Descrição de chapéu machismo LGBTQIA+

Entenda por que feminismo racha ao debater conceitos de gênero e transexualidade

Discussões acaloradas abarcam de aborto a menstruação e envolvem de J.K. Rowling à Suprema Corte americana

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'Peludinho #4 (Série Peludinhos)', de 2019, de Élle de Bernardini Ana Pigosso/Divulgação

[RESUMO] As diferentes opiniões sobre os conceitos de gênero e sexo dentro e fora do feminismo vêm se intensificando cada vez mais, com polêmicas motivadas por discussões sobre o que é ser mulher e o que é ser homem. A reportagem mostra como o assunto divide posições no movimento.

"Você falou em 'pessoas com capacidade para engravidar'. Seriam mulheres?", questionou o senador americano Josh Hawley a Khiara Bridges, professora de direito da Universidade da Califórnia, numa recente audiência para debater as consequências de a Suprema Corte dos Estados Unidos vetar o direito constitucional ao aborto no país.

"Muitas mulheres cisgênero [termo usado para se referir a quem não se declara trans, agênero ou não binário] têm capacidade para engravidar, outras não. Há também homens trans que engravidam, assim como pessoas não binárias", respondeu Bridges, que ouviu como resposta outra pergunta do republicano. "Então, se esta não é realmente uma questão de direitos das mulheres. É o quê?"

O debate entre os dois, que só endossou a antiga fama de transfóbico de Hawley, surge num momento em que o noticiário está tomado por acontecimentos que agitam os movimentos feministas, seja pela derrubada do direito ao aborto nos Estados Unidos, pelos estupros no Brasil de que o anestesista Giovanni Quintella Bezerra é acusado, o triste caso da atriz Klara Castanho ou por polêmicas recentes atreladas ao conceito de identidade de gênero, como as que levaram a cantora Macy Gray e a atriz Bette Midler a serem acusadas de transfobia, semanas atrás.

Gray, por exemplo, virou notícia quando disse que nenhuma cirurgia é capaz de transformar alguém numa mulher e, depois de uma onda de críticas, voltou atrás. "Ser mulher é como uma energia e algo de que tenho muito orgulho. Se o seu coração se sente assim, então é isso que você é, independentemente do que digam ou pensem. Eu aprendi muito", afirmou desta vez.

Antes de anunciar seu novo pensamento, Gray vinha sendo chamada de "terf" —sigla em inglês para feminista radical transexcludente— e havia ganhado elogios da escritora J.K. Rowling, autora da franquia "Harry Potter", que desde o fim de 2019 virou quase um símbolo do termo.

O mesmo aconteceu com Midler que, no mesmo dia em que Gray foi acusada de transfobia, criticou o uso de termos como "pessoas que menstruam" e "gente com vagina" para se referir a mulheres, o que, segundo ela, seria uma forma de apagamento feminino.

Apesar de recentes, casos como o de Midler, Gray e Hawley ecoam um debate que vem se intensificando já há algum tempo e dividindo o feminismo.

De um lado, há feministas que se declaram trans inclusivas, afirmam que órgãos sexuais não definem quem é homem e mulher e que existem outros gêneros além do feminino e do masculino.

Do outro, há aquelas que tratam o sexo como a única forma de definir o que é ser homem e ser mulher, e que veem gênero a partir de uma ótica binária —neste grupo, estão as chamadas radfems, ou feministas radicais.

"A gente reafirma que mulher é gente, não um sentimento ou uma fantasia", diz uma porta-voz da WDI Brasil —Declaração dos Direitos das Mulheres Fundados sobre o Sexo, na sigla em inglês— que pediu a esta repórter para não divulgar seu nome.

"Está havendo uma política de apagamento do sexo. Homens não precisam mais mudar o corpo para serem reconhecidos como mulher, basta se declararem assim." A militante afirma que já sofreu "inúmeros ataques, virtuais e físicos" por expor seu olhar sobre o assunto e diz que a discussão é hoje cercada de tabus.

"As pessoas não estão percebendo o quão desumanizador é dizer que um menino que gosta de boneca e usa vestido e maquiagem está no corpo errado", afirma. "Isso é dizer que mulheres são maquiagens, vestidos, bonecas. É incompatível [com o feminismo]."

Vale ressaltar, porém, que é raro encontrar transativistas usando o termo "corpo errado" para se referir a pessoas trans.

"Se eu falasse que sou branca, seria uma mentira, porque, evidentemente, sou negra. Agora, por que com sexo seria diferente?", questiona.

Segundo a historiadora britânica Lucy Delap, autora de "Feminismos: Uma História Global", a diferença, na verdade, é uma complexidade do assunto que foi cultivada pela própria trajetória do movimento feminista.

A chamada primeira onda do feminismo, que eclodiu no Ocidente no fim do século 19, foi marcada pela luta feminina por direitos políticos e ingresso no mercado de trabalho. Nessa época, o movimento era bem homogêneo, voltado a —e movido por— mulheres brancas heterossexuais e cisgênero.

A cena só passou a ficar diferente nos anos de 1960, na segunda onda —quando temas atrelados à liberdade sexual ganharam peso entre as ativistas— e, principalmente, a partir dos anos 1990, quando eclodiu a terceira onda, na qual a fragmentação do movimento se tornou comum, num abraço a várias causas. Há quem fale ainda numa quarta onda do feminismo, que teria começado nos anos 2010, marcado principalmente pelo ativismo digital.

'Adonis (Série Ensaio para o Encontro do Rosa com o Azul)', de 2020, obra de Élle de Bernardini - Ana Pigosso/Divulgação

O fato é que em meio a essas ondas, os conceitos de sexo e de gênero passaram por várias mudanças e ganharam diferentes perspectivas dentro do movimento.

"Na década de 1970, pesquisadoras feministas começaram a falar de sexo como algo biológico e binário e de gênero como múltiplas elaborações culturais e sociais variáveis, que estariam, de certa forma, ligadas ao sexo", diz Delap.

"Isso foi muito útil para identificar o que poderia mudar. Ou seja, mesmo que os corpos fossem organizados em torno de fatores biológicos de massa muscular, reprodutiva, cognitiva, ou outras características, não haveria razão para exigir a formação de uma ordem social baseada nisso", afirma a historiadora.

Segundo ela, é a partir dos anos 1990 que essa ideia começa a se desmanchar e ganhar novos contornos, já que parte das militantes e pesquisadoras feministas passaram a argumentar que não existe "um binário absoluto", tanto em termos biológicos quanto socioculturais.

Talvez o maior exemplo dessa toada seja a americana Judith Butler, especialista em filosofia, um dos maiores nomes da teoria queer e autora de livros como "Problemas de Gênero" e "Corpos que Importam: Os Limites Discursivos do ‘Sexo’".

"Os corpos passaram a ser vistos como locais de enorme variabilidade criativa", afirma Delap. "E ficou mais evidente que, ao longo da história humana, havia pessoas que não se identificavam firmemente como homem nem como mulher."

A tentativa de definir o que é ser mulher ou ser homem, aliás, é uma tarefa que há décadas move extensas pesquisas nas ciências humanas e biológicas. E cada vez mais, os conceitos de sexo e de gênero, que tanto dividem o feminismo, rodeiam discussões acaloradas que têm mexido com legislações pelo mundo.

No fim do ano passado, por exemplo, os Estados Unidos emitiram o primeiro passaporte do mundo voltado a quem não se declara nem homem nem mulher, o que incomodou boa parte das radfems.

"Pessoas intersexuais também são socializadas como homens ou mulheres. Então, enquanto legitimarem essa ficção identitária de que seres humanos mudam de sexo ou podem ser algo além de homens e mulheres, não teremos uma solução para o sexismo", diz a porta-voz da WDI Brasil. "O discurso transativista é incompatível com os direitos das mulheres."

Segundo a militante, a presença de pessoas com pênis em espaços até então exclusivos para quem nasceu com vulva —como os chamados banheiros femininos— pode ser um "risco à segurança de meninas e mulheres".

Pesquisadora de gênero e autora de "Transfeminismos", Letícia Nascimento relaciona o feminismo radical ao que chama de "genitalismo", que seria uma perspectiva que reduz as pessoas aos seus genitais, e diz que afirmar que o pênis é capaz de proporcionar privilégios seria "extremamente desrespeitoso e desleal" —mesmo numa sociedade falocêntrica.

"É desproporcional dizer que pessoas trans reforçam estereótipos de sexismo", diz Nascimento. "Na verdade, são vítimas dessa indústria cultural, midiática e sexista. Elas se veem numa posição de precisar reforçar estereótipos para serem aceitas em determinados locais, uma pressão que também existe sobre pessoas cis."

quadro mostra uma pelúcia rosa e duas estruturas em círculo de metal
'Peludinho', de 2019 e de Élle de Bernardini - Ana Pigosso/Divulgação

Nascimento diz ainda que não acredita que "feministas radicais estejam realmente sofrendo ataques constantes".

Afirmar que homem se trata apenas de quem nasceu com pênis e que mulher é somente quem nasceu com vulva, porém, não é lá dos comentários mais bem-vindos nos tempos atuais, podendo custar, sim, grandes ondas de repúdio a quem reproduz o discurso, sejam feministas radicais, políticos conservadores ou grupos que adotam essa visão.

O maior exemplo é J.K. Rowling, a autora de "Harry Potter". Desde que ela passou a defender a ideia de que é a socialização —baseada no sexo— que define o que é ser homem ou mulher, a autora vem sofrendo uma onda de ataques e diz até ter recebido ameaças de morte.

Ao mesmo tempo, não é também como se a escritora tecesse só opiniões floreadas a respeito. Ela chegou, por exemplo, a celebrar um fã nas redes sociais que havia postado que preferia ter Aids a apoiar a comunidade transgênero.

Outra famosa escritora que foi acusada de transfobia é Chimamanda Ngozi Adichie, de "Sejamos Todos Feministas" e "Americanah". "Mulheres trans são mulheres trans. Problemas de gênero são sobre nossas experiências", declarou ela, em 2017. "É sobre a maneira como o mundo nos trata. Se você viveu como um homem, com os privilégios que o mundo concede aos homens, e depois mudou de gênero, é difícil para eu aceitar que podemos igualar a sua experiência com a de uma mulher que desde a infância vive como mulher."

"O transfeminismo não tem como objetivo fragmentar o movimento feminista ou desconsiderar toda a produção já existente, mas sim oferecer um novo olhar, assim como faz o feminismo negro, lésbico e afins", diz Jonas Maria, coautor de "Vozes Trans" e "#OrgulhoDeSer".

"Feministas radicais [que falam que pessoas trans endossam o sexismo] geralmente estão se referindo a mulheres trans que performam uma feminilidade", ele afirma. "Mas a comunidade trans é diversa, temos pessoas não binárias, mulheres e homens trans que são dissidentes de gênero e não concordam com esses estereótipos."

A socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy, autora de "Feminismo no Brasil: Memórias de Quem Fez Acontecer", afirma que embates, assim como fusões, entre movimentos sociais são algo comum na história.

Ela afirma que, independentemente da opinião de cada ativista sobre o assunto, é preciso ter em mente que existem já consensos entre as feministas —dos quais o mais óbvio é a defesa dos direitos femininos—, que devem realmente nortear o debate.

"O feminismo tem uma composição complexa da luta política", diz ela. "E é a partir da elaboração teórica de conceitos como sexo e gênero que estudamos relações de poder de uma sociedade."

Segundo Andreia Nobre, autora de "Guia (Mal-Humorado) do Feminismo Radical", as críticas contra o movimento radfem são, na maioria das vezes, "uma caça às bruxas". Ela classifica como preocupante o fato de haver "mulheres sendo chamadas de transfóbicas simplesmente por falarem de anatomia feminina".

Além disso, Nobre afirma que o transativismo esbarra na luta de direitos femininos porque, na sua visão, o movimento abriria brecha para que casos de feminicídio fossem enquadrados em outros crimes.

"Se gênero é um sentimento e algo fluido, o que será das políticas de proteção às mulheres?", questiona. Ainda nessa linha, ela pergunta quais critérios podem ser adotados para definir judicialmente o gênero de criminosos, já que cada vez mais há adeptos da ideia de que ter um pênis não é, necessariamente, um sinônimo para definir alguém como homem.

Advogados entendem que o feminicídio se trata de um assassinato cometido contra uma mulher em decorrência do fato de ela ser mulher, independentemente de como o criminoso é identificado.

Lucy Delap, a historiadora, defende que o debate sobre gênero seja feito fora dos ringues da chamada cultura do cancelamento, que ela classifica como preocupante e algo semelhante "a regimes autoritários". "Há todas as oportunidades para debatermos o assunto e, ao mesmo tempo, temermos a ideia de uma completa ruptura entre feministas e pessoas queer [termo que, neste contexto, se refere a quem não é cis]", ela afirma.

Ainda que a fala da historiadora sobre uma possível harmonia entre transativistas e feministas radicais possa parecer utópica, ou até mesmo rasa, há quem compactue com a ideia. Um exemplo é a socióloga britânica Finn Mackay, professora da Universidade do Oeste da Inglaterra.

Em entrevista por email, Mackay —que refere a si tanto no feminino quanto no masculino— afirma que se define como uma "radfem transmasculina". "Eu não fiz nenhuma transição social, legal ou médica, então, nunca me identificaria como um homem trans", diz. "Sou criticada por quem sugere que não mereço me chamar de feminista, porque apoio os direitos trans."

A socióloga conta que as críticas contra ela surgem principalmente nas redes sociais, ambiente que ela diz ter deixado a discussão polarizada. "Isso impede as pessoas de discutir, aprender e falar umas com as outras sobre o assunto. Acredito que a maioria [das radfems e dos transativistas] não quer ofender ninguém", afirma. "Mas é importante conversarmos e também não apoiarmos pontos de vista hostis e excludentes."

Mackay lembra Judith Butler e a radfem Andrea Dworkin para dizer ainda que, apesar de muitas divergências, há também semelhanças na maneira pela qual a teoria queer e o feminismo radical veem o gênero —a partir da compreensão de que ele surge como uma construção social e prejudica não só mulheres, como também homens, ainda que de maneira e grau diferentes.

Assim como as radfems e parte dos transativistas, Mackay acredita que a solução para o sexismo seria a abolição dos papéis de gêneros, o que viria a acontecer num longo processo histórico. "É claro que há radfems transfóbicas e transativistas misóginos, mas toda essa discussão não deveria ser reduzida a uma luta entre feministas e transativistas", defende ela, que sugere autocríticas a ambos os grupos.

"O ativismo queer precisa reconhecer os efeitos da socialização. Mulheres são treinadas desde a infância para serem cautelosas com homens em espaços femininos. Então aquelas [que são contra a presença de pessoas com pênis nesses locais] podem não ser transfóbicas e estarem apenas lidando com a socialização, num sistema que as culpa pela violência masculina", afirma a socióloga.

"Mulheres trans são, desproporcionalmente, afetadas pela violência sexual e pelo abuso doméstico", ela diz, lembrando que esse é um ponto que precisa ser reconhecido pelo movimento radfem. "É uma questão em que todos deveríamos estar lutando juntos."

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