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Dimitri Dimoulis e Theo Dias

Indulto é resquício feudal que deveria ser abolido

Perdão presidencial, como o concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira, é instituto que afronta Estado de Direito

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Dimitri Dimoulis

Professor da Escola de Direito de São Paulo da FGV

Theo Dias

Advogado criminal

[RESUMO] Perdão de pena concedido por Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira deve ser repudiado por seu caráter arbitrário e de enfrentamento ao STF, dizem advogados. Com base em argumentos de tradicionais escolas do direito penal, eles afirmam que o indulto presidencial é um instituto incompatível com princípios do Estado de Direito, como a igualdade e a segurança jurídica, e que deveria ser abolido da Constituição brasileira.

Quatro de junho de 1791. A Assembleia Constituinte da França revolucionária decidiu abolir todas as formas de indulto concedidas pelo rei. Em setembro do mesmo ano, foi estabelecida na primeira Constituição francesa a proibição de o rei exercer competências judiciais, incluindo o perdão de condenados.

Com essas decisões, os idealizadores do Estado constitucional na Europa afastaram o indulto do ordenamento constitucional por esse ser expressão da arbitrariedade e dos "odiosos" privilégios feudais. A lei deve ser a mesma para todos, diziam os revolucionários.

O deputado Daniel Silveira veste terno e camisa escuros com gravata azul. Ao fundo, pode-se ver bandeiras do Brasil.
O deputado Daniel Silveira - Evaristo Sá/AFP

É o que repete o artigo 5º da nossa Constituição. Napoleão Bonaparte reestabeleceu o indulto em 1802, no contexto de sua visão imperial. Não parece ser ele bom conselheiro para o Estado de Direito.

O decreto de graça, um indulto individual, concedido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) gerou discussões sobre sua legalidade e oportunidade. É relevante a análise sobre aspectos jurídicos e políticos do ato, mas o debate deve ir além para incluir as consequências da preservação dessa relíquia institucional em um Estado que pretende ser democrático.

Os filósofos iluministas foram impiedosos críticos do indulto. Kant escreveu que o perdão penal é "a maior injustiça" para as vítimas do crime e uma violação do dever de aplicar as leis sem distinção de pessoas.

Lendo as obras dos fundadores do direito penal liberal —Beccaria, Filangieri, Feuerbach e Bentham—, veremos que todos condenam, sem apelo, o indulto, por ser irracional e por destruir a função preventiva da lei penal. Se o juiz condena hoje, e o presidente da República aniquila amanhã essa decisão, o sistema penal perde credibilidade.

Essa visão parece ingênua. Quem pode garantir que a norma penal será adequada e que os julgadores a aplicarão de maneira correta e isenta? Por isso, os adeptos do perdão de pena o justificam como uma espécie de "válvula de segurança". Beccaria e Bentham rebateram essa ideia em páginas que deveriam ter sido lidas pelos constituintes de 1988 antes de incluírem o indulto entre as competências do presidente da República.

Para os filósofos, os esforços devem se concentrar na confecção de boas leis e na configuração de um sistema penal que leve os juízes a aplicá-las sem parcialidades e segundas intenções subjetivas. Esse é um trabalho incessante de crítica e de correção do sistema. A lei iníqua ou ultrapassada deve ser abolida. O magistrado que deixa de atuar corretamente deve ser responsabilizado.

O indulto pode causar mal maior que a condenação injustificada. Não enfrenta a disfunção do sistema penal e gera novo problema. Permite que pessoa estranha à função de julgar, sem participação no processo penal, apareça de repente na função de vingador, como reencarnação dos "reis taumaturgos" da Idade Média, que curavam doenças tocando a testa das pessoas. Por essa razão, Bentham chegou a dizer que o indulto é cruel —cruel como forma de destruir a autoridade da lei.

Cesare Beccaria, em "Dos Delitos e das Penas", obra mais conhecida do direito penal iluminista, pensava da mesma forma: "[a] clemência é a virtude do legislador e não do executor das leis; ela deve resplandecer no código e não nos julgamentos particulares; mostrar aos homens que os delitos podem ser perdoados e que a pena não é sua inevitável consequência é fomentar a ilusão da impunidade".

Contrapondo-se aos desmandos do sistema penal absolutista, Beccaria propõe um direito penal fundado na moderação e na certeza da punição: "A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança da impunidade".

No final do século 19, o debate penal mudou radicalmente. As discussões sobre as finalidades da pena e sobre a reforma da legislação foram dominadas pela escola positiva, em especial a italiana de Lombroso e Ferri, que rejeitava os pressupostos teóricos da visão liberal, passando a explicar o crime não como produto do livre-arbítrio, como violação do contrato social, mas como ato determinado por fatores biológicos, sociais, ambientais. O "delinquente" é visto como alguém dotado de especificidades próprias, e a pena deve buscar tratamento e reeducação.

Surpreendente é que a escola positiva, que teve muita influência no pensamento criminológico e penal brasileiro, concordava com a escola liberal clássica sobre a necessidade de abolir o indulto. Para os positivistas penais, o chefe de Estado não tem capacidade de decidir quando uma sentença deve ser interrompida.

Essa decisão deve ter como critérios a periculosidade e a reabilitação do condenado, sendo de competência dos juízes, com orientação de peritos criminais. O indulto foi visto como arbitrariedade que flexibiliza as leis com base em decisão não motivada. As premissas teóricas das duas escolas penais são diferentes, mas seus autores convergem nessa avaliação negativa.

O Brasil se depara com a situação de um presidente que decide perdoar um aliado político porque isso é de seu agrado. O ato enseja especial repúdio, pelo caráter arbitrário e pelo sentido político de enfrentamento ao STF.

Mostra também desprezo pelo princípio da igualdade, tal como fizeram os decretos de indulto natalino de 2019, 2020 e 2021, perdoando penas de agentes de segurança pública e de integrantes das Forças Armadas, como se os delitos por eles cometidos merecessem tratamento mais brando que os cometidos por outras pessoas.

São práticas que destoam de uma tradição de décadas, com indultos baseados em critérios impessoais, como tipo de crime e tempo de pena, propostos pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Nos Estados Unidos, o instituto do "perdão presidencial" resiste fortemente aos tempos, embora polêmico. No apagar das luzes de seu mandato, Donald Trump concedeu perdão a diversos aliados, entre eles o ex-assessor Steve Bannon, guru da extrema direita, acusado de fraude.

Também notório foi o perdão preventivo, antes de qualquer denúncia criminal, de Gerald Ford a Richard Nixon no caso Watergate.

Jimmy Carter, no primeiro dia de mandato, cumpriu promessa de campanha e concedeu, mediante condições, perdão a milhares de civis americanos que fugiram ao alistamento militar durante a Guerra do Vietnã.

Bill Clinton concedeu 150 perdões no último dia de mandato, beneficiando o financiador do Partido Democrata Marc Rich, o "pardongate". Muitos perguntaram na época se o indulto podia ser comprado.

A resposta é simples. Se tudo depende da vontade de uma pessoa, não há regra nem limite. Na engenharia institucional do Estado de Direito, o nexo entre direito e democracia, entre legalidade e legitimidade se concretiza mediante a divisão institucional e temporal das instâncias de produção e reprodução legislativas, de forma que ninguém detenha poder exclusivo de decisão sobre o direito.

Essa engenharia tem por finalidade trazer racionalidade, previsibilidade e segurança às relações entre Estado e sociedade civil. A lei se converte no epicentro de um sistema de poder e contrapoder, no qual não há instância ou sujeito com autonomia absoluta para impor sua vontade.

As críticas ao indulto foram retomadas nas últimas décadas pelos constitucionalistas. Muitos estudiosos insistem na incompatibilidade do perdão presidencial com os princípios do Estado de Direito, em particular com a segurança jurídica e a força executiva das decisões judiciais. As contestações levaram a revisões constitucionais que limitaram fortemente os poderes do presidente da República na Itália, em 1992, e na França, em 2008.

Por mais que se busque uma justificativa do indulto como forma de "balancear" os Poderes, não há nenhuma evidência nesse sentido. O presidente da República tem poder de veto em relação às leis e protagoniza a indicação da cúpula do Judiciário. Não seria plausível reconhecer mais um veto contra decisões judiciais.

Se essas últimas sofrerem questionamentos, há sempre possibilidade de recursos, inclusive perante tribunais internacionais. Há também múltiplas formas de revisão e perdão da pena decididas pelo próprio Judiciário com procedimentos formalizados.

Em um sistema prisional como o brasileiro, que se encontra em permanente "estado de coisas inconstitucional", conforme o próprio STF, sempre haverá necessidade de libertar presos por razões humanitárias e de política criminal.

A ampliação de possibilidades de revisão das penas impostas deve decorrer de processos formalizados e por motivos previstos em lei, não do uso da famigerada "caneta" de uma pessoa.

Por fim, o Legislativo pode avaliar a concessão de anistia quando as decisões judiciais se encontrem em claro descompasso com os rumos da política e da sociedade. A anistia decorre de amplo debate e de votações públicas acompanhadas pela imprensa e pela opinião pública —não se decide com uma assinatura, como acontece com o indulto.

O presidente da República não é reencarnação dos reis medievais, que o imaginário da época apresentava como sábios, benévolos e de origem divina, nem sucessor do imperador brasileiro com seus poderes "moderadores".

O indulto sobreviveu institucionalmente ao fogo cruzado de críticas racionais e bem-fundamentadas. Isso não se deve às suas virtudes como instituto do Estado de Direito; deve-se apenas à sua conveniência para o grupo que controla o Executivo.

A atual crise que gerou tantos questionamentos ao indulto poderia dar ensejo a proposta de emenda constitucional para abolir esse resquício de instituições feudais.

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