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Denise de Sordi

Auxílio Brasil de Bolsonaro é melhor para bancos que para famílias pobres

Empréstimo associado ao benefício favorece setor financeiro e estimula endividamento dos atendidos

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Denise de Sordi

Historiadora, pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Sociologia da FFLCH/USP e na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

[RESUMO] Encerramento do Bolsa Família e sua substituição pelo Auxílio Brasil foi manobra do governo Bolsonaro para angariar votos, em que o ilusório aumento do benefício pago tenta camuflar modelo que favorece as agências financeiras e estimula o endividamento das famílias pobres, em um cenário de colapso da rede de proteção social.

Os motivos para o encerramento do Bolsa Família, um dos maiores programas de distribuição condicionada de renda do país, e sua substituição pelo Auxílio Brasil ficam um pouco mais evidentes por meio da MP 1.106, publicada em 17 de março, e pelos números da fila de espera para cadastro no novo programa. Os efeitos do colapso da rede de proteção social brasileira vão, progressiva e silenciosamente, se consolidando.

A MP 1.106 revela a intenção de financeirização completa e acelerada do acesso aos direitos sociais, antes intermediado pelos programas de transferência condicionada de renda. Se o Bolsa Família operava também com a perspectiva de financeirização a partir de um projeto referendado internacionalmente como de inclusão financeira, abrindo caminho para o acesso aos direitos sociais (saúde, educação) por meio da assistência social, o Auxílio Brasil abre mão de qualquer responsabilidade mínima e de qualquer projeto de sociedade a médio e longo prazo.

Região com famílias atendidas pelo Auxílio Emergencial durante a pandemia e, agora, pelo Auxílio Brasil, que substitui o Bolsa Família - SecomVc no YouTube

O projeto original do Auxílio Brasil previa que o beneficiário que participasse de um curso de educação financeira poderia solicitar um empréstimo consignado de até 30% do valor recebido, com o desconto direto no pagamento dos benefícios.

Essa possibilidade foi retirada durante os debates para aprovação do programa no Congresso, mas a MP não só a trouxe novamente ao programa como também elevou a margem de autorização da consignação para o limite de 40% do benefício, incluindo na armadilha os atendidos pelo BPC (Benefício de Prestação Continuada).

A pobreza se torna, assim, lucrativa para o setor financeiro. Com a liberação do crédito consignado, cria-se um mecanismo gerenciado pelo Estado de transferência direta de renda para agências financeiras. Em um cenário de inflação, desemprego e carestia, o consumo é quase todo destinano às necessidades básicas cotidianas —e a proposta da MP, na prática, é que o acesso ao crédito consignado equilibre a perda do poder de compra dos trabalhadores.

Enquanto a MP segue sendo articulada com sua prorrogação até 15 de julho, o governo federal mobiliza esforços para a troca dos cartões utilizados pelos trabalhadores que recebem o Auxílio Brasil ainda com o logotipo do extinto Bolsa Família. Há, no mínimo, duas questões a serem observadas, porque essa mudança não é meramente operacional.

A primeira questão está relacionada ao que se chama de associação da marca. Essa é uma discussão que precisa ser feita de atentamente. Os programas sociais de transferência condicionada de renda, tal como o Bolsa Família, não deveriam ser eleitoreiros ou limitados à duração de um ou outro governo.

Transferir renda nem sempre foi ponto pacífico na sociedade brasileira. O consenso a seu favor construído nos últimos anos pode ser desmoralizado pela associação de uma marca aos valores do próprio governo, o que, no caso do Auxílio Brasil, tem sido sustentado com a ênfase em uma suposta liberdade individual que se concretizaria pelo acesso facilitado ao crédito, o que na prática não se realiza.

Esvaziado de conteúdo de justiça social, o que sobra ao governo é a tentativa de colorir o Auxílio Brasil, renovar a fachada e vendê-lo como mais completo que o programa anterior por ter aumentado o valor do benefício para uma média de R$ 400.

No entanto, cabe observar que não há aumento real se até 40% deste valor for comprometido com o empréstimo consignado, cujo pagamento é transferido diretamente para agências financeiras. Assim, eleitoreira é a manobra feita para encerrar o Bolsa Família, colocando em seu lugar um programa que despreza todo o conhecimento acumulado pelo país a respeito de políticas sociais.

A segunda questão é o argumento de que a troca dos cartões é necessária para ampliar as possibilidades de seu uso, atrelando-o a um leque de serviços financeiros, como o crédito consignado que desafogaria a demanda por consumo ao ofertar juros mais baixos que os praticados pelo mercado, devido ao menor risco de inadimplência.

Há que se considerar, contudo, o impacto do empréstimo no benefício recebido por famílias de trabalhadores já em condições materiais precárias, pressionadas diariamente por um cenário de economia instável, gastos com saúde e educação, previstos ou imprevistos. Ainda que possam deixar de ser atendidas pelo programa, essas famílias continuarão atreladas à dívida, não havendo mais "portas de saída" pelo poder público.

Pode-se argumentar que essas são questões de planejamento e educação financeira pelas quais os beneficiários devem se responsabilizar. O texto original do Auxílio Brasil, imbuído de percepções errôneas sobre as causas da pobreza e da tentativa de desresponsabilização do governo por sua reprodução, previa que o crédito consignado seria concedido mediante a "participação prévia do beneficiário em curso de educação financeira". Não há ainda, todavia, previsão de como ou quando es se tipo de curso seria oferecido.

Planejamento e educação financeira figuram como um remendo frente ao desmoronamento das políticas e programas sociais, do direito ao emprego formal, à saúde, à alimentação de qualidade e em quantidade suficiente. As causas da pobreza não são individuais e não serão resolvidas pela culpabilização dos indivíduos.

O retrocesso é tamanho que fome e alimentação voltaram à centralidade da pauta sobre desenvolvimento social. Acesso à alimentação digna é um direito social incorporado à Constituição desde 2010. É preciso enfatizar esse direito em um período em que recolher ossos no lixo e morar na rua se impõem como opções de sobrevivência para milhares de trabalhadores.

Entretanto, o Auxílio Brasil não evidencia nenhuma preocupação com essas questões. Sua característica é ser vacilante e, assim, criar um público fidelizado pela dívida, uma vez que o programa está desarticulado da rede de proteção social.

Instrumentos do Suas (Sistema Único de Assistência Social), do CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), do Consea (Conselho Nacional de Soberania Alimentar e Nutricional) e do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) foram interrompidos nos últimos anos. Não há terra firme onde se possa fincar o Auxílio Brasil e sinalizar qualquer projeto político e social de médio ou longo prazo.

O enxugamento do custo social que pôs fim ao Bolsa Família torna-se cada vez mais lucrativo, às custas do desemprego e da fome. É um tipo de gestão da pobreza que gera fila de espera para entrada no Auxílio Brasil de, pelo menos, 1,3 milhão de pessoas, que não contam mais com os sistemas de busca ativa dos serviços de assistência social e que encontram Cras (Centros de Referência de Assistência Social) lotados e precarizados.

Enquanto isso, um cartaz de propaganda do Auxílio Brasil fixado na parede de uma casa na favela de Heliópolis, em São Paulo, mostra um pipoqueiro sorridente e anuncia o "Auxílio que resgata a autoestima". Resta saber de quem.

Propaganda do Auxílio Brasil fixada em parede de casa da favela de Heliópolis, em São Paulo - Nelson Almeida - 21.dez.21/AFP
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