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Vinícius Silva Alves e Pedro Paulo de Assis

Datafolha usa métodos equivocados ao apontar predomínio da esquerda no país

Fatos políticos recentes contradizem pesquisa e levantam dúvidas sobre seus critérios

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Vinícius Silva Alves

É doutor em ciência política e diretor de dados e métodos do OddsPointer, iniciativa que reúne dados das principais pesquisas e elabora prognósticos eleitorais

Pedro Paulo de Assis

Pedro Paulo de Assis é cientista político e coordenador de desk research do OddsPointer, iniciativa que reúne dados das principais pesquisas e elabora prognósticos eleitorais

[RESUMO] Cientistas políticos argumentam que pesquisa do Datafolha parte de critérios e interpretações questionáveis para afirmar que a sociedade brasileira se identifica mais com a esquerda. A ausência de autodeclaração ideológica e a classificação dos entrevistados a partir de conceitos rígidos construídos artificialmente, desconsiderando temas que podem se associar ou não à esquerda e à direita, comprometem a segmentação mais precisa dos eleitores e turvam o entendimento da eleição que se aproxima.

No último sábado (4), a Folha divulgou pesquisa do instituto Datafolha que aponta um crescimento da esquerda no eleitorado brasileiro, de 2013 até hoje . Segundo o levantamento, 41% dos brasileiros se identificavam com o espectro ideológico da esquerda em 2017 (contra 40% da direita), número que teria se ampliado agora para 49%, maior número já registrado na série histórica da pesquisa.

A divulgação dos dados gerou grande expectativa sobre o potencial eleitoral da esquerda nas próximas eleições. À luz dos recentes eventos da política brasileira, esse resultado parece contraintuitivo. E, de fato, é.

Como entender que não temos uma sociedade conservadora quando a mesma pesquisa identifica que 65% dos brasileiros defendem que "adolescentes que cometem crimes devem ser punidos como adultos", 79% entendem que "acreditar em Deus torna as pessoas melhores" e 83% afirmam que "o uso de drogas deve ser proibido porque toda a sociedade sofre com as consequências"?

Manifestantes da esquerda e da direita separados em Brasília, no dia da votação do impeachment de Dilma Rousseff - Diego Padgurschi - 17.abr.16/Folhapress

Como esta sociedade seria marcadamente favorável à esquerda se metade dos entrevistados acredita que "os sindicatos servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores"? Poderíamos interpretar esses dados como indícios de uma classificação equivocada?

Considerando esse suposto avanço da esquerda, seria difícil compreender, por exemplo, o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), o avanço de pautas conservadoras no Congresso, a eleição de Jair Bolsonaro (PL) e mesmo o expressivo crescimento no desempenho eleitoral de partidos de direita em 2020, responsáveis por aproximadamente 54% dos votos para prefeito e 59% para vereador.

Indícios dessa relativa desconexão podem ser vistos na mesma pesquisa. Muito embora seja tratada como a eleição mais polarizadas da história recente do país, que colocaria em polos rígidos e opostos dois segmentos da sociedade, 29% dos eleitores de Bolsonaro dizem se identificar com pautas econômicas e comportamentais que a pesquisa caracteriza como associadas à esquerda.

Afinal, o Brasil experimentou um crescimento de seu eleitorado em direção à esquerda ou viu avançar a direita nos últimos anos? Onde estariam as razões para a divergência no quadro interpretativo sobre a política nacional? Aqui há duas questões a pontuar. Primeiramente, conforme já demonstrado por estudos da área de comportamento político e eleições, a ideologia não necessariamente se converte em voto.

Ademais, escolhas metodológicas na condução do estudo, como a atribuição de pesos homogêneos a questões com diferentes níveis de saliência para delimitação de espectros distintos, entre outras discutidas a seguir, comprometeram a interpretação dos resultados e o grau de precisão para dimensionar a distribuição ideológica do eleitorado.

Sobre a conversão de ideologia em votos, não é novidade que o resultado de uma eleição não é unicamente fruto da identificação programática. Os arranjos no nível dos partidos condicionam a competição a partir da oferta de candidatos e distribuição de recursos. Isso explica, em parte, o avanço da direita no Brasil.

Em recente pesquisa publicada em coautoria com o professor Antonio Lavareda, examinamos a votação dos partidos agregados em campos ideológicos de 1982 a 2020 e identificamos o aumento crescente do desempenho eleitoral das legendas de direita. Em especial, argumentamos que desde 2012 é possível identificar um aumento eleitoral dos partidos desse campo ideológico, o que se edifica a partir das eleições subnacionais.

Em relação aos aspectos metodológicos, o instituto Datafolha é irretocável do ponto de vista da coleta de dados sobre questões relevantes que permeiam a opinião pública brasileira, como tem feito historicamente, por exemplo, nos levantamentos eleitorais.

No entanto, é preciso destacar que as conclusões de uma pesquisa são intimamente condicionadas às decisões metodológicas que os pesquisadores rotineiramente tomam para viabilizá-la e, neste caso, entendemos ter ocorrido um equívoco sobre a interpretação dos resultados. A seguir destacamos aspectos analíticos sensíveis e passíveis de crítica, que recomendam bastante cautela sobre as conclusões apresentadas.

Em primeiro lugar, ao invés de abordar diretamente a questão, indagando aos entrevistados como se posicionariam no espectro ideológico, o estudo classifica os eleitores a partir de uma escala aditiva, segmentando grupos por meio de pontuação alcançada por cada entrevistado, que manifesta sua concordância sobre frases que a pesquisa associa apenas à esquerda ou à direita.

Muito embora sejam utilizadas com frequência em pesquisas, as escalas aditivas têm sido muito questionadas por estudiosos em comportamento político. Neste sentido, todas as questões foram tratadas igualmente, ainda que algumas possam ser mais importantes para a classificação proposta, algo que alimenta a controvérsia em torno da interpretação dos resultados.

Adiante, as pontuações para pertencimento a cada um dos grupos (esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita) variam substancialmente (de 0 a 6, de 0 a 10 e de 0 a 12). O centro ocupa apenas um ponto em todas essas escalas, fazendo com que as escalas com maior amplitude induzam a um esvaziamento do ponto médio, em detrimento das demais.

Vale destacar, ainda, que as conclusões da pesquisa agregam esquerda e centro-esquerda de um lado, direita e centro-direita de outro, tornando ainda menos clara a delimitação dos pontos do espectro. Se a crítica acerca das escalas pode parecer mero preciosismo, a dicotomização das frases que associam algumas das pautas selecionadas à esquerda ou à direita soa bastante problemática.

Ao ligar diretamente alguns temas que podem atravessar simultaneamente ambos os campos ou mesmo não se associarem de maneira incontroversa a um ou outro, o estudo compromete uma segmentação mais precisa dos eleitores em relação ao espectro ideológico em que poderiam se situar.

É razoável questionar, por exemplo, se alguns setores da direita que se distanciam de seu ponto extremo de fato aderem à pena de morte como "a melhor punição para indivíduos que cometem crimes graves".

Além disso, o viés de desejabilidade social presente em algumas vinhetas também pode ter contribuído para inflar a expressividade da esquerda no eleitorado brasileiro. Isso porque, diante de temas sensíveis, os entrevistados tendem a mascarar opiniões que possam expor preconceitos ou crimes, adequando suas respostas a comportamentos não reprováveis.

Frases como "Pessoas pobres de outros países e estados que vêm trabalhar na sua cidade contribuem com o desenvolvimento e a cultura" e "A homossexualidade deve ser aceita por toda a sociedade", ligadas exclusivamente à esquerda pela pesquisa de maneira no mínimo questionável, corroboram a crítica. Se, por exemplo, a homofobia não encontrasse guarida em setores distintos da sociedade brasileira, o país não seria um dos mais violentos nesse quesito no mundo.

Além disso, a ausência de uma avaliação por meio da qual pudéssemos examinar como o autoposicionamento dos entrevistados se conectaria aos temas e valores selecionados pela pesquisa compromete conclusões mais seguras acerca do estudo divulgado.

Embora também seja passível de crítica, a classificação por meio do autoposicionamento seria de grande relevância para aferirmos o nível de congruência entre as vinhetas avaliadas pelos entrevistados e os espectros ideológicos em destaque. Seria também bastante útil para examinar a evolução dos temas mais fortemente associados a cada campo ideológico.

Um contraponto empírico e metodológico interessante, que utiliza uma escala de autoposicionamento ideológico dos entrevistados em série histórica, são os dados disponibilizados pelo World Values Survey (WVS), uma iniciativa da comunidade científica internacional focada em relacionar o comportamento político em dezenas de países de diferentes continentes.

Especificamente sobre o caso brasileiro, os entrevistados foram diretamente convidados a se posicionar na escala entre esquerda e direita (podendo optar pela indecisão), e os resultados contradizem os apontamentos da reportagem da Folha.

Segundo o levantamento do WVS, entre 2006 e 2018, esquerda e direita permaneceram estáveis, em patamar correspondente a 11% cada uma, e o grupo que obteve o maior crescimento foi o de indecisos, variando de 8,3% para 35,9%.

Definir o espectro ideológico do eleitor a posteriori, como feito pelo Datafolha, é uma escolha metodológica de risco. Tal medida enquadra forçosamente qualquer opinião do entrevistado em um posicionamento ideológico construído artificialmente pelo analista, sem possibilitar a indefinição autodeclarada do eleitor, e essa é uma escolha que pode se mostrar bastante problemática, considerando os resultados explorados sobre a série histórica do WVS.

Afinal, não escolher um lado também é se posicionar politicamente, e, em termos eleitorais, o crescente grupo de indecisos pode se expressar nas urnas de diferentes modos. Para além de aspectos metodológicos, é importante frisar que toda pesquisa busca ao final somar-se a um conjunto de explicações capazes de contribuir para o entendimento de um fenômeno.

Neste sentido, é importante ter atenção para a conexão entre as escolhas analíticas e como elas favorecem o entendimento da realidade brasileira.

Ainda que o apoio a algumas pautas progressistas possa ter avançado na sociedade brasileira nos últimos anos —e descontado o possível superdimensionamento pelas escolhas metodológicas—, recomenda-se cautela nas análises conjunturais sobre a eleição deste ano. Para ampliar sua competitividade, é especialmente importante que a esquerda não se isole.

Apesar de trazer insights interessantes, não devemos interpretar a pesquisa Datafolha como uma prova da autossuficiência da esquerda para competir nas eleições de outubro. Considerando a multiplicação das legendas de direita no sistema partidário nos últimos anos e as restrições para a conversão de ideologia em votos, a esquerda não deve prescindir de alianças que ampliem seu potencial nas urnas.

Se as conclusões subsequentes ao estudo fossem procedentes, as estratégias de campanha do ex-presidente Lula, que hoje lidera a corrida ao Planalto, estariam, no mínimo, equivocadas. Se a esquerda fosse dominante no eleitorado, seria aconselhável promover uma guinada em direção a agendas progressistas e, neste caso, conveniente que o vice não fosse Geraldo Alckmin, mas um personagem como Guilherme Boulos.

Não parece ser esse o caso. Lula segue aglutinando múltiplas forças políticas à sua candidatura e conquistando eleitores transversalmente nos mais diversos recortes sociais. Se os valores da sociedade brasileira caminharão à esquerda, só o tempo dirá. Mas o tempo da campanha é agora, e as consequências de interpretações desacauteladas podem custar caro.

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