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Miriam Dolhnikoff

José Bonifácio queria civilizar elite branca e criar nação mestiça

Patriarca da Independência era exceção reformista com defesa de fim gradual da escravidão

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Miriam Dolhnikoff

Professora do Departamento de História da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Autora, entre outros livros, de "História do Brasil Império" e "José Bonifácio"

[RESUMO] José Bonifácio, patriarca da Independência e membro da elite letrada do país, ficou conhecido pela defesa de suas ideias, que o alçaram a altos patamares, como ministro e tutor do jovem d. Pedro 2º, e o levaram a um fim dramático, em prisão domiciliar. A mestiçagem e a abolição gradual da escravidão, mediada e regulada pelo governo, eram pilares que ele julgava fundamentais para a construção da nação brasileira.

Súdito do império português nascido em sua porção americana, José Bonifácio de Andrada e Silva viveu em um mundo em transformação que abria diferentes possibilidades para conceber e implementar reformas políticas e sociais. Não queria, a princípio, a independência. Defendia um império luso-brasileiro renovado por mudanças estruturais, no reino e na colônia, que o conduzissem para o que se afigurava ser uma nova era.

Nasceu em Santos, na capitania de São Paulo, em 1763, e passou a maior parte da sua vida adulta na Europa. Como muitos filhos da elite colonial, embarcou para Portugal aos 20 anos para estudar na Universidade de Coimbra, mas, ao contrário da maioria, só retornou ao Brasil com 56 anos.

Num canto da imagem está José Bonifácio, com a bandeira do império brasileiro no colo. Ao seu redor, estão uma mulher negra, um homem indígena, um europeu e um homem com camisa verde, de certa forma, abençoando a cena.
'A Fundação da Pátria Brasileira' (1899), de Eduardo Sá, retrata José Bonifácio de Andrada e Silva com a bandeira do império brasileiro sendo reverenciado por diferentes etnias - Acervo do Palácio Pedro Ernesto/Wikimedia Commons

Cursou a Faculdade de Direito, como era usual entre os jovens vindos da América, e a Faculdade de Filosofia, que incluía o estudo das ciências naturais. Especializou-se em mineralogia, campo que incorporava geologia, química e metalurgia, atividades essenciais no contexto do desenvolvimento da indústria da época.

Formado na Ilustração, acreditava no poder da razão e do conhecimento científico para moldar os homens e seu meio. Por isso, ao seu ver, o cientista não poderia ficar preso em seu gabinete, envolto em livros e absorto em teorias, mas deveria se dedicar à resolução dos problemas que afligiam a sociedade e obstruíam o progresso material.

José Bonifácio fazia parte do grupo de letrados portugueses reunidos na Academia das Ciências de Lisboa que, sob a liderança de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de dom João, se empenhou em desenhar políticas para a modernização da economia.

A partir de 1801, dez anos depois de uma viagem de estudos por vários países europeus, recebeu de dom Rodrigo a incumbência de ocupar diversos cargos públicos, de modo que o mineralogista pudesse converter seu saber em políticas concretas. Procurou dinamizar a exploração de carvão, a fundição de ferro e outras atividades que estimulassem a manufatura. Foi também responsável por criar a cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra.

Sua vida seria alterada com a invasão de Portugal pela França em 1807, resultado da guerra entre franceses e ingleses, dos quais Portugal era aliado. A Corte fugiu para o Brasil, e Bonifácio permaneceu no reino para lutar contra os invasores.

Vencidos os franceses em 1810, demorou-se ainda alguns anos em Lisboa. Porém, expressava profundo desgosto e desilusão por ver seus esforços, no exercício dos cargos que ocupava, frustrados por seguidos entraves burocráticos. Era a hora de se aposentar e voltar à terra natal.

Encontrou um Brasil diferente quando chegou em 1819. Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro foi elevado à capital do império lusitano e o Brasil não era mais colônia —adquirira o estatuto de reino, o mesmo de Portugal. A intenção de Bonifácio era se retirar da vida pública. No entanto, em 1820, a revolução constitucionalista do Porto o impeliu para a política.

Os revoltosos exigiam a transferência da Coroa para Portugal e a instauração de uma monarquia constitucional. Com esse fim, convocaram as Cortes, assembleia que deveria escrever a Constituição do novo regime. As províncias da América elegeram seus deputados. O liberalismo unia os portugueses dos dois lados do Atlântico e inaugurava um novo tempo.

Bonifácio participou desses acontecimentos em São Paulo. Não se candidatou a deputado, mas escreveu uma espécie de programa para orientar os representantes paulistas na sua atuação nas Cortes. Nele, defendia o império luso-americano.

O Brasil permaneceria subordinado a Lisboa, mas contaria com um governo autônomo para tomar as decisões referentes à América. Sua direção caberia ao herdeiro do trono, dom Pedro, tornado príncipe regente depois que o rei dom João 6º obedeceu às ordens dos rebeldes vitoriosos e voltou a Portugal.

O cenário, contudo, foi de disputa. Os portugueses do reino não aceitavam a autonomia pretendida pelos brasileiros. Insistiam no retorno de dom Pedro a Lisboa e no desmonte das instituições instaladas no Rio de Janeiro quando para lá se transferiu a Coroa lusitana.

Em reação, setores da elite luso-brasileira, entre eles Bonifácio, se articularam em um movimento que reivindicava a permanência do príncipe, estabelecendo com ele uma aliança em nome de objetivos comuns: impedir que a América portuguesa seguisse o exemplo de seus vizinhos que optaram pela independência e assegurar sua unidade diante do perigo de fragmentação territorial.

Para Bonifácio, isso significava ainda garantir as condições para a adoção das reformas que defendia. Dom Pedro permaneceu no Rio de Janeiro e, em janeiro de 1822, nomeou Bonifácio ministro do Reino e Estrangeiros.

Diante da intransigência das Cortes, dom Pedro e Bonifácio caminharam juntos para a Independência, que passou a ser uma alternativa concreta em agosto daquele ano. Ele estava no centro das articulações que levaram à ruptura com a metrópole, atuando para que todo o território da América portuguesa fosse integrado em um novo país, o que incluiu o envio de tropas para províncias que resistiam a aderir ao Rio de Janeiro.

A Independência trazia consigo o desafio de construir um Estado e uma nação. Não havia, entretanto, consenso entre aqueles que estavam à frente desse processo sobre o perfil das instituições a serem organizadas, do país a ser constituído, do tipo de sociedade que deveria prevalecer.

Concordavam com a adoção de um regime liberal, com separação entre os Poderes, eleição de representantes para o Parlamento, súditos que se transformariam em cidadãos portadores de direitos individuais e políticos. Como, no entanto, materializar esse regime em uma sociedade escravista e marcada por uma profunda hierarquia social?

Bonifácio acreditava ter a resposta com seu projeto nacional, uma renovação profunda a ser conduzida pelo governo com o objetivo de civilizar uma população que, para ele, estava imersa na barbárie. Ele pretendeu amalgamar os metais de que dispunha em seu laboratório social para obter a têmpera de uma nação europeizada.

A natureza e a história forneceriam os elementos necessários, bastando os instrumentos da razão e do saber, postos a serviço do poder forjador do Estado, para sua transmutação em metal nobre. O Estado, em sua visão, seria o agente que, de cima para baixo, irradiaria essas mudanças. Por essa razão, a monarquia constitucional que defendia era altamente centralizada, com um Executivo forte e capaz de implementar as reformas que tornariam o país viável.

Não só o povo deveria ser civilizado antes de poder ser senhor de si, mas também a elite branca, por viver da exploração de escravizados.

Dela, resultava a violência, o ócio e o isolamento que marcavam o cotidiano dos grandes proprietários, incapacitados, portanto, para o exercício da cidadania e do compromisso com o bem comum. Em razão da escravidão, aferravam-se ainda a práticas agrícolas tradicionais, com a devastação das matas que empobrecia os recursos naturais, e resistiam à modernização das técnicas utilizadas na agricultura.

As medidas que deveriam ser adotadas eram radicais: abolir a escravidão, integrar o indígena, disseminar a educação e promover a mestiçagem. Todas visavam criar um povo homogêneo, a única forma de gerar um sentimento nacional e a aptidão para a cidadania.

Por meio da mestiçagem, surgiria uma nova raça com um repertório comum, moldado pela educação, meio para que a massa miscigenada adquirisse os valores, os costumes e os hábitos dos povos cultos. Os brancos teriam contribuição fundamental nesse projeto, ao inocular o sangue europeu na mistura que também seria cultural.

O pressuposto de Bonifácio era que todos os homens tinham capacidade intrínseca para alcançar o estágio superior que idealizava, inclusive os negros e os indígenas, mas só se tivessem condições de vida que propiciassem o desenvolvimento de suas potencialidades.

Por isso, era imperativo emancipar os negros e integrar os indígenas "selvagens". Os primeiros, em razão da escravidão, eram refratários a uma civilização da qual só conheciam o trabalho excessivo e o açoite. O negro africano era, assim, um bárbaro em terras brasileiras, não por sua natureza, mas por ser escravo. Era a escravidão que o barbarizava, não sua origem, cor ou raça.

Da esquerda para a direita, pessoa negra em pé, mulher morena sentada com criança branca no colo e homem também branco sentado com a perna cruzada e a mão sobre o joelho
'A Redenção de Cam' (1895), do artista espanhol Modesto Brocos, retrata os efeitos da mestiçagem ao longo das gerações, da avó negra à neta branca, bebê no centro do quadro - Museu Nacional de Belas Artes/Reprodução

Além de empecilho para o exercício pleno da cidadania por negros e brancos, a escravidão ainda representava um permanente perigo para a manutenção da ordem. Bonifácio alertava para o risco de manter uma parcela da população em situação de inimiga interna, já que escravizada. Em vez de inimigos, seriam alçados a cidadãos, reconhecendo, dessa forma, o Estado e o pertencimento à nação brasileira.

A principal beneficiária seria, afinal, a própria aristocracia dirigente. No entanto, não era suficiente libertar os escravos: era preciso que o governo tomasse para si a tarefa de integrá-los à sociedade, fornecendo-lhes terras, o que lhes proveria meios de subsistência.

Nenhum bem resultaria se os negros fossem simplesmente abandonados à própria sorte. Na visão de Bonifácio, a profunda hierarquia social seria preservada dessa forma, porque educação e meios de subsistência seriam distribuídos na medida certa para converter ex-escravizados em trabalhadores disciplinados.

Bonifácio era uma exceção no seio do grupo dirigente, e suas convicções reformistas atraíram uma oposição feroz a ele. Em julho de 1823, foi demitido do ministério em função das desavenças com aqueles que disputavam o poder e o programa de nação.

Assumiu, então, sua cadeira de deputado na Assembleia Constituinte, que se reunira em março de 1823 para escrever a Constituição brasileira, e apresentou um projeto de lei, propondo o fim do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Enquanto a emancipação não ocorria, caberia ao governo mediar a relação entre senhores e escravos, regulando-a de modo a retirar do primeiro o pleno arbítrio sobre a vida de seus cativos. Essa mediação, por si só, já seria uma novidade.

Os artigos da lei que apresentou estipulavam normas para reger o trabalho dos negros então escravizados, com restrições à exploração de menores e mulheres, determinação da jornada de trabalho e previsão de fornecimento de alimentação e vestuários adequados pelos senhores.

Além disso, Bonifácio prescrevia medidas paliativas, para diminuir o risco de revoltas e preparar os escravizados para serem livros no futuro, e que ficaria a cargo do poder público, não mais dos senhores, o julgamento e a punição de infratores.

Porém, antes que o projeto entrasse em discussão e que a Constituição fosse promulgada, dom Pedro fechou a Constituinte, em novembro de 1823. Bonifácio foi condenado ao exílio na França, onde amargou sua derrota.

Óleo sobre tela retrata José Bonifácio de Andrada e Silva, homem de cabelos grisalhos e vestes formais
'José Bonifácio de Andrada e Silva' (1935), de José Wasth Rodrigues - Centro de Memória Câmara Municipal de São Paulo

Para ele, haviam sido derrotados tanto o regime liberal, com a outorga de uma Constituição pelo imperador em 1824, quanto seu projeto nacional, com a continuidade da ordem escravista.

De volta ao Brasil anos depois, Bonifácio obteve certo protagonismo ao ser nomeado tutor de dom Pedro 2º, depois da abdicação do pai, em 1831. Mais uma vez, sofreu forte oposição de políticos que não concebiam que o jovem imperador fosse formado pelas ideias reformistas de Bonifácio. Destituído da tutoria em dezembro de 1833, foi colocado em prisão domiciliar em Paquetá e morreu em 1838.

A maior ilusão de Bonifácio foi, talvez, a volúpia voluntarista que o fez acreditar que o homem poderia escrever o futuro segundo exclusivamente sua vontade. Ele sabia, por outro lado, que não podia prescindir do apoio daqueles que compartilhassem sua visão ilustrada e tentou convencer a elite brasileira do que seriam seus reais interesses: aceitar o fim da escravidão e integrar os negros à sociedade para garantir a ordem, tendo na base da hierarquia social uma população homogênea e devidamente instruída.

Bonifácio falava aos grupos dominantes e só poderia ter sido bem-sucedido se contasse com a adesão de seus pares, mas encontrou uma forte resistência da elite, que não estava disposta a pagar o preço das reformas que supostamente a beneficiariam.

A alternativa que restava era inconcebível para um membro da elite branca brasileira do século 19: a mobilização de parcelas da população excluídas do poder. Ele acreditou ser possível transformações de fundo, econômicas e sociais, por meio de um projeto político que não era capaz de incorporar como agentes efetivos os diferentes setores de uma população heterogênea. Acabou derrotado.

Texto integra série Perfis da Independência

Esse texto é a quinta publicação da série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes —muito conhecidos ou não— do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal. O texto sobre a imperatriz Leopoldina deu início à série em fevereiro deste ano, seguido dos artigos sobre Hipólito da Costa, o aventureiro escocês Thomas Cochrane e Bárbara Pereira de Alencar, revolucionária e primeira presa política do Brasil.

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