Como Shakespeare ajuda a entender guerra e autocratas de 2022

Escritores discutem semelhanças entre peças do dramaturgo inglês e traumas de hoje

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Danilo Thomaz

Jornalista e mestrando em ciência política pela UFF (Universidade Federal Fluminense)

[RESUMO] Escritores e estudiosos da obra de William Shakespeare comentam aspectos recorrentes de sua obra –como guerras, epidemias, golpes e tirania– que, 400 anos depois, parecem descrever com perfeição os traumas políticos, sociais e sanitários de hoje.

"O caos realizou sua obra-prima!"

Não poderia ser mais incisiva a notícia da morte de um rei na Inglaterra do início do século 17. Mesmo que a peça em questão, "Macbeth" —não convém dizer seu nome em voz alta, segundo a superstição teatral—, se passe séculos antes e se baseie nas crônicas da Escócia, não era apenas uma metáfora teatral para os ingleses de então.

A história de um general que topa com três bruxas que dizem que ele será rei, profecia que o leva a usar a crueldade a serviço de sua ascensão ao trono, falava ao presente de uma Inglaterra assolada por crises de sucessão e governada por um rei escocês, Jaime 1º, que acreditava em feitiçarias.

Um casal se abraçando em cena de Frances McDormand e Denzel Washington em "A Tragédia de Macbeth", de Joel Coen
Cena de Frances McDormand e Denzel Washington em "A Tragédia de Macbeth", de Joel Coen - Reprodução

Nada parecia mais assustador à plateia composta de todas as classes —naquele que pode ser considerado o primeiro fenômeno da cultura de massa, o teatro elisabetano— que imaginar um bom rei assassinado e sucedido por um tirano. "Começa o mal; pior será o resto", disse o príncipe Hamlet. Assim foi "a luta ganha e perdida" de Macbeth.

A tragédia escocesa, como convém chamar a peça para evitar a ira dos deuses do teatro, esteve em cartaz no teatro Globe há mais de quatro séculos, depois de uma epidemia de peste negra que fechou os teatros de Londres pela segunda vez em uma década. No ano que vem, a primeira edição da obra completa de Shakespeare completará 400 anos.

A obra do bardo, que entrou em decadência a partir de meados do século 17, começou a ser resgatada no 19. Segundo a crítica Barbara Heliodora, o século 20 foi shakespeariano, no que diz respeito à quantidade de montagens, adaptações, estudos e cátedras ligadas à sua obra.

Não é difícil imaginar o motivo. Como naquele mundo em que Shakespeare vivia, entre o medieval e o moderno, o século 20 teve guerras, epidemias, golpes e fortes disputas imperiais.

O que dizer do mundo de hoje, que, quando começava a dar seus primeiros passos claudicantes rumo ao pós-pandemia, se viu diante de uma nova guerra, com todas as suas consequências sociais e econômicas? Um mundo que parece confirmar as piores predileções de Lear –"nada virá do nada"– e leva seus eleitores, na falta de líderes que os inspirem, a se fiar em tiranos que os convençam pela ação?

Sobre essa questão, o cineasta e roteirista Jorge Furtado se lembrou de "Coriolano" (1608), a última das tragédias shakespearianas. Ambientada em Roma, a peça conta a história de um grande general que nutria um profundo desprezo pelo povo, o que lhe custava a eleição de cônsul. Derrotado, o general decide invadir Roma.

"Volúmnia [mãe de Coriolano] tem uma fala em que diz que ação é eloquência. Eu me associo a essa ideia de que a ação seduz. Às vezes, o povo não entende o que está ouvindo, mas sabe o que fazer, porque vê essa ideia de temos que entender o símbolo." Essa reflexão, diz, lhe veio ao buscar compreender as escolhas políticas recentes do eleitorado brasileiro. (No original, em tradução de Barbara Heliodora, "A ação fala, e os olhos do ignorante / Valem mais que os ouvidos".)

"Shakespeare é um grande cientista político", afirma o escritor Rodrigo Lacerda, editor-executivo do Grupo Editorial Record. "A relação do homem com o poder, seja esse homem o detentor do poder ou o súdito, é um tema shakespeariano por excelência."

Segundo Lacerda, estudioso da obra do bardo e autor do ensaio "Cinco Temas Shakespearianos (Válidos Antes, Durante e Depois do Fim do Mundo)", o autoconhecimento, na visão do dramaturgo, é fundamental para o homem público.

"Ele tem que saber as fraquezas, as tentações a que é submetido ao ocupar um cargo de poder. Se não tiver plena consciência desses riscos, vai se trair e usar mal o poder. Ele tem que se ler e saber como se comportar, tem que ler os outros e saber quem está tentando manipulá-lo, tentando fazer com que ele use o poder não para a prosperidade coletiva e a paz, mas para interesses de pessoas e de grupos."

"Essa é exatamente a questão de Hamlet. O fantasma [seu pai] pede que ele mate o rei [Cláudio, seu irmão]. Hamlet fica na dúvida se aquele fantasma é alguém que quer colocar o reino no eixo. Ele passa a peça inteira tentando encontrar algum indício concreto de que esse crime tem uma motivação nobre ou não. É uma peça na qual onde ler a si mesmo e ler os outros é crucial. Ele é o exemplo da busca de um caminho para canalizar a violência para o bem. O caso do Hamlet é bem diferente do de Macbeth", completa.

A pesquisadora Fernanda Medeiros, professora da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e coorganizadora de "O que Você Precisa Saber sobre Shakespeare Antes que o Mundo Acabe" (Nova Fronteira), afirma que, na obra shakespeariana, o conceito de tirania está justamente ligado ao uso do governo em benefício próprio, sempre abordado criticamente.

Medeiros vê em personagens como Macbeth e Ricardo 3º semelhanças com alguns tiranos contemporâneos. No entanto, afirma que não é possível fazer um paralelo preciso entre os autocratas de hoje e os da obra shakespeariana: a realidade perde para a ficção.

"O que a gente está vivendo hoje no mundo, inclusive no nosso país, é uma maneira muito mais apodrecida de qualquer terror que Shakespeare possa ter pensado. Ele conseguiu conceber indivíduos plenos de linguagem e de alguma capacidade de autocrítica. Hoje em dia, essa capacidade de olhar para si parece exterminada no caso de algumas figuras públicas."

A professora acredita que a obra do autor pode nos ajudar neste momento em razão de sua capacidade de explorar a linguagem em todas as suas possibilidades.

"Tem um gesto diante da língua e da linguagem muito necessário para lidar com os desafios que o mundo está impondo a nós, como a ascensão da extrema direita, um certo embrutecimento das elites mundiais e o absurdo da guerra, que a gente nunca imagina que possa voltar a acontecer. Para lidar com tudo isso que é monstruoso em nós mesmos, precisamos de muito raciocínio, inteligência e linguagem para descobrir caminhos."

O professor de Harvard Stephen Greenblatt, autor de "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" (Companhia das Letras), destaca a crise de liderança política como um tema shakespeariano que dialoga com nossa época. "Em seu ciclo inicial de peças históricas, as três partes de ‘Henrique 4º’ mais ‘Ricardo 3º’, Shakespeare esboça o que ele considera ser uma das maneiras pelas quais as nações caem nas mãos de líderes catastróficos."

O processo começa sempre pela falta de liderança, que, segundo o autor, leva a fraturas, ao militarismo e à violação das normas. Isso, por sua vez, acaba desembocando na ascensão de um tirano.

"As falhas [dos governantes] assumem muitas formas. Shakespeare nos fornece muitos exemplos. Variam de líderes com alto grau de competência, mas sem bússola moral, como Cláudio em ‘Hamlet’, a líderes que governaram com justiça, mas enlouqueceram, como Leonte em ‘O Conto de Inverno’, e que não têm consideração pela decência humana, como Saturnino em ‘Titus Andronicus’, o duque da Cornualha em ‘Rei Lear’ e Macbeth na peça que leva seu nome."

Outro exemplo de mau governante —​não um tirano— pode ser visto em "A Tempestade" (1611), tida como a última peça escrita exclusivamente por Shakespeare, antes de regressar à sua terra natal, Stratford.

"Nela, Próspero se fascina com a magia. Ele se descuida da vida pública, volta-se para os livros", diz o advogado e estudioso da obra shakespeariana José Roberto de Castro Neves. Distante do povo, Próspero é apeado do poder pelo irmão e se exila em uma ilha com Miranda, sua filha.

"Ele só consegue se relacionar novamente quando perdoa a sociedade um pouco", afirma Neves, autor de "Medida por Medida, o Direito em Shakespeare" e "Shakespeare e os Beatles – o Caminho do Gênio" (Nova Fronteira).

Liana de Camargo Leão, professora e pesquisadora, está à frente do lançamento das obras completas do autor, traduzidas por Barbara Heliodora. A estudiosa acompanhou a especialista em vida e a ajudava a organizar os tomos agora lançados pela Nova Fronteira –o segundo, com uma nova coletânea de tragédias, comédias e dramas históricos, acaba de sair, reunindo obras como "Henrique 4º" (partes 1 e 2), "Rei Lear" e "Muito Barulho por Nada". Além das peças, há textos de Heliodora que preparam o leitor a um mergulho ainda mais saboroso no universo shakespeariano.

Liana, coorganizadora com Fernanda Medeiros da coletânea "O que Você Precisa Saber sobre Shakespeare Antes que o Mundo Acabe", destaca o papel da guerra em sua obra, que agora dialoga com nosso tempo.

"Durante os seus 52 anos de vida, houve uma guerra sendo travada em algum lugar da Europa. Não é surpreendente, portanto, que na maioria das peças de Shakespeare sejam retratadas guerras, mesmo nas comédias, como 'Noite de Reis', ‘A Comédia dos Erros’ e ‘Sonho de uma Noite de Verão’. Se retratam o heroísmo de soldados e príncipes, igualmente nos provocam a reflexão sobre a futilidade da guerra, levando-nos a indagar sobre quem se beneficia, quais grupos sofrem mais ou menos e quem lucra com a vitória ou a derrota."

A guerra, recorda, não está ausente tampouco da mais célebre das histórias de amor. "O tema de ‘Romeu e Julieta’ é a guerra civil. São os males da guerra civil os maiores inimigos do amor deles."

Outra questão que, para José Roberto de Castro Neves, tem muito a ver com a obra do dramaturgo é a dificuldade, hoje, de enxergar o inimigo. Entre as muitas inovações estabelecidas por Shakespeare, está a inversão dos papéis.

Em "Otelo", por exemplo, o vilão não é o estrangeiro, o forasteiro, mas sim um cidadão veneziano, o alferes Iago. "Até então, o inimigo no teatro era o diferente: o aleijado, o judeu. Em 'Otelo', ele faz uma virada."

Essa inversão de papéis, no entanto, não protege a República de Veneza do mal. O general Otelo acredita que seu alferes, a quem chama de "honesto Iago", é incapaz de traí-lo. Porém, ao ser preterido em uma promoção, Iago resolve destruir seu superior.

"Um oficial de baixa patente que é preterido na carreira militar e, movido por seu ressentimento, decide destruir a República. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência", afirma Geraldo Carneiro, um dos principais tradutores da obra de Shakespeare.

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