Gilberto Gil faz 80 anos e diz que é cada vez melhor viver

Em entrevista, músico relembra trajetória artística e pessoal e reafirma a fé no Brasil

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O músico Gilberto Gil em seu estúdio na estrada da Gávea, no Rio Eduardo Anizelli-21.jun.22/ Folhapress

Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Em entrevista, Gilberto Gil fala de seus 80 anos, que completa neste domingo (26), relembra suas influências musicais e a tomada de consciência racial, comenta o impacto da tropicália em sua vida e no país, declara sua admiração por Lula, FHC e Ciro e reafirma sua fé no Brasil, a despeito da turbulência atual.

O tropicalista Gilberto Gil chega aos 80 anos neste domingo (26) dominado por "um sentimento de bondade radical". Na Alemanha, seguido por esposa, filhos, netos e bisnetos, o patriarca dos Gil festeja o aniversário no palco, abrindo a turnê familiar "Nós, a Gente".

Um dos músicos mais virtuosos da geração surgida nos anos 1960, Gil deu impulso ao movimento tropicalista com seu desejo de integrar a música popular brasileira aos acontecimentos estéticos internacionais.

Sua trajetória de seis décadas contempla a música, a política e a militância negra e ambientalista. O tropicalismo, a prisão, o exílio em Londres, a aproximação com o rock inglês e a integração estilística da bossa nova com o baião foram estágios de seus anos de vanguarda.

Depois dos choques tropicalistas, ele não deixaria de renovar suas experiências estéticas e pessoais, ilustradas pela tendência ao orientalismo e à africanização nos anos 1970, pela trilogia Re ("Refazenda", "Refavela" e "Realce"), pelo mergulho no pop oitentista, pela apologia da internet e das novas tecnologias, pelo tributo ao baião e ao reggae, pelo embarque no Ministério da Cultura (2003-2008), no governo Lula, e pelo ingresso na ABL (Academia Brasileira de Letras), envergando o fardão satirizado na capa de seu disco de 1968.

"Com o passar do tempo, foi ficando melhor viver", reconhece Gil, perto de começar mais um ensaio com a família. A nova turnê percorre Alemanha, Dinamarca, Marrocos, Itália, Eslovênia, França, Suíça, Espanha, Bélgica e Inglaterra.

Dentro do conjunto de celebrações, o Google abriu um museu virtual dedicado ao músico, e a Amazon Prime Video lançou a série "Em Casa com os Gil". A edição ampliada de "Todas as Letras" (Companhia das Letras), organizada por Carlos Rennó, também chega às livrarias.

Nesta entrevista, Gil conversa sobre a velhice, sua formação musical, os retrocessos políticos do Brasil, sua visão de Lula, Ciro e FHC, a tropicália, a relação com o pai, sua consciência racial e suas reflexões existenciais.

Você completa 80 anos neste domingo (26) e celebra a data em uma turnê familiar. Você passa a impressão de que é bom viver. Tem sido assim em sua experiência? Ao longo da vida, da infância para a adolescência, depois para a vida adulta e agora para a velhice, vai ficando cada vez melhor viver. Pela acumulação das experiências. Fica como condição central. Só é isso que a gente tem. É a vida. Todas as nossas intervenções são no sentido de melhorá-la. Nós não conseguimos sair desse ovo áurico da condição existente. Com o passar do tempo, foi ficando melhor viver. Porque também a gente não tem a experiência de não viver. A alternância entre viver e não viver não existe. Só cabe enriquecer esse viver. Não há alternativa.

Você é uma vertente do violão brasileiro e se tornou um mestre tanto quanto seu mestre maior, João Gilberto… Sonhei com ele nesta noite. Ele em um apartamento que era meu ou de algum amigo, promovendo uma sessão de gravação, onde ele tinha uma convidada. Ele experimentava um estilo completamente diferente do que foi a bossa nova e todas as experiências que ele fez com o violão. Um violão completamente diferente, inusitado, surpreendente [risos].

E como define seu próprio estilo no violão? É eclético. Começou com a bossa nova. O primeiro desafio que eu enfrentei foi a decifração da batida do samba feita por João. Foi uma dificuldade que só se resolveu quando intuí que aquele violão de João era baseado no baião. No samba também, mas especialmente no baião. Talvez tivesse também minha própria presença na elucidação dessa questão. Eu já era muito impregnado pelo baião, e facilitou o fato de eu descobrir que João também era. A junção do estilo do baião ficou muito explícito na introdução do "Expresso 2222" (1972). Ficou como uma marca dessa minha capacidade de compreender o baião no violão.

Depois veio a incorporação de outros estilos. O afro-cubano, muito importante, com a rumba e todos os gêneros derivados daquele mundo ali de Cuba, Porto Rico, América Central. Em seguida, vieram as influências americanas, que começaram com as orquestras de Duke Ellington, Count Basie e Glenn Miller.
Depois, vieram as influências do jazz. Eu já extrapolava a coisa das orquestras, porque tinham as personalidades insinuantes, como Miles Davis. Os cantores, os intérpretes americanos me influenciaram muito com a capacidade de percorrer labirintos nas melodias, nas canções, com a influência do canto negro, da África. Aí chega o rock and roll e os estilos mais contemporâneos, americanos.

A tropicália acaba sendo um filtro? Um filtro de tudo isso com a última corrente do rock and roll revisto pela Europa, pela Inglaterra. Beatles, Stones, Traffic, aquele mundo todo. Finalmente, uma visita obrigatória que eu fui fazer ao folk baiano, pernambucano, nordestino, com o samba de roda, as modas nordestinas. Deram nesse estilo. É um percurso longo e variado.

As canções tropicalistas —as suas, de Caetano, Torquato, Capinan e Tom Zé— manifestaram a crítica social de uma forma inovadora na música popular. Ao mesmo tempo, os tropicalistas não se afastaram de uma visão utópica das possibilidades do país. Com um presidente de extrema direita e o agravamento das desigualdades, da fome e da violência, como fica a sua fé tropicalista no Brasil? A mesma. Não mudou nada. O que a gente tem sido levado a observar é um desenvolvimento natural do Brasil no mundo, um diálogo permanente entre o Brasil e suas origens, seus destinos insinuados a partir desse amálgama, dessa reunião de aspectos civilizatórios vindos da Europa, da África, da Ásia, de todos os lugares. O Brasil talvez seja, das nações grandes, a mais exuberante nesse sentido.

Isso é irremovível. Não há como cancelar. Não há um cancelamento possível do Brasil. Como é cada vez mais integrado na questão mundial, ele é afetado também por esses processos transformadores em outros lugares do mundo. O destino do mundo é o destino do Brasil, o destino do Brasil é o destino do mundo. O Brasil continua. A Bahia está viva ainda lá, como diria Caymmi.

Lula é o candidato com mais força eleitoral para enfrentar Bolsonaro. Você foi ministro da Cultura do governo Lula, entre 2003 e 2008, e renovou agora seu apoio a ele. Como foi sua recente conversa com Lula, no Rio? Você reconheceu mudanças no olhar dele sobre o país? Eu não sei se poderia arriscar dizer que percebi mudanças. Sem dúvida, ele se manifesta, hoje, politicamente mais aberto. Ele pertence a um partido de esquerda operária à feição do Labour inglês e de outros partidos operários, como os da Itália, da França, mas com muita influência da América Latina, dos grupos políticos que se juntaram em partidos. Ele é egresso dessa fonte. Não sei em que medida ele teria condições de se "transformar", para usar entre aspas essa palavra, em um agente mais contemporâneo.

Ou pelo menos pacificador do país? Isso sim. Isso é um dado político evidente nele, que poderia ser considerado como uma novidade. Porque ele está se defrontando com a realidade do Brasil. A realidade do mundo é a realidade do Brasil. Ele sabe que tem uma extrema direita ou uma direita irascível, que surgiu no mundo e no Brasil, com uma representação cada vez mais forte.

Ele sabe que a identidade brasileira e a identidade progressista da sociedade mundial não se coadunam com esse tipo de visão. Ele sabe que o mundo quer um andamento natural de movimentos de centro-esquerda. Ele sabe que o PT precisa representar cada vez mais isso.

Ele tem noção natural do respeito que tem que ter a outras formulações político-ideológicas que surgiram no Brasil e no mundo. Agora, a persona política dele é ligada às suas origens. Não vejo como ele mudar nesse sentido.

Você mantém um diálogo próximo também com FHC? Sim, sempre mantive. Sempre tive admiração por ele. Sempre apreciei o fato de que um homem com um grau razoável de ilustração viesse a se tornar chefe de Estado no Brasil e viesse a estimular a continuidade das mudanças. Foi a Presidência dele que propiciou logo depois a chegada de um partido operário ao poder. Um homem razoável, de diálogo.

Tenho muita admiração por Ciro também, pela capacidade da reteorização das questões da sociedade mundial e do Brasil. A releitura que ele faz das mazelas brasileiras, das omissões das elites, dos déficits na questão da abolição, da distribuição da riqueza talvez seja, do ponto de vista de uma nova visão teórica, a manifestação mais expressiva que a gente tem hoje no Brasil. Sinto muita pena que essa nova visão teórica do Ciro não esteja a serviço de toda a esquerda, toda a centro-esquerda brasileira.

Seu livro "Todas as Letras", organizado por Carlos Rennó, demonstra o quanto as distopias e utopias tecnológicas estão presentes em sua obra, de "Lunik 9" e "Cérebro Eletrônico" a "Parabolicamará" e "Pela Internet". Como avalia a transformação do debate público pelo mundo digital? Os hippies estavam certos na desconfiança com as sociedades tecnológicas? Em uma certa medida, sim. Porque eram grupos utópicos radicais. Eles queriam a transformação definitiva do mundo em um grande aglomerado edênico. Eles tinham o éden na cabeça, no coração. Eles queriam paz e amor. Eles queriam a abolição definitiva do mal.

No entanto, o mal emergiu. O mal está aí. Não há um éden possível. Não é isso que a sociedade humana pode construir na Terra. O que ela pode construir na Terra é o projeto da compreensão permanente do jogo entre o bem e o mal, das forças positivas e negativas do diálogo. Por isso, há necessidade cada vez maior de debate, e é isso que as redes sociais e esse mundo eletrônico têm estimulado, com a presença permanente de todas essas vozes, mas com a prevalência desse deslocamento para o horizonte de mais beleza, bondade e justiça.

"Expresso 2222" completa 50 anos. Quero fazer uma provocação. Nesse álbum, você desenvolve mais plenamente seu intuito de integrar a cultura popular brasileira ao pop internacional que em seus álbuns tropicalistas de 1968 e 1969? Eu tenho dito reiteradamente que a fase londrina, a experiência de Londres, do exílio, da pós-prisão, representaram uma plenitude do tropicalismo que não foi possível obter enquanto o tropicalismo esteve aqui vigente como movimento. Pelo menos no meu caso —acho que também no caso de Caetano, de Tom Zé e da Rita Lee e tantos outros—, foi o pós-tropicalismo que deu margem à plenitude, à realização mais plena de exercícios mais abertos de linguagem musical e poética.

O tropicalismo foi um escândalo que abriu esses caminhos? É. Aquela coisa da minha palestra lá na ABL sobre a tropicália [em 14 de abril deste ano], da questão do meu canto...

Sobre o que Hélio Oiticica falou de sua voz estourar? Hélio Oiticica fala e eu me refiro a ter assumido muito daquela compreensão que ele teve sobre meu modo de cantar e ter levado isso adiante em dosagens variadas. Eu responsabilizo inclusive isso pelo comprometimento de minha corda vocal [risos].

Em seu show mais recente, você conseguiu estabilizar a sua voz, depois daquele problema com as cordas vocais. Consegui uma voz madura, uma voz de serviço, como eu costumo dizer. Uma voz que serve à prática de um modo médio de manifestação vocal. Acho que sim. Porque adotei disciplinas rigorosas no sentido de conservação do restante das cordas vocais.

No tropicalismo, Caetano se pronunciou mais que você sobre as manifestações tropicalistas em outras artes, como cinema, teatro e literatura. Há uma certa lacuna em suas entrevistas. Na conferência sobre a tropicália e a antropofagia, na ABL, você falou um pouco disso. Gostaria de saber como você recebeu em sua formulação pioneira do tropicalismo o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, a encenação de "O Rei da Vela", no Teatro Oficina, e se leu o livro "PanAmérica", de José Agrippino de Paula. Sim, tudo isso. Mas tudo através do filtro do Caetano. Caetano era intelectualmente e existencialmente aderente a todo esse campo de experimentalismo no teatro, no cinema —às novas correntes, ao neorrealismo italiano, à nouvelle vague francesa, ao cinema novo brasileiro.

Eu era distante de tudo isso. Cinema para mim era diversão pura, era ir para o Guarany, para o Liceu [salas de Salvador], para os cinemas ver o maior número possível de filmes. Eu adorava os filmes de caubói, de guerra.

Eu não tinha ainda, antes de conhecer Caetano, o interesse. Nem pelo teatro, nem mesmo pela literatura, nem pela poesia. Gostar de João Cabral, de Bandeira, gostar dessa poesia mais nova, mais aberta, foi uma coisa que passou muito por eu ter conhecido Caetano e ter admirado nele a maneira como ele já vivia essa nova intelectualidade.

Imagino que, assim como Caetano, você não viu a instalação "Tropicália", de Helio Oiticica, em 1967, no MAM do Rio. Não, só vi quando ela foi reinstalada na comemoração dos meus 20 anos de carreira. Por iniciativa do Waly [Salomão], se reinstalou a "Tropicália" entre os vários ambientes que criaram o "environment" dos 20 anos. Só ali eu vi. Era uma reinstalação fiel, mas precária.

Como pensa hoje na figura de seu pai, José Gil? Aos 80 anos, você se tornou também um patriarca, com filhos, netos e bisnetos. A memória de seu pai teve peso em sua decisão de entrar para a Academia Brasileira de Letras? Acho que sim. Ele representando um homem profissional liberal, de formação liberal, muito cioso da questão da institucionalidade. Uma academia de letras e cultura é uma coisa que sempre esteve no horizonte de uma pessoa como ele. Ele se esforçou muito no sentido de que eu me tornasse um profissional liberal com formação acadêmica. Acabei me transformando em um profissional liberal em uma profissão moderna, pós-moderna.

Ele sonhava que eu fosse um médico, advogado, engenheiro. Então, na fase da velhice, tem um espaço para a satisfação, na medida do possível, dos sonhos de realização dele para o filho. É um pouco isso. Além de ter também a aprovação de pessoas próximas, de gente da família, de colegas que são acadêmicos e da minha geração.

E a questão da presença negra na ABL? Também teve uma influência. Foram fragmentos de muitas pequenas e grandes coisas que me fizeram acabar aceitando a ideia da Academia.

No texto "Recuso + Aceito = Receito", de 1969, de recusa ao prêmio Golfinho de Ouro por "Aquele Abraço", você manifestou, a meu ver pela primeira vez, de forma aberta, sua inquietação com o racismo e com a definição de lugares subalternos para o negro no Brasil. Esse é um momento importante do estalo de sua consciência racial? Sem dúvida. É o tropicalismo, o final do tropicalismo, o exílio e o convívio com um grupo especial de brasileiros devotados às vanguardas que me dão consciência mais profunda de problemas brasileiros, entre os quais a questão negra, do racismo, da insuficiência do abolicionismo para dar conta desses problemas. A necessidade de uma continuação do abolicionismo contemporâneo. Tanto é que só na volta do exílio que eu vou conhecer o candomblé. E tem a viagem pra África.

Como avalia o impacto da lei de cotas, sancionada há dez anos no Brasil? Não tenho condições de fazer uma avaliação muito rigorosa da lei. Sei pelas notícias, pelas estatísticas, que tem sido positivo, tem cumprido a sua missão. Eu tenho me mantido favorável às cotas desde o início até hoje. Não arredei da minha crença de que as cotas acabam tendo um papel mais positivo que negativo.

Nos anos 1970 e 1980, em sua figura pop, você ressaltou aspectos de feminilidade que, certamente, todo homem traz em si. Caetano e Ney Matogrosso também fizeram isso. O visual e as palavras dos tropicalistas influenciaram muitos homens e mulheres na aceitação das liberdades e diversidades sexuais. O questionamento dessas fronteiras da sexualidade entrou de forma consciente, deliberada, em seu projeto artístico? Depois de um certo tempo, sim. Na fase tropicalista e no imediato pós-tropicalismo, sim. Porque já muito influenciado pela adoção de uma noção de androginia. Toda a coisa hippie, toda a contemporaneidade da juventude mundial. A ideia do andrógino foi fundamental. O andrógino é o feminino e o masculino ao mesmo tempo. Não há separação possível.

Chico Buarque e Caetano lançaram dois sambas em resposta à situação no país, "Sem Samba Não Dá" e "Que Tal um Samba?". Quando é que vem o seu samba? O meu já está no próprio hibridismo que eu expliquei no começo da conversa. A fase última das adesões ao folk. Eu tenho muito de samba no meu modo de abordar outros gêneros ou gêneros mistos. O samba puro eu não sei até que ponto, principalmente porque a base principal do meu samba é a baiana, não é nem mesmo a carioca. O samba baiano de roda é o meu samba principal. Mas toda hora aparece um "Andar com Fé". Tem muito samba no meu trabalho. Mas samba especificamente samba, com essa titulação específica, talvez daqui a pouco. Eu tenho vontade de fazer.

Em 2017, no período em que se recuperava de uma fase de internações hospitalares, você tocava muito "Cores Vivas", sozinho, em seu apartamento na Bahia. Esse questionamento sobre o destino, a vida e a morte continua a te inquietar agora, em uma fase de boa saúde? Na fase da velhice, as coisas são vistas extrapolando suas particularidades. O amálgama existencial alcança a questão intelectual, dos sentimentos, dos valores, da moral. Tem toda uma diafanização da vida, que é característica do terceiro momento da existência.

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