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Brasil precisa de ideias de direita e esquerda, escreve Francisco Bosco

Leia trecho inédito de 'O Diálogo Possível', livro que reflete sobre a reconstrução do debate público do país

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Francisco Bosco

Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de "A Vítima Tem Sempre Razão? Lutas Identitárias e o Novo Espaço Público Brasileiro"

[SOBRE O TEXTO] Este texto é parte do primeiro capítulo do livro "O Diálogo Possível", que será lançado nesta segunda-feira (9) pela Todavia. O ensaísta reflete sobre a polarização político-afetiva no Brasil e defende que, para o país enfrentar seus problemas estruturais, perspectivas de direita e de esquerda precisam ser combinadas.

O que aqui será chamado de polarização, e terá sua formação e seus sentidos investigados, é a instauração de uma dinâmica social político-afetiva que diz respeito ao estabelecimento de afetos inconscientes de ódio ao adversário e gozo com o pertencimento a uma identidade política compartilhada.

Esse ódio e esse gozo impedem a margem de movimentação cognitiva necessária para que se possa pensar e agir de modo não sectário, não dogmático, isto é, reconhecendo eventuais limitações das premissas do próprio campo ideológico ou partidário, bem como reconhecendo a pertinência de eventuais premissas do campo ideológico ou partidário a princípio adversário. Na polarização, como observa o cientista político Sergio Abranches, invariavelmente "o errado é o outro".

Ilustração - Adams Carvalho

Os afetos opostos e simultâneos mobilizados pela polarização impedem, outrossim, o pensamento dialético e adaptativo, que proceda por juízos capazes de integrar diretrizes ideológicas gerais a situações específicas que eventualmente as desafiem.

Há quem se declare a favor da polarização porque vê nela uma condição fundamental do que seria a "verdadeira política", ou seja, uma política transformadora, impulsionada pela explicitação dos conflitos. Chantal Mouffe observa que existem duas maneiras de conceber o político: o enfoque "associativo" e o enfoque "dissociativo". O primeiro aposta na produção de consensos; o outro, no conflito e no antagonismo.

Mouffe considera que o rescaldo do neoliberalismo thatcheriano foi a chamada "terceira via", que, ao propor a elisão do antagonismo esquerda versus direita como base da atividade política, engendrou na realidade o que a politóloga belga chama de pós-democracia, isto é, o esvaziamento de alternativas reais à hegemonia neoliberal, por meio de uma gestão no máximo atenuada das desigualdades e do déficit de soberania popular que caracterizam o neoliberalismo. Com efeito, perguntada certa vez sobre qual considerava sua maior vitória, Thatcher teria dito: "Tony Blair e o novo trabalhismo".

Daí, portanto, Mouffe e Laclau defenderem um retorno ao político, por meio do antagonismo e da disputa por uma nova hegemonia. Estou de acordo com a leitura histórica de ambos, entretanto devo problematizar esse enfoque dissociativo, no contexto da realidade brasileira: qual seria o objeto do antagonismo, no Brasil?

Advogando por um populismo de esquerda, Mouffe dirá que são as oligarquias. Considero a resposta imprecisa e insuficiente. Os problemas a serem combatidos no Brasil não se circunscrevem a uma única classe e nem tampouco são identificáveis por uma única perspectiva ideológica.

O Brasil tem problemas de excesso e déficit de liberalismo econômico, por exemplo. É a um tempo uma sociedade hiperburocratizada, ineficiente e patrimonialista (traços de um capitalismo incompleto), e uma sociedade excessivamente desregulada, ou regulada a favor da concentração de poder econômico e político.

Um populismo de esquerda pode ser útil estrategicamente, à medida que sua retórica polarizante —"eles contra nós"— galvaniza a sociedade civil e mobiliza os de baixo, em prol de mudanças democratizantes. O problema é que essa mesma retórica é obtusa na identificação dos problemas, pois só é capaz de pensá-los unilateralmente.

Para o populismo de direita, "eles" são práticas e grupos sociais que "nós" associamos à esquerda (elites progressistas, "comunistas", Estado pesado, instituições do liberalismo político); enquanto, para o populismo de esquerda, "eles" são práticas e grupos sociais associados por "nós" à direita (as oligarquias financeiras —mas não as encasteladas no Estado—, o capital, o empresariado etc.).

No Brasil, entretanto, os problemas a se enfrentar atravessam práticas da direita e da esquerda, e necessitam de remédios egressos da perspectiva da direita e da esquerda.

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