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Marcelo Leite

'Tempo Quente' explica por que agro é punk e carvão queima o futuro

Novo podcast mostra como lobbies detonam floresta, envenenam clima e sustentam Bolsonaro

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Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] "Tempo Quente", podcast da Rádio Novelo que estreia na terça-feira (7), trata da mudança climática de forma precisa e didática, com muita reportagem, mostrando como lobbies do setor ruralista e do carvão detonam a floresta, envenenam o clima e sustentam Bolsonaro



Mudança climática: pense em uma coisa que não é pop no Brasil. Um podcast inteiro sobre isso, com oito capítulos, teria tudo para entrar em uma fria, mas "Tempo Quente", da Rádio Novelo, consegue passar ao largo das armadilhas que o tema complexo prepara para quem se aventura a explicá-lo.

Não poucos jornalistas de ciência veteranos desistiram da empreitada. Não Giovana Girardi, que leva duas décadas nessa cobertura. Seu programa estreia na terça-feira (7), mesclando precisão com muita reportagem e linguagem leve.

'Homenagem a JMW Turner' (2002), de Thiago Rocha Pitta - Divulgação

A Folha ouviu os dois primeiros capítulos do podcast. Eles entrarão no ar, um por semana, sempre às terças-feiras.

O primeiro acerto do produto está na dose adequada de didatismo. Girardi explica apenas o necessário para seguir adiante, sem pretensão de expor toda a ciência por trás do aquecimento global. Pretender dizer tudo é o caminho reto para aborrecer.

Um ouvinte familiarizado com o assunto esperaria encontrar já no primeiro episódio uma longa explicação sobre o desmatamento da floresta amazônica, principal fonte de gases do efeito estufa emitidos no Brasil. Nada disso. O podcast surpreende ao dedicar o capítulo de estreia ao carvão.

A apresentadora se permite esclarecer, com humor, que não se trata da variedade vegetal dos churrascos, mas do combustível fóssil das usinas termelétricas extraído em Santa Catarina. Escolha ousada, porque o carvão mineral responde por apenas 3,1% da matriz elétrica nacional, contra 36,8% na média mundial.

Com participação tão diminuta na geração de eletricidade, não espanta que esse minério represente mero 0,3% de todas as emissões de carbono do país. Comparado ao desmatamento (46%) e à agropecuária (27%), é fichinha, mas sustenta 20 mil empregos na região de Criciúma (SC) e um poderoso lobby em Brasília.

Projetar o foco inicial de luz sobre o setor tem o mérito de pôr em evidência personagens obscuros como Fernando Luiz Zancan, presidente da Associação Brasileira do Carvão Mineral. O leitor pode não conhecê-lo, mas pagará ainda por muitos anos, na conta de luz, o custo das vitórias conquistadas pelo lobista.

É fascinante ouvir a lábia do homem, enchendo a boca para falar de "carvão sustentável" e "transição justa". Ficções em torno de um combustível fóssil e poluente, condenado no mundo todo, mas que no Brasil ganhou sobrevida até 2040 com compras mínimas de energia termelétrica fixadas em projeto de lei que tramitava em novembro de 2021 e terminaria sancionado por Jair Bolsonaro em janeiro.

O podcast ainda estava em apuração, a cidade escocesa de Glasgow sediava a 26ª cúpula do clima, e Girardi achava que o absurdo de lesa-atmosfera não vingaria. Bastaram três semanas para o Congresso aprovar. "A ingênua era eu", desabafa a jornalista.

Poucos brasileiros sabem da extração de carvão mineral em Santa Catarina, e menos ainda são velhos o bastante para se lembrar do acidente na mina em Urussanga que matou 31 trabalhadores. Outros aconteceram, nenhum tão grave, mas o alto risco da operação não combina com a retórica de preservação de empregos.

"Tempo Quente" dá voz para quem sofreu e ainda sofre os impactos da "transição justa" para o "carvão sustentável" de Zancan. Um deles é Giovani Felipe, historiador que na juventude sonhava trabalhar nas minas, atraído por jornadas de seis horas, bons salários e aposentadoria após 15 anos.

O sonho se realizou, mas virou pesadelo. Um choque elétrico no maquinário arrancou-o do chão e lhe custou duas paradas cardíacas. Viu colegas feridos ou mortos em outros acidentes. Abandonou o ramo e hoje se dedica a registrar a saga dos mineiros catarinenses.

Girardi visitou o buraco alagado e abandonado no meio do mato onde ocorreram as mortes de 1984. Também desceu em uma mina para conhecer as condições de trabalho, espantando-se com a ausência de picaretas e a onipresença das máquinas no local escolhido a dedo para impressionar a repórter —que se impressionou mesmo foi com o cheiro de enxofre exalado do carvão.

O tema do episódio, no fundo, não é o carvão por si só, mas a força dos lobbies. E ela aparece com todo peso no segundo capítulo, em que o poder do setor ruralista e o dano que causa à Amazônia se mostram sem disfarces, como na melhor tirada de Girardi: "O agro não é pop, é punk".

A apresentadora se cerca de três especialistas para retraçar a gênese da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) e sua ligação umbilical com o centrão e o bolsonarismo. São eles: Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e consultora parlamentar por três décadas, Raoni Rajão, pesquisador da UFMG, e Caio Pompeia, antropólogo da USP.

Com ajuda do trio ela remonta a organização da FPA após a introdução de medidas eficazes, pela ministra Marina Silva (governo Lula), para fazer cumprir as regras do Código Florestal sempre desobedecidas até ali, sem consequências.

Com o corte de crédito para desmatadores, o agrocentrão ergueu o Instituto Pensar Agropecuária e organizou a "narrativa" de que a legislação ambiental impedia o setor de produzir alimentos.

Se Zancan comanda às claras o lobby do carvão, no caso da cruzada agro-ogra há uma eminência parda acoitada na Embrapa: Evaristo de Miranda. Desde os tempos de José Sarney presidente, o pesquisador, que se negou a dar entrevista para o podcast, se especializou em fabricar estatísticas duvidosas para acomodar os ruralistas no papel de vítimas.

Segundo Miranda, a legislação ambiental e indigenista brasileira, supostamente draconiana, deixava só 29% do território nacional disponível para produtores rurais. Pesquisadores mais sérios e reconhecidos corrigiram os números: 45% do Brasil estavam disponíveis para ruralistas, e propriedades rurais já ocupavam 36% —além de responder por mais da metade do desmatamento.

Foi com os dados oportunistas que Aldo Rebelo, na Câmara, e Kátia Abreu, no Senado, passaram com o trator sobre o Código Florestal em 2012, garantindo anistia para desmatamentos ilegais até 2008.

Foi a primeira grande derrota de Dilma Rousseff no Congresso. Apesar disso, Rebelo e Abreu se tornaram ministros da presidente reeleita, respectivamente da Ciência e da Agricultura, entronizando o negacionismo no Planalto.

As patranhas de Miranda motivam um dos momentos mais hilários do podcast, quando a ex-ministra do Ambiente Izabella Teixeira diz nunca ter visto pessoalmente o especialista da Embrapa, cujos dados qualifica como "perversos": "Se encontrar esse homem, sou capaz de lhe dar um murro na cara".

Fato é que a mudança de narrativa promovida pelo agronegócio não se apoiou só nos números criativos da Embrapa, mas também em campanhas de relações públicas. A mais visível é a série de publicidade institucional da Rede Globo "Agro é pop, agro é tech, agro é tudo".

A iniciativa do setor agropecuário para minimizar a mudança do clima e a imperativa contenção do desmatamento equivale ao que Rajão chama em "Tempo Quente" de agrossuicídio. O proverbial tiro no pé: dificulta acesso a mercados externos e a financiadores, já ressabiados com o aquecimento global, o que por sua vez prejudica a própria produção ao perturbar o clima e o regime hídrico.

O próprio Rajão, entretanto, explica a origem dessa cegueira voluntária: "Objetivamente, nunca ganharam tanto dinheiro", diz. "Evaristo Miranda está tocando a flauta em direção ao precipício."

Os episódios 3 e 4 de "Tempo Quente" tratarão de como o precipício amazônico se alargou com a abertura e a pavimentação das rodovias Cuiabá-Santarém e Transamazônica.

Depois virão o caminho virtuoso traçado e nunca seguido no Projeto Brasil 2040, o erro colossal de Belo Monte, as crises gêmeas hídrica e energética e a consagração do negacionismo no governo Bolsonaro.

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