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Márcio Macedo

Manthia Diawara reflete sobre contradições da modernidade ocidental na África

Autor aposta em humanismo alternativo ao europeu no livro 'Em Busca da África', que ganha edição brasileira

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Márcio Macedo

Professor de sociologia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

[RESUMO] No Livro "Em Busca da África", Manthia Diawara parte de sua experiência de africano expatriado para refletir sobre as contradições da modernidade ocidental no continente, justapondo as potencialidades de redenção de dramas sociais de países da África às heranças perversas do colonialismo europeu.

O que significa ser negro e moderno? Arrisco a afirmar que, no universo da cultura popular globalizada, o casal Jay-Z e Beyoncé seria um bom exemplo de representação de uma negritude moderna, endinheirada e descolada.

O vídeo da canção "Apeshit" (The Carters, nome artístico do casal) no interior do Museu do Louvre em 2018 aposta em uma espécie de apropriação negra de símbolos fundantes daquilo que entendemos como cultura ocidental.

Cena do videoclipe 'Apeshit' - YouTube/Reprodução

A modernidade ocidental, por outro lado, tem uma dimensão menos glamorosa e talvez até pouco discutida: ela não pode ser dissociada da subordinação de corpos negros mercantilizados no empreendimento escravista ou do colonialismo europeu no continente africano.

O livro "Em Busca da África: Pretitude e Modernidade" (Zahar), de Manthia Diawara, crítico de arte, cineasta e professor de estudos africanos e literatura comparada da Universidade de Nova York, conta uma história pessoal de entendimento dessas relações ambíguas e contraditórias entre modernidade ocidental, continente africano e diáspora africana.

Publicado nos Estados Unidos em 1998, o livro chega ao Brasil com um infeliz atraso de 24 anos. Diawara parte de um enquadramento teórico e de uma proposta estética que incorpora sua experiência de africano expatriado, originário do Mali, formalmente educado na França e nos EUA e professor de uma universidade americana.

O autor afirma, no prefácio à edição brasileira do livro, que escreveu "Em Busca da África" para "refletir de maneira séria sobre a posição da África, em termos poéticos, teóricos e sociais, na mente dos africanos contemporâneos e daqueles dos tempos da diáspora".

No livro, envolto em diálogos com perspectivas teóricas, políticas e estéticas tão diversas como o pan-africanismo, a negritude, o afrocentrismo, o black power e o afropessimismo, Diawara paulatinamente interpreta, classifica, reelabora e desconstrói as práticas sociais de populações negras de países da África Ocidental, da França e dos EUA.

O autor opta pela forma ensaística, o que propicia uma leitura agradável e torna a obra acessível a um público não especializado. Há oito capítulos teóricos e cinco situações com uma pegada mais informal, que fornecem um aspecto pessoal e confessional ao texto.

As situações remetem às experiências de Diawara como professor, lendo e discutindo autores europeus, africanos e afro-americanos junto a um grupo de alunos céticos, ou às suas viagens a Guiné, com o objetivo de realizar um filme sobre o ditador Ahmed Sekou Touré, que comandou o país de 1958 até sua morte, em 1984.

Em seu processo de elaboração do filme sobre Touré, Diawara entrevista intelectuais, busca amigos de infância e interage com pessoas diversas, se deparando com a sua própria idealização da África e refletindo sobre a sua condição de expatriado vivendo nos EUA, que muitas vezes se comporta e se retrata como um afro-americano desconectado da realidade africana.

De forma geral, Diawara pode ser interpretado como um autor que identifica a modernidade ocidental como a possibilidade de redenção dos países africanos de seus problemas de corrupção, pobreza, desigualdades, tribalismo e conflitos étnicos. Nesse sentido, o autor se aproxima da perspectiva liberal kantiana de pensar a modernidade ocidental como um projeto iluminista, no qual a primazia do uso da razão levaria os indivíduos a uma emancipação individual.

O grande problema frente a esse tipo de racionalidade é onde situar fenômenos históricos que bloquearam as promessas da modernidade ocidental aos negros –por meio do tráfico negreiro, do sistema escravista, do racismo e do colonialismo europeu na África.

O autor aposta em autores como Jean-Paul Sartre, James Baldwin, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Malcolm X, Spike Lee e W.E.B. Du Bois, tratando sua produção como aquela que conseguiu captar e problematizar tanto as possibilidades como as ambiguidades da modernidade para as populações negras.

É sintomático o fato de o autor não incorporar no grupo de autores discutidos nenhuma intelectual negra, o que pode suscitar certo desconforto para leitoras e leitores já familiarizados com a crítica oriunda do feminismo negro.

Ao mesmo tempo, com base em Fanon e sua leitura crítica da negritude francófona a partir de uma perspectiva existencialista, Diawara aponta que o psiquiatra martinicano apresentou em sua obra a possibilidade de um humanismo alternativo ao europeu –este não emancipador por não ser capaz de abstrair a raça e por perpetuá-la como uma forma de subalternidade.

Nesse sentido, Diawara se aproxima de autores contemporâneos como o sociólogo britânico Paul Gilroy, que, desde os anos 2000, vem se apropriando do pensamento de Fanon para pensar uma desconstrução da raça, com o objetivo de propor um novo humanismo sem se render a reducionismos que enfatizam a concepção universalizante de "raça humana" como forma de combater o racismo.

A proposta de Diawara, no seu embate com a modernidade, vai ficando mais nítida com o avançar dos capítulos. De forma geral, o autor apresenta a possibilidade de avanços rumo a uma cidadania contemporânea inclusiva, ao acesso à boa vida e à desconstrução da raça e do racismo a partir da forma como os africanos e as populações negras diaspóricas reelaboraram a modernidade ocidental.

Essa proposição é evidenciada por Diawara em suas análises sobre a autobiografia de Malcolm X, a prática artística de entalhar máscaras rituais na Guiné e a manifestação cultural do hip-hop, gestada em Nova York nos anos 1970, que ressignificou estereótipos sobre homens negros para moldar novas formas de produção estética.

Esta situação ainda conta com uma excelente análise de dois filmes blaxploitation –"Shaft" (1971), dirigido por Gordon Parks, e "Super Fly" (1972), de Gordon Parks Jr.– e uma revisão da posição de Diawara sobre um dos primeiros filmes de Spike Lee, "Ela Quer Tudo", de 1986.

"Em Busca da África: Pretitude e Modernidade" ganha sua primeira edição em português em um momento em que vários outros autores negros americanos e africanos chegam às prateleiras das livrarias brasileiras, em edições inéditas ou republicações.

Homem negro vestido com boina e camisa florida
Retrato de Manthia Diawara, nascido no Mali e radicado nos Estados Unidos - Daman Diawara/Divulgação

Um dos livros que merecem ser lidos em conjunto com a obra de Diawara é "Perder a Mãe", de Saidiya Hartman. Assim como o trabalho de Hartman, o livro de Diawara pode ser enquadrado na categoria de literatura de viagem, que tem a África como local de destino.

É a experiência de retorno ao continente africano que apresenta cruamente, tanto a Hartman como a Diawara, as contradições de ser negro, africano e moderno. De certa forma, esses autores fazem de seus livros uma forma de reapropriação parecida ao que Jay-Z e Beyoncé fizeram ao gravar o videoclipe no museu mais famoso de Paris.

Em Busca da África: Pretitude e Modernidade

  • Preço R$ 89,90 (416 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autor Manthia Diawara
  • Editora Zahar
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