofreu diante das hostilidades.

Esse pequeno país é o Iêmen, e a ditadura agressora é a Arábia Saudita, apoiada por Estados Unidos, Reino Unido e França. Um relatório do Pnud (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas) estima o número de mortes direta ou indiretamente atribuídas a essa guerra em 377 mil até o fim do ano passado.

Moradores inspecionam danos de de ataques aéreos da coalizão liderada pela Arábia Saudita contra Huthi Sanaa, controlada por rebeldes - Mohammed Huwais - 18.jan.22/AFP

No entanto, essa, que é a maior catástrofe humanitária da atualidade, recebe pouca ou nenhuma atenção, principalmente se compararmos com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que domina os noticiários há mais de duas semanas.

Os próprios noticiários, aliás, escancararam o motivo central da diferença de tratamento entre o conflito do Oriente Médio e o do Leste Europeu: o racismo.

Viralizaram falas de repórteres e âncoras de grandes veículos de mídia, como BBC, Al Jazeera e CBS, nas quais se destaca o caráter "relativamente civilizado, relativamente europeu" dos ucranianos "de olhos azuis e cabelos loiros", o que amplifica o horror dessa guerra para a audiência ocidental, capaz de se reconhecer nesses "cristãos, brancos" que pertencem a uma "classe média próspera".

Os jornalistas ainda ressaltam que não se trata de um país do Norte da África ou do Oriente Médio, de sírios ou iraquianos, de "refugiados óbvios", pois eles se parecem com uma típica "família europeia que poderia viver na mesma vizinhança" da audiência.

Que fatores explicam tamanha comoção diante do sofrimento de ucranianos em contraste com a indiferença pelo sofrimento das vítimas de guerras no Sul Global?

Além do supracitado racismo, essa guerra não foi perpetrada pelos Estados Unidos e seus aliados da Otan—como na Somália, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, no Iêmen e em tantos outros países do Sul Global—, mas por outro alvo histórico de estereótipos orientalistas, a Rússia.

Aliás, foi necessária uma guerra de agressão para que os ucranianos tenham sido aceitos na comunidade "civilizada", visto que, assim como os russos, a Ucrânia é historicamente identificada como uma nação atrasada nos confins da Europa. Portanto, não podemos compreender essa indignação seletiva sem tratar da russofobia.

A russofobia é muito anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia. Desde que as relações entre o Império Russo e outros Estados europeus se intensificaram no período de Pedro, o Grande, no início do século 18, os eslavos do leste são tratados com desprezo pelas nações ocidentais.

A discriminação contra russos atingiu seu auge durante as Grandes Guerras. Durante a Primeira Guerra Mundial, abundaram caricaturas que representam o rude mujique russo, como um estereótipo do caráter bárbaro dos eslavos, que mais tarde ganharam um tom antissemita, ao associar os bolcheviques com uma conspiração judaica internacional. Essas associações são frequentemente reproduzidas por grupos ultranacionalistas ucranianos.

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler, inspirado na retórica do regime de segregação vigente nos EUA, promovia um discurso escancaradamente racista, segundo o qual os eslavos seriam "Untermenschen" (sub-humanos). Como tal, poloneses, russos, ucranianos e belarrussos estariam destinados a ser submetidos, em uma guerra de extermínio, para servir em regime de escravidão aos senhores arianos, que estabeleceriam latifúndios nos territórios antes habitados por eles.

Tudo isso estava nitidamente exposto no best-seller de Hitler, "Minha Luta", publicado em 1925, anos antes do início da guerra ou da formalização e aplicação desses planos genocidas por meio do Plano Geral do Leste ("Generalplan Ost").

Durante a Guerra Fria, a propaganda anticomunista se valeu da russofobia, e boa parte do discurso ocidental dominante em relação à Rússia segue calcado em uma lógica anacrônica, pautada pela retórica de enfrentamento do perigo vermelho.

Esse padrão sobreviveu à queda do Muro de Berlim e foi acentuado na representação de russos e soviéticos pela indústria cultural: mulheres hipersexualizadas e perigosas, frequentemente no papel de espiãs impiedosas ou de prostitutas, e homens brutos, regularmente alcoolizados, atuando como mafiosos cruéis ou oligarcas inescrupulosos.

De Ivan Drago em "Rocky IV" (1985) à Dominika Iegorova de "Operação Red Sparrow" (2018), passando até mesmo por obras baseadas em fatos reais, como "Chernobyl", os eslavos não escapam da representação estereotipada de vilões frios e aficionados por vodca.

A atual onda de russofobia, desencadeada pelo início da guerra, em 24 de fevereiro, ganhou tons de histeria coletiva na esteira de uma cobertura midiática pautada pela emoção, em detrimento de análises racionais.

Algumas das vítimas colaterais dessa campanha de cancelamento da Rússia, do seu povo e da sua cultura escancaram seu caráter absurdo: um curso dedicado a Dostoiévski —escritor do século 19 que dedicou boa parte de sua vida a combater a autocracia dos czares russos e sofreu anos no exílio siberiano por sua atuação política— foi cancelado na Universidade de Milão-Bicoca, e a Federação Internacional de Gatos baniu felinos pertencentes a cidadãos da Rússia e até mesmo animais criados na Federação Russa de participar de suas competições ou ter seu pedigree atestado.

O Brasil não passou incólume pela onda de protestos anti-Rússia que beiram o ridículo. Um famoso bar de São Paulo anunciou a abolição do estrogonofe de seu menu, ainda que sua versão, rica em ketchup, tenha bem pouca semelhança com a receita original russa.

O fato de algumas dessas medidas terem sido revertidas é um bom sinal que indica que nem todos estão prontos para embarcar no cancelamento indiscriminado da cultura de um país, que atinge artistas mortos, animais, e até a coquetelaria. Essas medidas representam apenas uma violência simbólica, sem qualquer sentido prático que impacte o esforço de guerra ou mesmo a economia da Federação Russa.

Ainda mais grave é o ataque à classe artística do país. Aos artistas russos, é dada a escolha entre suas carreiras no exterior e suas carreiras na Rússia, sem nem mesmo levar em conta o bem-estar de suas famílias, que ainda vivem sob o governo Putin.

Grandes estrelas da música clássica, como o maestro osseta Valery Guerguiev ou a soprano de origem cossaca Anna Netrebko, foram dispensados de algumas das maiores filarmônicas e companhias de ópera do mundo.

Netrebko, uma das mais influentes cantoras líricas da atualidade, chegou a publicar em suas redes mensagens contra a guerra na Ucrânia, mas não se pronunciou condenando abertamente Vladimir Putin. Até mesmo seu marido, o tenor azeri Yusuf Eivazov, não foi poupado e teve contratos rompidos.

Em diversas ocasiões, no contexto da guerra entre Armênia e Azerbaijão de 2020, Eivazov se pronunciou em favor das tropas azeris, chegando até mesmo a visitar a região conquistada pelas forças do presidente Ilham Aliyev, em Nagorno-Karabakh. Esse apoio explícito ao governo do Azerbaijão, encabeçado por uma dinastia reconhecidamente autoritária, não suscitou qualquer reação por parte dos teatros ocidentais com quem o cantor tinha parceria.

Entretanto, a campanha anti-Rússia talvez ganhe contornos ainda mais dignos do macarthismo no que diz respeito ao cancelamento de bolsas, ao boicote acadêmico contra intelectuais e até mesmo a propostas de expulsão de estudantes russos. Tais medidas não discriminam entre putinistas e oposicionistas e, por sinal, ao mirar estudantes russos que vivem no exterior, prejudicam principalmente aqueles que, há anos, vêm se posicionando contra o governo russo.

O excesso nas retaliações já está provocando efeito contrário ao desejado, à medida que grupos de oposição à guerra e a Putin se juntam à indignação diante do cancelamento da totalidade da cultura e do povo da Rússia.

Outro fator contraproducente é o crescente isolamento da população russa devido ao bloqueio de veículos midiáticos estrangeiros e oposicionistas, somado ao banimento de determinadas redes sociais.

Enquanto a maioria das restrições parte do governo russo, a limitação do uso de plataformas como Instagram e Facebook veio como resposta ao anúncio de que o Meta, de Mark Zuckerberg, permitiria excepcionalmente a propagação de discursos de ódio conclamando a morte de soldados russos e do presidente Vladimir Putin no contexto da guerra na Ucrânia.

A medida veio acompanhada da permissão temporária, nas redes sociais do conglomerado, da apologia do Batalhão Azov, uma milícia neonazista ucraniana, anteriormente identificada pelo Meta como uma organização extremista.

O tratamento que diversas plataformas dispensam a veículos de mídia da China e da Rússia vem gerando fortes discussões nos últimos anos. Qualquer meio de comunicação estatal russo ou chinês é sinalizado como tal no Twitter e em outras plataformas, enquanto a BBC, do governo britânico, e a Al Jazeera, da ditadura do Qatar, não recebem a mesma abordagem.

A partir da invasão russa, a situação se agravou, e canais como Sputnik ou Russia Today, que já eram discriminados pelos algoritmos do Google e de várias redes sociais, foram simplesmente expulsos de diversos países sob a justificativa de espalhar desinformação.

Tal quadro apenas acentua a ideia de dois pesos, duas medidas, promovida pelo governo de Putin, e faz com que a população da Rússia fique cada vez mais isolada. Resta saber se tais medidas serão efetivas para minar a popularidade do presidente russo ou, a exemplo de outros países tratados como pária, as sanções e os ataques à cultura e ao povo da Rússia serão um elemento de coesão que fortalece a narrativa putinista.

No front interno da guerra informacional, a russofobia é uma arma que serve ao Kremlin.

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