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Quem é Verenilde Pereira, pioneira da literatura afroindígena no Brasil

Filha de mãe negra e pai do povo sateré mawé, escritora lançou em 98 'Um Rio sem Fim', romance ainda pouco conhecido

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Rodrigo Simon

Mestre em letras pela USP, doutor em teoria e história literária pela Unicamp e pesquisador afiliado ao Brazil LAB, da Universidade de Princeton

[RESUMO] Desconhecida no meio literário, Verenilde Santos Pereira lançou há quase 25 anos um romance impressionante, "Um Rio sem Fim", pioneiro na ficção afroindígena brasileira ao abordar temas em voga no debate público de hoje, como a representação de grupos marginalizados, a decolonialidade e as intersecções no lugar de fala. Pesquisador da Universidade de Princeton, que organiza evento sobre o livro, comenta a trajetória da escritora.

No conjunto de prédios baixos e de cores terrosas na ponta de uma das asas do Plano Piloto de Brasília, os vizinhos que veem passar a simpática senhora negra nem desconfiam ser ela autora de um dos mais impressionantes livros escritos no Brasil no último quarto de século.

"Um Rio sem Fim", de Verenilde Santos Pereira, está prestes a completar 25 anos. Assim como a vizinhança, a imensa maioria das editoras e dos leitores brasileiros nunca ouviu falar dessa escritora afroindígena e seu curto, mas impactante, romance lançado em setembro de 1998.

A escritora Verenilde Santos Pereira, autora do livro 'Um Rio sem Fim' - Gabriela Biló - 20.abr.22/Folhapress

"Ninguém mesmo sabe que escrevo. Costumam me perguntar em que casa eu faço faxina, mas não me aborreço com isso", diz Pereira, 66, com uma expressão de tranquila sinceridade.

Financiado com recursos retirados do parco salário de professora, o livro não ganhou destaque na imprensa. Encontrá-lo hoje, depois de tanto tempo, é uma missão inglória. Depois dele, ela só publicou mais um título, a coletânea de contos "Não da Maneira como Aconteceu", de 2002.

Ainda assim, o leitor que tiver a chance de ler "Um Rio sem Fim" vai mergulhar em questões fundamentais para a literatura contemporânea. Em pouco mais de cem páginas, o romance conta a história de uma missão religiosa no norte da Amazônia e as consequências para os nativos da região.

Em um refinado trabalho de linguagem, surgem a representação de grupos marginalizados, a decolonialidade, a violência como testemunho, as intersecções no lugar de fala, assim como as fronteiras entre a voz ficcional e o discurso acadêmico.

E uma grande novidade: levada ao centro da narrativa, aparece uma personagem afroindígena, assim como sua autora. Seria, então, "Um Rio sem Fim" precursor da literatura afroindígena? É provável.

É verdade que, procurando bem em nossa literatura, encontramos o "caboco" Capiroba, "filho de uma índia com um preto fugido que a aldeia acolheu", em "Viva o Povo Brasileiro" (1984), mas o personagem era apenas mais um no gigantesco mosaico criado por João Ubaldo Ribeiro.

Macunaíma era indígena e "preto retinto e filho do medo da noite", filho de uma índia tapayuna, povo de pele extraordinariamente escura. Assim, ainda que o herói sem nenhum caráter seja representante das três etnias formadoras do Brasil, Macunaíma não é um afroindígena.

"Esta é uma história que, em gestos mil vezes repetidos, descreve múltiplas formas do gradual esvaziamento daquilo que pertence a um ser", escreve o professor José Gabriel Trindade no prefácio de "Um Rio sem Fim".

Professor da Universidade de Lisboa, ele se refere aos personagens que surgem em meio a uma missão salesiana na região do Alto Rio Negro, responsável pelo envio de crianças e adolescentes a Manaus para tornarem-se "meninas civilizadas".

"Um Rio sem Fim" articula também as relações entre uma narradora anônima e um bispo italiano, uma jovem mestiça, corajosa e insubmissa, uma menina indígena levada aos limites trágicos do "aculturamento", e Lauriano Navarro, velho pajé de uma das mais fortes cenas da literatura recente no Brasil. Revoltados com a maneira como são retratados pelos colonizadores, os indígenas fazem dos livros uma grande fogueira.

"O fogo aniquilava as índias desavergonhadas que viviam prostituídas nas aldeias agindo como as bacantes, levava embora os índios insensíveis que não choravam por um parente morto, fazia desaparecer aqueles mentirosos e criminosos natos, impressos nas páginas em fogo como irresponsáveis, infantis e egoístas exacerbados. Através daqueles doze índios indomados e quase anônimos, concretizava-se, momentaneamente, a ingratidão dos personagens, profetizada pelo autor, e, como num desafio, a potência da noite não foi capaz de tragar aquela fogueira ao redor da qual eles dormiram exaustos."

Verenilde Pereira escreve sobre um universo que conhece profundamente, e, mesmo que um texto literário não deva ser visto como reflexo da vida de seu autor, os aspectos biográficos podem ampliar a dimensão da análise da sua escrita.

Filha de mãe negra e pai indígena do povo sateré mawé, nasceu em Manaus em 1956. Na infância, testemunhou uma batalha interétnica dentro da própria casa, resultado da pobreza e do desenraizamento cultural que levou o pai ao alcoolismo e à violência doméstica, rebatida nas mesmas bases pela mãe que, como defesa, acusava o marido de ser um índio que não sabia nem falar português.

"Uma ferida sangrando uma outra ferida", ilustra Pereira, mostrando, pelo uso da metáfora, o caminho que escolheu para ler e escrever o mundo. Talvez não pudesse ser diferente para alguém que viu a vida dar uma guinada a partir, justamente, da habilidade no manejo das palavras.

Na esperança de conseguir uma vaga no tradicional Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, a pré-adolescente chamou a atenção ao usar um substantivo até então desconhecido por ali. Com amplexo no lugar de abraço, garantiu um lugar na escola que reunia os filhos das famílias manauaras mais abastadas.

"Para as freiras, naquele colégio de elite, foi uma descoberta. Uma menina suja, piolhenta, saber coordenar umas frases, e ainda mais escrever amplexo com X e tudo", relembra, com bom humor, a escritora que seguiria na escola até 1974, quando saiu direto para o curso de jornalismo da Ufam (Universidade Federal do Amazonas)

Na faculdade, Pereira descobriu também a militância indigenista. Colaborou com o Porantim, primeira publicação exclusivamente voltada às questões indígenas, e se uniu à Opan (Operação Anchieta), dedicada à demarcação de terras e preservação da cultura junto às aldeias.

Também lecionou em um seringal a mais de mil quilômetros, ou sete dias de barco, de Manaus. Tais dificuldades, no entanto, seriam nada perto de outro drama.

A escritora Santos Verenilde Pereira, autora do livro 'Um Rio sem Fim' - Gabriela Biló - 20.abr.22/Folhapress

Em 1986, Pereira circulava pela região de São Gabriel da Cachoeira, no norte do Amazonas, preparando reportagens sobre um assunto que ainda permanece em pauta: a invasão de terras indígenas por mineradoras.

Ela conta que recebeu ameaças de empresários do setor de mineração e acabou presa por quatro dias, sob acusação de desacato a autoridade, por se recusar a fornecer informações sobre a apuração das reportagens.

Escritor e um dos principais líderes indígenas do Brasil, Álvaro Tukano diz ter fresco na memória todo o medo que viveu ao lado da amiga. Ele ajudou Pereira a deixar a cidade. O problema foi que o velho Fusca do único taxista local não era páreo para a rodovia BR-307. Com três horas de viagem, o carro entregou os pontos. O jeito, então, foi dar meia-volta, a pé, pela floresta.

"Eram 18h30 quando caiu o último parafuso do carro. Verenilde decidiu voltar. Ela era a mais franzina, mas a mais forte entre nós. Eu quase desmaiei de cansaço, mas ela não desistia. Chegamos depois de nove horas correndo pela selva. Amanhecendo o dia, ela pegou um voo para Manaus e depois outro para Brasília", relembra Tukano.

"Acho que nunca falei tanto de mim", afirma Pereira. "Será que vou experimentar, na velhice, como é ser narcisista? Espero que não."

Na vida e na arte, ela contraria convenções. Não foi diferente com "Um Rio sem Fim", produzido originalmente como uma dissertação de mestrado na UnB (Universidade de Brasília).

A escritora diz acreditar que, diante dos limites da linguagem, só nos resta buscar novos sentidos possíveis, como os que a personagem Maria Assunção elabora em suas fabulações.

"Eu acredito na linguagem literária como discurso que subverte modelos cristalizados. Apesar da importância de outros gêneros, como o jornalístico e o acadêmico, é a literatura que atravessa essas instâncias e tenta chegar naquilo que nos escapa", diz a autora, que, na mesma UnB, realizou seu doutorado sob orientação de Rita Segato, antropóloga argentina reconhecida internacionalmente.

"O que eu secretamente desejava era que a personagem Rosa Maria adentrasse uma universidade com seu silêncio enlouquecido, seu cheiro de tantos desesperos, sua ‘indolência’ tão impura. Uma espécie de vingança que tive que escamotear. Eu busquei levar os personagens a um contexto onde eles não apenas se deixaram avaliar, mas, sobretudo, avaliaram."

A escritora participou recentemente de um debate ao lado do amigo de juventude Ailton Krenak. No segundo semestre, o Brazil LAB da Universidade de Princeton (EUA) organizará um evento sobre sua literatura. Para os estudantes que irão ouvi-la, ela pretende apresentar uma questão que não sai sua da cabeça: o que a literatura suporta dizer e acrescentar sobre esses nossos tempos?

Algumas respostas para essa pergunta podem ser encontradas em "Um Rio sem Fim".

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