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Glenn Greenwald

David Miranda é alvo de mentiras e homofobia de petistas após apoiar Ciro

Ala mais radical do PT que agora ataca só tinha elogios a meu marido e a mim na época da Vaza Jato

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Glenn Greenwald

Jornalista e escritor norte-americano, radicado no Brasil desde 2005. Em 2013, foi um dos jornalistas que, em parceria com Edward Snowden, levaram a público a existência dos programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos

[RESUMO] Jornalista escreve que o deputado federal David Miranda (PDT), com quem é casado, passou a receber ataques racistas e homofóbicos por parte de alas fanáticas do PT depois que decidiu sair do PSOL e apoiar Ciro Gomes, e não Lula, na eleição. Uma facção política que condena ofensas preconceituosas quando voltadas contra si, mas que não hesita em empregá-las contra adversários, é oportunista e hipócrita, afirma.

Em 2018, entrevistei Marina Silva como parte de uma série que conduzi com os presidenciáveis. Ainda que eu já tivesse entrevistado inúmeros líderes no mundo todo, estava bastante empolgado para sentar e conversar com ela.

Apesar de algumas diferenças políticas, sempre vi Marina como uma das figuras mais extraordinárias e inspiradoras da política mundial. Como alguém poderia vê-la de outra forma?

Tendo enfrentado uma vasta gama de privações e dificuldades na infância, Marina, através da determinação e força de vontade, passou de adolescente analfabeta à acadêmica respeitada, ambientalista sofisticada e uma liderança política de projeção nacional cuja vida pública serve de exemplo de honestidade, dignidade e integridade.

O jornalista americano Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PDT-SP) em jantar em São Paulo - Ronny Santos - 16.mar.22/Folhapress,

Eu comecei a entrevista perguntando a respeito de um dos momentos marcantes da campanha de 2018: uma discussão dramática com o então candidato Jair Bolsonaro sobre a retórica "politicamente violenta" que ele utilizou no debate presidencial que acabara de ocorrer.

Em sua resposta, Marina afirmou ver a candidatura de Bolsonaro como perigosa, mas logo virou a chave e atribuiu culpa ao PT por inaugurar o que chamou de "uma visão política que valoriza mais a cultura do ódio e polarização do que o debate".

Marina insistiu que o "gabinete de ódio" não surgiu com o bolsonarismo, mas com o PT. Ela lembrou as eleições de 2014, quando o PT, assustado com seu crescimento rápido nas pesquisas, tentou destruir sua candidatura não através de críticas à sua visão política ou a seus projetos, mas por meio de "um processo violento" alimentado por "mentiras e ódios", visando destruir o que ela, e qualquer pessoa, possui de mais sacrossanto: sua trajetória, sua história, sua biografia.

Ainda que eu compreendesse racionalmente seu argumento —vi em 2014 alguns dos ataques e mentiras preconceituosas contra ela—, havia parte de mim que estranhava o fato de Marina seguir insistindo nessa história tanto tempo depois

Hoje, entendo perfeitamente o sentimento dela. Nos últimos meses, vi esse mesmo setor do PT, a sua ala mais fanática e odienta, usar essas mesmas táticas de destruição pessoal para espalhar mentiras e tropos bem preconceituosos sobre meu marido, o deputado federal David Miranda (PDT-RJ), sobre nosso casamento e nossa família.

Tudo isso como forma de punir David pelo "grave delito" de deixar o PSOL em março deste ano e apoiar Ciro Gomes, e não Lula, no primeiro turno da eleição presidencial deste ano.

Em uma entrevista para a Folha no início deste mês, David disse que, caso Ciro não chegue ao segundo turno, embora acredite que chegará, não só votará em Lula como fará campanha todo vestido de vermelho.

Para alguns segmentos petistas, porém, qualquer coisa menos que lealdade incondicional ao partido é considerada crime grave, passível de destruição total.

Ainda que eu acredite que essa ala mais tóxica e inescrupulosa do PT não represente a maioria do partido, trata-se de um grupo bem organizado, financiado e articulado, que dispõe de vários blogs —e cuja mensagem tem amplo alcance.

Ainda que os membros mais proeminentes do PT e de outros partidos da base lulista, no Congresso e na mídia, não se somem a esses ataques, nenhum deles teve a coragem ou a integridade de denunciá-los ou repudiá-los, mesmo quando extrapolam qualquer limite da decência, da ética e/ou são repletos de preconceito. Assim como ocorreu com os ataques baixos empregados contra Marina, David e tantos outros. As lideranças do PT parecem ou intimidadas por essa facção mais radicalizada ou aprovam tacitamente seu trabalho sujo.

Em um nível, esses ataques constantes e violentos de petistas contra David e contra mim são surreais. Por anos, quando David e eu estivemos no centro do furacão político causado pela Vaza Jato —o trabalho jornalístico que permitiu que Lula saísse da prisão para se tornar o favorito nas eleições de 2022—, essa facção tinha somente elogios para nós dois.

Enquanto éramos vistos como aliados políticos, eles não só nos defendiam de ataques idênticos aos que agora lançam contra nós como denunciavam a homofobia, o racismo, o classismo e a xenofobia que os permeavam.

Agora, contudo, o tabuleiro está invertido. Meses de ataques pessoais e baixos desses setores do PT contra David —não contra seus posicionamentos políticos, mas contra seu caráter, sua pessoa e sua biografia— atingiram na semana passada o ápice com um tuíte extremamente preconceituoso que viralizou a ponto de suscitar uma matéria explicativa no UOL.

O que inicialmente chamou minha atenção nesse tuíte e me levou a respondê-lo não foi a referência extremamente homofóbica ao personagem seu Ladir, de um show da Globo exibido há quase 20 anos. Eu nunca tinha ouvido falar desse programa e foi só quando li a matéria no UOL que descobri que se tratava de um personagem gay enrustido extremamente estereotipado, espalhafatoso e afeminado (representando a mim) e sua esposa materialista e objetificada (representando David).

Enquanto eu via o tuíte viralizar entre a esquerda petista, o que me causou mais espanto foi o emprego de praticamente todos os preconceitos contra homens gays negros favelados, que não tiveram acesso a educação formal, os mesmos termos pejorativos que vejo ser usados contra David e outros como ele em nossos 17 anos de casamento.

De acordo com essa linha de ataque, David não passa de um "rapaz burro", um objeto sexual cuja vida não tem valor ou propósito além da exploração de seu corpo, objetificado para ser usufruído por outros homens (no caso, seu marido).

Tal qual Marina, David é uma figura pública e um parlamentar. Críticas a sua visão político-ideológica, por mais duras que sejam, são válidas e fazem parte do jogo. Isso inclui criticá-lo, por exemplo, por conversar e se deixar fotografar com outros quadros políticos, como o Cabo Daciolo, com quem ele tem discordâncias profundas —ainda que seja irônico que essas críticas sejam feitas por quem divide o palanque com Geraldo Alckmin e depois de ver Lula construir uma convergência "estratégica" com o pastor odiosamente homofóbico Sargento Isidório.

Sem mencionar o histórico de "alianças pragmáticas" com figuras como Eduardo Cunha, Michel Temer e Sérgio Cabral, mas essa hipocrisia está dentro do esperado para o atual contexto deplorável da política.

No entanto, esse tipo de difamação contra David, menosprezando seu caráter e sua história de vida para pintar uma caricatura grotesca e preconceituosa, instrumentalizando o mesmo preconceito classista, racista e homofóbico que o PT diz combater, está em uma categoria totalmente distinta e vazia de qualquer substância crítica real.

Talvez a razão pela qual esse episódio me causou tanto asco seja o meu conhecimento íntimo e admiração da vida e da trajetória de David. Nascido na pobreza extrema no Jacarezinho, sem nunca conhecer o pai e tendo perdido sua mãe aos 5 anos, David, tal qual Marina Silva e milhões de outros brasileiros, iniciou a vida enfrentando todo tipo de desvantagem, trauma e dificuldade.

Crescendo órfão na favela até ter a sorte de ser acolhido por uma mulher de coração enorme, uma empregada doméstica moradora do Jacarezinho que já tinha 5 filhos, David se viu forçado a abandonar os estudos aos 13 anos para trabalhar e ajudar em casa.

Gay, negro e imerso em uma realidade de precariedade socioeconômica, David enfrentou na infância obstáculos inimagináveis para alguns, mas que são a realidade para muitos com origem semelhante. Aos 8 anos, David viu seu primeiro cadáver na rua. Aos 13, saiu de casa, passou a morar na rua e a revirar lixo para comer.

Ninguém honesto, decente ou agindo em boa-fé pode imaginar que David seja burro, medíocre ou inútil. Uma vez que conseguiu se sustentar com seu trabalho, David retomou seus estudos, completou o ensino fundamental, o ensino médio e cursou o ensino superior na ESPM, se formando em marketing.

David aprendeu sozinho a falar inglês e agora é entrevistado com frequência por veículos estrangeiros. Começou a escrever uma coluna no jornal britânico The Guardian sobre o que se passa no Brasil e foi um dos dois brasileiros (ao lado de Pabllo Vittar) escolhidos pela revista Time, em 2019, como "líderes da próxima geração."

Esse "rapaz burro que só ganha atenção brincando com seu corpo sexualizado" também desempenhou um papel central na série de reportagens do arquivo Snowden que ganharia o Pulitzer em 2013, sendo detido e ameaçado de prisão em Londres depois de corajosamente viajar para a Alemanha para trazer parte do arquivo fornecido por Edward Snowden, episódio que foi retratado no documentário ganhador do Oscar "Citizenfour" (2014).

Sem a participação e o comprometimento corajosos de David, teria sido impossível trazer à tona parte das revelações de Snowden, inclusive as que dizem respeito à espionagem cometida pelos EUA contra o Brasil. David processou o governo britânico pela detenção ilegal e ganhou a causa, criando um precedente fundamental que até hoje protege jornalistas do tipo de tratamento abusivo a que foi submetido em Londres.

Radicalizado pelos abusos que sofreu na mão dos governos dos EUA e do Reino Unido, David liderou a campanha para que o Brasil oferecesse asilo político a Snowden, de quem se tornou amigo próximo.

Conhecendo a coragem e as contribuições de David para a série de reportagens que publicamos, Snowden endossou sua candidatura à Câmara dos Vereadores, em 2016. Apesar de não ter apadrinhamento ou conexões familiares com os donos do poder, David foi eleito, se tornando o primeiro vereador abertamente LGBT na história do Rio de Janeiro, graças à força da tendência Juntos, da qual foi um dos cofundadores e que aglutina jovens militantes do PSOL.

Depois do trauma do assassinato de sua amiga Marielle Franco, de quem David sentava ao lado na Câmara e com quem tinha uma identificação profunda por serem os únicos parlamentares oriundos das favelas cariocas e parte da comunidade LGBT, David, em 2018, acabou alçado ao Congresso Nacional quando seu colega de partido Jean Wyllys fugiu do país depois de inúmeras e graves ameaças de morte.

Em sua vida pessoal, as conquistas de David e seu comprometimento inviolável com o bem-estar do próximo são, para mim, ainda mais impressionantes. É um pai devotado aos nossos três lindos filhos, com quem também tem em comum uma infância de extrema dificuldade.

Juntos, fundamos uma ONG em 2016, que, além de oferecer abrigo e cuidados para animais abandonados, emprega pessoas que se encontravam em situação de rua, acompanhadas de seus animais de estimação, oferecendo trabalho digno e um caminho através de algo que já faziam: cuidar de animais.

O que me leva à pergunta: o estereótipo degradante de David criado por setores do PT tem alguma conexão com a realidade da vida extraordinária de David? A pergunta responde a si mesma.

David não fala e nunca falará da forma que uma pessoa que morou e foi educada desde a infância nas melhores escolas da zona sul. Apesar de ter estudado em um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública) construído por Brizola e Darcy Ribeiro na entrada do Jacarezinho, sendo produto direto da revolução educacional que eles promoveram, ele sempre carregará consigo as marcas de uma infância difícil, privada de oportunidades, em uma das favelas mais pobres do Rio de Janeiro.

David carrega essa bagagem com orgulho, no seu modo de falar, de se vestir e no seu jeito de ser. E carrega isso com o orgulho de quem precisou superar inúmeras barreiras para chegar onde está.

Ironicamente, o próprio ex-presidente Lula, que também se comunica em um português informal e vernacular resultante de sua própria infância sofrida, passou por discriminações igualmente elitistas e preconceituosas de setores do tucanato e da elite midiática brasileira.

Essa não é a nossa primeira luta política. Sabemos que as eleições, ainda mais na era das redes sociais, costumam ser disputas sujas e baixas. Isso não significa, contudo, que não haja limites e atitudes que extrapolam qualquer limite do justificável. Esse tipo de ataque pessoal e preconceituoso, carregado de ódio, não deve ser celebrado, nem sequer tolerado, muito menos por aqueles que se dizem de esquerda.

Há muitas formas que podem e devem ser usadas para descrever uma facção política que empregue os estereótipos mais cruéis para diminuir e difamar uma pessoa com a trajetória e biografia de David. "Progressista", "decente" ou "moderno" não são termos que se aplicam.

Um movimento político que visa destruir seus adversários com ataques baseados no ódio de classe, na homofobia e no racismo não pode governar com compaixão, empatia ou integridade. Uma facção política que condena ataques preconceituosos quando voltados contra si, mas que não hesita em empregá-los contra adversários, não é nada se não oportunista e hipócrita.

Mais que isso, um movimento político que ganha eleições vendendo a alma não irá recuperá-la na hora de governar.

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