Descrição de chapéu
Luiz Frias

Apartidarismo é base para jornalismo crítico e independente, diz publisher da Folha

Em aula magna, Luiz Frias comenta evolução da comunicação e dá dicas a novos profissionais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luiz Frias

Publisher da Folha e presidente do Conselho de Administração do Grupo UOL

[RESUMO] O texto abaixo reproduz aula magna proferida pelo empresário Luiz Frias, publisher da Folha, no último 7 de abril, Dia do Jornalista, na Faap. Na ocasião, ele comentou a crescente relevância do jornalismo profissional em um ambiente de proliferação de notícias falsas pela internet, analisou as mudanças tecnológicas no mundo da comunicação e deu dicas práticas para a formação de futuros jornalistas.

Bom dia a todas, bom dia a todos. É uma alegria ver o rosto de vocês depois de dois anos de pandemia. Preparei um texto curto, vou lê-lo rapidamente aqui para vocês.

Eu não sou professor, não sou escritor, não sou intelectual, nem mesmo jornalista. Formei-me em economia na USP e não terminei nenhum dos dois cursos de pós-graduação que iniciei. Estudei e li menos do que devia; e ter começado a trabalhar aos 17 anos não me parece servir de explicação para a falta de leitura.

Ainda assim aceitei, e agradeço, o gentil convite da professora Edilamar e da Faap para estar nesta manhã aqui com vocês, pelo fato de ter desde a infância vivido em um ambiente dominado pelo assunto jornal e por ter trilhado uma vida profissional na indústria da mídia, de telecomunicações, e no que veio a ser chamado posteriormente de indústria da tecnologia.

Jornalista sentado de costas para foto na redação da Folha, em São Paulo. Foto em preto e branco.
Jornalista na redação da Folha, em São Paulo. - Otavio Valle/Folhapress

Espero compartilhar essa experiência e discutir algumas ideias que, de alguma maneira, possam ser úteis na emocionante jornada à frente de cada um de vocês.

Entendo que muitos aqui presentes estão matriculados no curso de jornalismo, mas que a aula também foi aberta para aqueles que cursam comunicações (rádio, TV e internet), cinema e animação, produção audiovisual, relações públicas e relações internacionais.

Planejei comentar três sugestões/palpites práticos para a formação de futuros jornalistas e profissionais de mídia e comunicações e terminar com algumas considerações sobre tecnologia, a abundância e a disponibilidade de informações propiciadas pela rede, algumas palavras sobre fake news e sobre a importância do jornalismo profissional daqui para a frente.

Gostaria de começar falando um pouco sobre Montaigne. Não a avenida luxuosa e famosa de Paris, mas o pensador renascentista francês Michel de Montaigne. Ele nasceu em 1533 e morreu em 1592, vivendo, portanto, 59 anos. Sua existência transcorre no auge do Renascimento e num mundo recém-transformado pelas grandes navegações e pelo descobrimento das Américas.

Como referência, Montaigne estava a dez dias de completar 31 anos quando Michelangelo Buonarroti morreu. E nasceu quase 14 e 13 anos após as mortes de Leonardo da Vinci e Raphael (Sanzio), o pintor, respectivamente.

Teve grande influência sobre numerosos autores do Ocidente, como Shakespeare, Descartes, Voltaire, Darwin, Marx, Emerson, Foucault, Nietzsche e Freud, entre outros. De família próspera, seu avô fez fortuna como comerciante de arenque, e seu pai foi prefeito de Bordeaux.

O filósofo francês Michel de Montaigne - Folhapress

Mas o que gostaria de destacar é a educação sui generis de Montaigne, planejada e executada em detalhe por seu pai. Logo que nasce, é levado para uma pequena cabana, onde vive seus primeiros três anos exclusivamente na companhia de uma humilde família camponesa, de modo a, nas próprias palavras de Montaigne, "atrair o menino para perto das pessoas, e das condições de vida dessas pessoas, que necessitam de nossa ajuda".

Após esses três primeiros anos de vida espartana, Montaigne é levado de volta para o château do pai. Dos 3 aos 6 anos, a educação do menino é atribuída a um tutor alemão, especialmente contratado pelo pai, um doutor que não falava uma palavra em francês, mas fluente em latim, com o objetivo de fazer dessa língua seu primeiro idioma.

O pai também admitiu outros dois auxiliares que falavam latim, com ordens estritas para apenas se dirigirem à criança nessa língua. A mesma regra era respeitada pelos pais da criança e pelos funcionários que ali trabalhavam. Só a partir dos 6 anos é que Montaigne começa a falar e estudar o francês.

Outra curiosidade engendrada pelo pai foi acordar a criança todos os dias com música tocada ao vivo. Diz Montaigne no ensaio "Sobre a Educação das Crianças": "Quanto ao grego, meu pai tencionou que eu o aprendesse metodicamente. Mas de um jeito novo, de forma de brincadeira. Ele fora aconselhado a me fazer apreciar a ciência, mas sem forçar minha vontade, meu desejo; e a educar minha alma com doçura e liberdade, sem rigor nem coação. Alguns pretendem acordar crianças de manhã aos sobressaltos e com violência perturbar seu tenro miolo, meu pai chegou a mandar me acordar ao som de um instrumento, e nunca fiquei sem alguém que me prestasse esse serviço".

Ter como primeira língua o latim facilitou a Montaigne, leitor voraz, ler os clássicos gregos e romanos e colocou a sua disposição a maior biblioteca disponível na época. E nos leva a especular se Montaigne, sem essa peculiar formação, poderia ter escrito os "Ensaios", sua única obra, de três volumes e aproximadamente mil páginas.

Aos 38 anos (lembrando que naquela época poucos ultrapassavam os 40), resolve afastar-se de seus compromissos públicos e delega a administração de seus bens a terceiros. Dentro de uma torre de sua propriedade no château que herdara do pai, Montaigne instala sua impressionante biblioteca e seu quarto. Ali trancado a maior parte do tempo, dedica seus últimos 20 anos de vida à leitura de livros e à redação dos ensaios.

"Nunca viajo sem livros, seja em tempos de paz ou de guerra. Livros, creio, são a melhor provisão que um homem pode levar na jornada de uma vida."

Com essa frase de Montaigne, elenco minha primeira sugestão na formação de qualquer jovem e, em particular, daquele que almeja ser um jornalista ou trabalhar no mundo das comunicações. Leia muito. Leia tudo o que possa despertar seu interesse. Não há como aprender a escrever bem sem escrever, mas ler ajuda muito a escrever bem.

Em mais de 40 anos nesse negócio, nunca vi ninguém escrever bem, com inteligência, clareza, objetividade e estilo, que não fosse um leitor compulsivo. Escreva sempre e muito, mas leia muito mais do que escreva.

E, se for em português, leia Machado de Assis, aconselhava Cláudio Abramo, grande jornalista brasileiro, talvez um dos mais influentes jornalistas, tanto na história da Folha como na do Estado de S. Paulo.

Outra dica é o livro do americano William Zinsser, "Como Escrever Bem", recentemente publicado pela editora Fósforo. Nele aparecem boas orientações como: "Reescrever é a essência de escrever bem".

E, como leitura diária, ao menos a primeira página da Folha, do Estado ou do Globo e, se possível, a do Valor Econômico. Esses jornais fazem uma espécie de "pauta nacional", especialmente em política e economia, influenciando o restante da mídia, inclusive a internet.

Minha segunda sugestão é aprimorar o inglês. Gostemos ou não, o inglês é, no presente, a língua universal. A maior produção de originais tem como idioma o inglês. As melhores traduções são em inglês. A melhor Wikipédia está escrita em inglês. Praticamente todo o atual conhecimento humano está disponível em inglês. Quase tudo é melhor em inglês. O inglês, hoje, corresponde ao latim na época de Montaigne.

A combinação fluência em inglês mais acesso à internet equivale, atualmente, à extraordinária biblioteca de Montaigne do século 16. Com a diferença de ser acessível a todos. O domínio completo da língua inglesa mais o acesso à internet, esse arranjo coloca todo o conhecimento humano ao seu alcance.

Luiz Frias, publisher da Folha, na sede do jornal - Eduardo Knapp/Folhapress

A terceira sugestão advém da discussão de generalismo versus especialização. O desenvolvimento da ciência e a ampliação do conhecimento humano conduzem a uma especialização cada vez maior. Mas a nossa profissão é generalista por definição.

Assim como Montaigne, que não se considerava especialista em nada e escrevia sobre tudo, a notícia pode estar em qualquer lugar, a qualquer tempo. Da crise sanitária à descoberta de H₂O em algum lugar do Sistema Solar, a notícia (ou o roteiro de um filme) versa sobre qualquer assunto.

Some-se a isso o fato de que a notícia é produzida sob a pressão para publicá-la em tempo real na internet ou no intervalo clássico das edições de jornal (ou telejornal).

Há séculos, esse primeiro rascunho da história é produzido no intervalo de tempo mais sagrado na vida da Terra, a alternância primordial entre dia e noite, entre o sono e a vigília: o ciclo de 24 horas entre o fechamento de cada edição diária.

Minha sugestão prática é: dentro do generalismo de nossa atividade, busque alguma especialização. Curse economia se quiser ser um jornalista econômico, por exemplo. Para citar apenas um dos exemplos dentro da Folha: Cláudia Collucci, especializada em cobertura de saúde, fez jornalismo e depois mestrado em história da ciência, MBA na FGV em gestão de saúde e dois fellowships (Michigan e Georgetown), em que pesquisou indústria e tecnologias na saúde.

Aqui gostaria de fazer um pequeno parêntese para falar um pouco sobre o Projeto Folha de jornalismo, que pode ser resumido em quatro palavras: pluralista, apartidário, crítico e independente.

Num ambiente extremamente polarizado como o que vivemos, das quatro características mencionadas, a mais controversa e que mais suscitou ataques ao jornal nos últimos anos é o apartidarismo.

Nós consideramos esse atributo do jornal como uma espécie de salvaguarda para mantê-lo plural, crítico e independente. Não é possível praticar pluralismo, criticismo e independência quando há engajamento em um dos lados. Especialmente em um ambiente em que as decisões são tomadas sob o manto da pressa.

Não é possível garantir equidistância e imparcialidade quando tomamos partido de um lado. É do cotejamento crítico e plural de todas as opiniões, da ampla discussão do contraditório, do escrutínio e dissecação de cada ideia, num processo parecido ao da seleção natural darwiniana, acreditamos, que prevalecem as melhores ideias e emerge a verdade.

Assim, não temos amigos ou inimigos, apenas leitores, que consideramos capazes de formar suas próprias conclusões, sem a tutela do jornal. O jornalismo apregoado pela Folha também estabelece mecanismos de autocorreção, que, de certa forma, o aproxima do método científico, pela autocrítica implacável.

Diariamente publicamos uma coluna chamada Erramos e temos um ombudsman, com estabilidade de emprego durante o exercício de seu mandato, para fazer uma crítica pública do jornal. E fecho o parêntese com um aforismo de Dante, na "Divina Comédia – Inferno": "E, não menos do que saber, duvidar me agrada".

Como último ponto, algumas considerações sobre tecnologia. Em que pesem a atual profusão de desinformação e a enorme quantidade de informações sem relevância, tenho uma visão otimista sobre a internet. Nunca na história tivemos tanto conhecimento, e o seu contrário, disponível para tantas pessoas como hoje. Como disse antes, tendo a crer que, com o tempo, as melhores ideias tendem a prevalecer e sobrepujar as piores.

Alguns atribuem a ideia a Lincoln: "É possível enganar poucos sobre muito por pouco tempo, como é possível enganar muitos sobre pouco, também por pouco tempo. Mas enganar todos sobre tudo por muito tempo é impossível".

Acredito que o papel do jornalismo profissional tende a ser valorizado em um ambiente de fake news. E finalizo com uma frase de Montaigne: "O mundo não passa de tagarelice. Nunca vi homem que não diga mais, e não menos, do que deve". Obrigado.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.