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Elvia Bezerra

Otto Lara Resende, missivista compulsivo, dividiu aflições e amor com amigos

Seleção de cem cartas endereçadas a nomes como Dalton Trevisan e Fernando Sabino vai ser publicada em 2023

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Elvia Bezerra

Pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no Instituto Moreira Salles, prepara edição de livro com cartas de Otto Lara Resende

[RESUMO] Autor de um romance e poucos livros de contos, Otto Lara Resende, que completaria cem anos neste domingo (1º), foi, em volume de produção, sobretudo um escritor de cartas, atividade compulsiva a que dedicou boa parte de seus 70 anos de vida. Os mais de 7.000 itens de sua correspondência revelam suas várias facetas: o amigo devotado, o frasista que encantava as rodas de conversa e o escritor amargurado diante da criação literária.

Foi por justa razão que, em 1994, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos emitiu um selo com a efígie de Otto Lara Resende, desenhada pelo artista plástico Fernando Lopes. A homenagem veio dois anos depois da morte do jornalista e escritor, que reservou boa parte de seus 70 anos de vida para escrever cartas.

"Acho que ela teve pena de mim", brincou ele certa vez com Dalton Trevisan, a respeito do olhar da funcionária dos Correios quando reconheceu nele o OLR da correspondência. São mais de 7.000 itens do gênero conservados em seu arquivo, hoje sob a guarda do IMS (Instituto Moreira Salles).

O compositor e poeta Jamie Ovalle, à esquerda, com Otto Lara Resende, ao centro, e Vinicius de Moraes, à direita, em 1953. Vinicius de Moraes, de terno e óculos escuros, acende o cigarro de Jamie Ovalle.
O compositor e poeta Jamie Ovalle (à esq.) com Otto Lara Resende e Vinicius de Moraes em 1953. - Divulgação

Considerando-se que os diálogos epistolares nem sempre são equilibrados e que, por isso, ele ficou sem resposta de alguns interlocutores, é fácil entender por que Otto terá enviado mais cartas do que recebeu e guardou.

Nascido há cem anos (1º de maio de 1922), chegou ao Rio, para ficar, em 1946. Desde então, trabalhando muito e nos melhores jornais da cidade, nunca deixou de ter tempo para buscar "aquele estadinho apropriado a cartas", dizia, quando se sentava disposto não só a contar fatos do cotidiano, os mais comezinhos, como também a refletir sobre questões existenciais ou literárias.

De um modo ou de outro, não lhe faltavam graça e gravidade a um só tempo. Era capaz de rir das próprias aflições, assim como podia sofrer profunda e longamente as mais implacáveis angústias. Afinal de contas, dizia de si mesmo, certeiro: "Um poço de contradições".

Há quem considere que o Otto conversador, com sua vivacidade, suas frases antológicas, ofuscou o contista e romancista que ele foi. Felizmente estudos e reedições recentes derrubam essa crença e asseguram o valor de sua obra.

A leitura de sua correspondência, por outro lado, permite a compreensão do abismo entre o homem que encantava as rodas de conversa e o missivista amargurado diante da folha de papel em branco, a expor questionamentos de naturezas diversas. Precisava de amigos para dar notícias de projetos literários, compartilhar ideias e desenvolvimento de personagens, enredos, soluções e frustrações.

No missivista surgem várias personas, a depender do destinatário: escritor acima de tudo com Dalton Trevisan, com quem discute estilo, gostos literários e dores da criação; cronista com Fernando Sabino, que involuntariamente o instiga a produzir crônicas da melhor estirpe; sóbrio com o amigo e historiador Francisco Iglésias, depositário de suas preocupações mineiras; torrencial com Hélio Pellegrino, receptor das manifestações mais arrojadas de seus oscilantes estados de espírito e de sua fraternidade mais amorosa; íntimo com Rubem Braga, a quem admira, ama e protege.

Duas marcas, pelo menos, estão presentes na relação com todos eles: a do firme crítico dos textos que lhe eram submetidos e a do amigo devotado, que muito dá e tudo exige. Nas duas situações, o combustível que o impulsiona é o amor. Não pode ser outro o sentimento que o faz se dedicar com tanto empenho a essa tarefa arriscada.

Tudo se concentra no remetente necessitado de interlocutor para a experiência literária, sua e do outro, assim como no amigo ávido de compartilhar suas perplexidades, seu encantamento com descobertas, inclusive a da paternidade.

Feroz conhecedor da língua portuguesa e rigorosíssimo, antes de tudo, com a própria produção, não reteve para si o saber que adquiriu no Instituto Padre Machado, em Belo Horizonte, fundado por seu pai e onde foi professor de português, francês, história geral e do Brasil.

Esteve a serviço dos amigos. Minucioso, em certa ocasião chegou a escrever quase 20 páginas a Rubem Braga, que lhe confiara a preparação de um livro.

Está claro que Otto não precisava de motivo para escrever cartas, mas por duas vezes teve oportunidade de justificar os excessos do hábito: quando foi adido cultural junto à embaixada do Brasil em Bruxelas, de 1957 a 1959, e em Lisboa, de 1967 a 1969.

Selo dos Correios em homenagem a Otto Lara Resende, missivista compulsivo, em 1994
Selo dos Correios em homenagem a Otto Lara Resende, missivista compulsivo, em 1994 - Reprodução

Ao final da temporada belga, reclamava com Dalton Trevisan: "Se empregasse numa outra atividade o tempo e o esforço que passei, nestes dois anos, a escrever cartas, já teria construído a pirâmide de Quéops".

Pela mesma época, confidenciava ainda a Trevisan: "Talvez então minhas cartas contenham um elemento, quem sabe de desordem, ou de espontaneidade, que minha literatura não tem, pois que a sei mais seca do que precisaria, meio árida, angulosa, dura [...]".

Otto não tinha a menor complacência com sua obra, mas, desprezando-se a segunda parte da afirmação acima, pode-se concluir que, mais que desabafos de um temperamento fluvial, suas cartas pretendem uma experiência estilística.

Isso fica claro no livro "O Rio É Tão Longe", reunião da correspondência a Fernando Sabino. O leitor encontra aí o Otto saborosamente cronista, por exemplo, ao contar as peripécias em um show feito pelo dançarino e também seu cozinheiro, Benedito Macedo, para citar apenas uma. Em momentos como esses, talvez encontrasse o que buscava, do ponto de vista literário.

Além disso, em carta a Hélio Pellegrino, de 1950, depois de ler a correspondência de Jacques Rivière com Paul Claudel, grifou: "Pode ser que tenha sido essa correspondência (Rivière tinha 20 anos ao tempo da primeira explosão, digo, carta) que me tenha posto assim —porque encontro a formulação de algumas coisas importantes, e me encontro a mim, por esse caminho de ficção [destaque do autor]."

Uma seleção de cem cartas suas —endereçadas a Dalton Trevisan, Fernando Sabino, Francisco Iglésias, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga— vai ser publicada em 2023 em coedição do Instituto Moreira Salles e da Companhia das Letras. Será uma oportunidade de se conhecer o escritor que sofreu com as críticas ao livro de contos "Boca do Inferno", de 1957, o segundo título que publicou.

Na correspondência, evidencia-se também o penoso processo de construção de seu único romance, "O Braço Direito", lançado no final de 1963, livro de sua angústia permanente, que reescreveu até a morte, em 28 de dezembro de 1992, sem dar a tarefa por concluída. Naquela mesmo ano, desabafara a Iglésias: "Cartas, tenho escrito aos montes. Tenho até vergonha de contar".

Talvez o leitor se surpreenda ao saber de sua antipatia pela expressão "quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse", criada por ele mesmo para se referir à amizade com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. "Tenho horror a essa história dos ‘4’, mosqueteiros então! Burrice. [...] Mas não adianta. O clichê pegou", confidenciou a Iglésias.

"Estar só é, efetivamente, a fatalidade do homem, e aceitar essa fatalidade, virilmente, aí, nisso, deve residir a sua mais poderosa dignidade." De frases como essa, em carta a Pellegrino em 1951, há centenas, e farão a delícia de quem quiser ampliar o repertório já consagrado do frasista centenário.

Ao mundo epistolar de Otto Lara Resende se aplica a frase de Drummond, quando, a respeito da poesia, afirmou em carta a Zuleika Moreira: "Uma verdade particular, legítima, pode se transformar em verdade universal". Aí está o valor da correspondência de Otto.

Leia trechos da correspondência de Otto Lara Resende

"Você — verdade sabida e repetida — bem merece os coices. Sou, porém, burro sentimental. Bato e assopro. Mesmo sabendo que em nada lhe feriram os golpes daqui vibrados, com ar de quem não quer nada. Você anda insensível a golpes. Você os classifica, rotula os golpes de pequeno-burgueses. Ou os encarcera no círculo hermeticamente fechado de algum dado psicanalítico. Você anda terrível, Hélio velho. Só lhe escrevo ainda, num momento deste, porque você me causa raiva. O que é prova de que você não morreu"

Trecho de carta de Otto a Hélio Pellegrino, de 1º de junho de 1951

"Sua carta de 10 de fevereiro: sobre 'Quincas Borba'. Há bastante tempo não leio o velho Machado (salvo o pouco dele que aqui tenho, aliás, mais em francês!). Vejo que você não participa de meu entusiasmo, que é delirante. Num país como o Brasil o caso Machado me parece gigantesco: de esforço, de consciência, de métier, de vontade, de tudo. Isto quanto à atitude do escritor. Quanto à obra, creio que é ela de longe a melhor que há em nossos pagos brasileiros. Há tempos não leio o 'Quincas Borba', mas me lembro de que gosto muito desse romance, talvez mais 'defeituoso' do que outros, mas também mais completo, onde há um Machado mais complexo (e você sabe que eu sustento que os defeitos do autor também compõem as qualidades de uma obra). Quanto a não ser possível fazer romance só com dois personagens... sinceramente não sei. Seria preciso meditar no assunto. Deve haver por aí muito livro bom, romance, com dois personagens, como hoje está em moda peça com dois personagens e até com um só. Eu, pessoalmente, admiro os romances sinfônicos, orquestrados, com uma multidão de gente borbulhando, mas admiro porque talvez me sinta incapaz de fazê-los — e como tocador de berimbau, sou doido por banda militar"

Trecho de carta de Otto a Dalton Trevisan, de 23 de março de 1959

"Recebi hoje de manhã a sua carta. Afinal, por que me zanguei tanto com Você? Porque Você veio a Paris e não se lembrou sequer de me avisar onde estava [...]. Senti-me frustrado e perdemos uma boa oportunidade para nos encontrarmos e batermos um papo. Admito que minha carta, escrita em cima da bucha, ao primeiro movimento de exaltação, tenha sido antipática, irritante e até grosseira, do que, sinceramente, me penitencio. Foi, porém, uma reação franca, certamente desabrida, mas de amigo, magoado com o que julguei sua indiferença por um possível encontro nosso. É admissível que eu tenha então, até agora, superestimado a sua amizade por mim. Amizade é como esmola: pouca ou muita, não se recusa. Eu contei sempre Você entre os meus melhores amigos. Não vou agora discutir esse episódio e azedar a nossa conversa. Fiquei, acredite, sinceramente desgostoso com tudo isso. Poderia responder à sua carta com uma volta aos fatos, que, a meu ver, me dão razão. Você abandonou os fatos e me mandou uma carta que, confesso, me surpreendeu. Seria melhor que Você se tivesse zangado abertamente, quem sabe generosamente. Em todo caso, tudo isso se desculpa: Você está viajando, deve ter feito a carta também ao primeiro impulso, etc. Permita-me apenas que estranhe a desconfiança que Você manifestou na minha amizade e no meu interesse por Você. Isto me espantou! A minha própria reação nesse episódio não se justificaria, nem teria surgido, se a sua desconfiança tivesse qualquer sombra de veracidade. Pense de cabeça fria e conclua"

Trecho de carta de Otto a Francisco Iglésias, de 21 de fevereiro de 1958

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