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João Cezar de Castro Rocha

Tiranos de Shakespeare explicam golpismo de Bolsonaro

Projeto autoritário do presidente é tão evidente quanto a vilania de Ricardo 3º e Macbeth

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Jair Bolsonaro durante cerimônia de promoção de sargentos da FAB em Brasília Adriano Machado - 1º.abr.22/Reuters

João Cezar de Castro Rocha

Ensaísta e professor titular de literatura comparada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Autor de “Guerra Cultural e Retórica do Ódio (Crônicas de um Brasil Pós-Político)”

[RESUMO] Personagens tiranos de peças de Shakespeare, como Ricardo 3º, Macbeth e Saturnino, se valeram de mentiras, teorias conspiratórias, inimigos imaginários e do incentivo ao uso de armas e violência para tomar o poder, camuflar a debilidade de seus reinados e submeter o Estado a seus caprichos, enredos que guardam assombrosa similaridade com o governo de Bolsonaro.

No livro "Depoimento" (1978), publicado postumamente, Carlos Lacerda enalteceu a atualidade da obra de William Shakespeare para o entendimento do cenário brasileiro:

"O que tinha acontecido no Brasil era o que aconteceu no drama de Shakespeare, e não foi à toa que traduzi esse drama: 'Júlio César'. A mesma multidão que aclamava Brutus e os que mataram César, quando Marco Antônio fez seu discurso com o cadáver de César nos braços, e começou a pedir a morte dos que tinham assassinado César. Foi assim que passei de vítima a assassino de Vargas".

Carlos Lacerda discursa em reunião do diretório da UDN no Rio de Janeiro em 1963 - Iconografia/Memorial da Democracia

Orador célebre pelo brilho, escritor bissexto e golpista por antonomásia, Lacerda reagiu às adversidades traduzindo Shakespeare. A iniciativa se justificava pela cena mencionada: autêntico tratado de ciência política que bem poderia ter por título a adaptação de uma famosa ária de "La Traviata": "A multidão é inconstante".

Corte abrupto: da República romana, no ano 44 a.C., passemos ao Brasil de 1954, mais precisamente em 24 de agosto. Depois de intensa campanha na imprensa, orquestrada por Lacerda, Getúlio Vargas parecia não ter alternativa a não ser renunciar e deixar o poder totalmente desonrado –o verdadeiro objetivo dos conspiradores. Eis que sucedeu o inesperado: Getúlio deixou os adversários sem reação: xeque-mate inevitável.

O autossacrifício de Getúlio produziu um fenômeno de contágio mimético que muito se assemelha à dinâmica da peça shakespeariana. Jornais que fizeram oposição aguerrida a ele foram empastelados, entre eles, claro, a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, seu adversário-mor. O tradutor de "Júlio César", aliás, quase foi linchado.

O problema de atiçar as massas e apostar no caos é que ninguém pode antecipar com segurança qual será a direção dos ventos. A não ser que se deseje semear tempestade para colher oportunidade.

O vilão assumido

A Guerra das Duas Rosas chegou ao fim, depois de um longo inverno de 30 anos, com o triunfo da família York, que derrotou o grupo adversário dos Lancaster. Tempos de festas e celebrações, portanto, mas não para todos, se recordarmos "Ricardo 3°" (cito a tradução de Carlos Alberto Nunes).

O duque de Gloucester, irmão do rei Eduardo 4°, se sente fora de lugar. Afinal, "antes do tempo/ lançado ao mundo vivo, apenas feito/ pela metade, tão monstruoso e feio", em circunstâncias tão adversas, como brilhar nos jogos amorosos? Para driblar o ostracismo social, o duque decide se tornar rei.

Para tanto, precisa destituir o monarca, levar o outro irmão, o duque de Clarence, à desgraça, e assassinar seus dois sobrinhos, herdeiros em linha direta de Eduardo 4°. Nada que uma estratégia impiedosa não resolva. Eis a técnica que emprega para chegar ao poder:

"Por meio de conjuras, arriscadas
insinuações, insanas profecias,
pasquins e invencionices, notável ódio
mantenho entre o monarca e o irmão Clarence".

No vocabulário das redes sociais, o duque de Gloucester se converte no rei Ricardo 3° recorrendo a fake news e a teorias conspiratórias. O próprio vilão esclareceu as regras do método: o emprego de "bem aceradas mentiras e argumentos poderosos" que, associados à intimidação simbólica e à violência física, conduziram-no ao trono –por pouco tempo, vale recordar.

Inseguro, dada a origem espúria de seu reinado, Ricardo 3° desconfiava de inimigos inexistentes e inventava tramas fantasiosas. Em suma, menos governava que se preocupava em se perpetuar no poder, a fim de permanecer impune por seus muitos crimes. Isolado, não lhe restou apoio algum. Perdeu o reino e, sobretudo, seu cavalo.

Armas acima de tudo

"Tito Andrônico" é a peça mais controvertida do teatro shakespeariano. Por muito tempo, se duvidou de sua autenticidade, pois se trata da obra mais violenta de Shakespeare. Há um excesso quase caricato de mortes e com tal requinte de crueldade em sua execução que os admiradores do bardo consideraram o texto apócrifo.

Uma antológica encenação de Peter Brook, realizada em 1955, permitiu a reavaliação da peça. Uma temporada posterior na Bulgária foi fundamental: os púcaros búlgaros ensinaram que a violência desmedida habita o cotidiano de certas residências na Terra.

O caso eu conto como Brook o contou: enquanto se inquietava com a encenação das ações bárbaras de "Tito Andrônico", uma notícia paralisou Sófia. Um homem foi preso e, ao ser submetido a torturas brutais, preferiu se aventurar por uma janela convenientemente aberta. Porém, no instante da queda livre, o instinto de sobrevivência se impôs e o pobre se equilibrou no peitoril da janela.

Êxito de bêbado equilibrista. Coerente com sua vocação, o algoz decepou suas mãos, como se fosse uma cena não escrita da peça shakespeariana.

O que pensaria Peter Brook de um país no qual o presidente elogia um torturador abjeto? Onde uma menina de 12 anos é estuprada e assassinada e uma criança de 3 anos é lançada em um rio caudaloso para encontrar a morte? Onde toda uma aldeia yanomami é incendiada e seus sobreviventes desaparecem?

Tudo está dito na abertura da peça, no apelo do futuro tirano Saturnino (cito a tradução de Barbara Heliodora):

"Patrícios, que defendem meu direito,
Tomem armas pra defender-me a causa.
Patrícios, seguidores que me amam,
Reclamem minha sucessão co’a espada".

Em recente ato de campanha, o presidente Jair Bolsonaro esboçou um autorretrato involuntário: "Quero que todo cidadão de bem possua arma de fogo para resistir, se for o caso, à tentação de um ditador de plantão". O presidente de plantão almeja se tornar ditador para se perpetuar no poder por meio das armas.

Por isso, necessita calar as palavras e fingir que desconfia das urnas, da imprensa, da universidade, da cultura. Desacreditar as instituições é somente mais um passo em sua arquitetura da destruição. Abolir todas as mediações é outro modo de dizer tirania, palavra-chave no teatro shakespeariano.

O rei e o tirano

O teatro shakespeariano é essencialmente político, mas em sentido amplo, ou seja, o autor desenvolveu uma poderosa reflexão acerca da melhor forma de convívio na pólis. No período da rainha Elizabeth 1ª, o gesto era corajoso, já que a monarquia inglesa estava em processo de afirmação.

No léxico do dramaturgo, o eixo da atividade política reside na oposição entre o rei e o tirano. O rei subordina suas paixões e vontades ao bem comum. O tirano aparelha o Estado para atender a seus interesses e caprichos e subverte a ordem para proteger seus familiares e cúmplices.

O rei é recompensado pela narrativa de atos justos. Já o tirano é assombrado pela memória de crimes. No teatro shakespeariano, ele quase nunca consegue dormir em paz: como conciliar o sono reparador com a consciência de iniquidades e perversões inúmeras?

Não exagero, tampouco forço a nota. Penso em "Macbeth" (cito a tradução de Carlos Alberto Nunes).

O futuro rei da Escócia enfrenta um obstáculo grave para realizar sua maior ambição: o trono está ocupado por um parente próximo, o rei Duncan, também conhecido como o Bom. Pois é!

Contudo, orientado pelas profecias ambíguas de três feiticeiras, que trazem à superfície seus desejos mais profundos, e instigado por lady Macbeth, que era muito mais mulher que o marido era homem, Macbeth assassina o rei Duncan, abrindo caminho para o trono, porém fechando as portas para qualquer possibilidade de autocontrole.

Logo após o regicídio, Macbeth compreende a extensão da sombra que não mais o deixará: "Uma voz pareceu-me ouvir, aos gritos/ de: ‘Não durmais! Macbeth matou o sono!’".

O remorso produziu o temor que tornou o reinado puro tremor. Macbeth se revelou um rei instável, incapaz de governar. Ilegítimo, ele sonha com inimigos de papel, especialmente quando está com os olhos bem abertos, mas não necessariamente livres.

Sentindo-se ungido, Macbeth crê em sua invencibilidade. Porém, tudo perde quando a palavra certa, sempre ela, acerta em cheio sua imagem e o poder lhe escapa. Macduff, o nobre que desfere o golpe decisivo, chama as coisas pelo nome próprio: "Mostra o rosto, tirano!".

Queremos saber quem paga para o Brasil ficar assim: na barbárie-Bolsonaro.

Uma mancha, muitas manchas

Lady Macbeth não fala em línguas, mas se perdeu de si mesma, na imensidão de seus malfeitos: "Aqui ainda há uma mancha. Sai, mancha amaldiçoada! Sai! Estou mandando. Um dois... Sim, já é tempo de fazê-lo. O inferno é sombrio... Ora, marido".

Um curioso caso, no entanto, tão atual: quanto mais lava as mãos, mais sangue delas brota –purificação às avessas, violência em estado de dicionário que emudece a palavra e contém o sagrado. Lady Macbeth enlouquece porque se arrepende. Está claro.

O projeto autoritário do presidente Bolsonaro é explícito como a vilania de Ricardo 3° e não supõe arrependimento. Faça-se um elogio ao capitão reformado para não ser expulso do Exército em desonra: ele nunca ocultou seus propósitos, jamais disfarçou sua natureza de tirano.

O golpe se arma diante de nossas retinas tão fatigadas: há um Bolsonaro no meio do caminho da democracia brasileira e precisamos reagir com a urgência de Iago, "even now, now, very now" –ou, desde sempre, será muito tarde.

Não importa se o procurador-geral da República se acovarda, sussurra e tartamudeia, muito embora o caráter inamovível do cargo que ocupa lhe autorizasse a gritar aos quatro ventos.

Não importa se o presidente exonera qualquer servidor da Polícia Federal que ouse investigar seus familiares e seus cúmplices. Um dia os escândalos virão à tona: cem anos, por vezes, não passam de 8 meses.

Não importa se o conluio Jair Bolsonaro-Arthur Lira seja o mais nefasto da história republicana e tenha parido o maior escândalo de que se tem notícia a céu aberto: o orçamento secreto.

No teatro shakespeariano, os tiranos são derrotados –uma e outra vez e de novo. Derrotados por suas fraquezas e inseguranças, mas também e, sobretudo, pelo repúdio da opinião pública.

Macbeth dos tristes trópicos, a floresta começa a caminhar em sua direção.

A lição das coisas, não sei se dura ou caroável, é nítida: não temos tempo, tampouco direito de ter medo.

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