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Andre Pagliarini

Livro sobre Bernie Sanders desperta paralelos com Lula e PT

Ex-assessor aponta contradições de campanhas presidenciais e projeto frustrado de movimento de massas do senador socialista

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Bernie Sanders com placas de campanha no primeiro plano

Bernie Sanders durante evento de campanha na Universidade do Michigan em Ann Arbor em 2020 Jeff Kowalsky - 8.mar.20/AFP

Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Crítico da captura da economia pelas elites e do intervencionismo externo dos EUA, Bernie Sanders transformou a política dos EUA sem nunca ter alcançado a indicação à Presidência pelo Partido Democrata. Em novo livro, que suscita comparações com a trajetória política de Lula, ex-assessor do senador socialista aponta contradições de suas campanhas.

Em 2017, o senador americano Bernie Sanders foi convidado a participar de evento no Westminster College, em Fulton, Missouri, no mesmo local onde, em 1946, Winston Churchill usou pela primeira vez a imagem da cortina de ferro para descrever a realidade que se desenhava na Europa pós-guerra.

Não é comum, nos Estados Unidos, políticos serem chamados pelo primeiro nome. Bernie, com 80 anos e uma longa carreira política, é um dos poucos.

Bernie Sanders discursa em evento do primeiro sindicato da Amazon nos EUA, em Nova York - David Dee Delgado - 24.abr.22/AFP

Na casa histórica perto do campus onde ficaria hospedado, Bernie recebeu a oferta de ocupar o quarto que Margaret Thatcher usou quando esteve na faculdade em 1996. Ele negou. O desgosto pela ex-primeira ministra britânica é sintomático da índole política de Bernie, um dos líderes mais influentes da esquerda americana em décadas, que vem ajudando a revitalizar o socialismo no país. Um assessor acabou dormindo na cama em que Thatcher havia passado a noite 30 anos antes.

Esse assessor, Ari Rabin-Havt, busca agora, no livro "The Fighting Soul: on the Road with Bernie Sanders", apresentar um retrato mais íntimo de Bernie, um político cujo forte é a nitidez de seu ideário progressista, mais que seu tato social.

Autodeclarado socialista democrático, Bernie assume uma posição política raríssima nos altos círculos da política estadunidense. Esquerdista sem pudores, que vem criticando o capitalismo desenfreado e o imperialismo intervencionista do seu país há décadas, Bernie alcançou um feito inusitado com suas duas campanhas presidenciais, em 2016 e 2020: pela primeira vez em quase um século, o movimento socialista passou a ter peso eleitoral, principalmente no âmbito do Partido Democrata, inspirado pela possibilidade real de Bernie chegar à Presidência.

Na esteira de Bernie, emergiram novas figuras que não tem medo de se identificar com uma esquerda mais vocal e internacionalista, como Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Rashida Tlaib e Cori Bush​.

Os democratas têm hoje no Congresso mais deputados e deputadas genuinamente interessados em promover o avanço de pautas da classe trabalhadora —como aumentar o salário mínimo, criar um sistema público de saúde e taxar agressivamente grandes fortunas— que em qualquer outro período nos últimos 50 anos.

A esquerda inspirada em Bernie ultrapassa os assuntos domésticos e critica o legado da política externa de Washington das últimas décadas. No passado, Bernie era uma voz solitária ao denunciar os feitos de presidentes americanos no exterior.

Quando foi prefeito de Burlington, em Vermont, Bernie atacava veementemente a política do então presidente, Ronald Reagan, de apoio aos contras na disputa com os sandinistas, o movimento revolucionário de esquerda que havia tomado o governo da Nicarágua em 1979.

Questionado sobre seu apoio ao líder sandinista Daniel Ortega, que Reagan considerava um "ditadorzinho" sustentado pela União Soviética, Bernie respondeu estar menos interessado se o governo nicaraguense era bom ou ruim e mais "se os EUA têm o direito unilateral de ir à guerra e destruir um governo de que o presidente Reagan e os membros do Congresso não gostam".

Mais recentemente, em 2020, Bernie se reuniu com Fernando Haddad (PT) para discutir a ascensão da extrema direita mundial e foi o único candidato americano a chamar de golpe, em 2019, o movimento militar contra o então presidente da Bolívia, Evo Morales, e a se solidarizar publicamente com o ex-presidente Lula na ocasião de sua saída da prisão.

Na campanha de 2020, esse histórico anti-imperialista veio à tona como controvérsia. Perguntado sobre Fidel Castro, por exemplo, Bernie disse ser contra a "natureza autoritária" do regime cubano, mas que é "injusto dizer simplesmente que tudo é ruim". O argumento do presidenciável era que a situação cubana era complexa, mas a imprensa tratou seus comentários como se fossem confissões de um crime.

Bernie seria leniente com ditaduras de esquerda? Sua suposta simpatia por tais governos revelava traços autoritários da sua própria visão política? No contexto de uma disputa presidencial, o escrutínio dado a essa colocação inócua beirava o ridículo.

"Do nosso ponto de vista," escreve Rabin-Havt, "a mídia ficou obcecada em falar sobre um ditador morto, mas se recusou a reconhecer o apoio de outros pré-candidatos democratas a ditadores vivos". O autor cita o exemplo do ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg, que, por ter uma relação próxima com o governo chinês, se recusava a condenar o tratamento cruel do grupo minoritário uigur durante sua campanha presidencial.

O problema, para Bernie, era que grandes vozes da imprensa tradicional já associavam categoricamente sua imagem a um certo iliberalismo generalizado de esquerda. É impossível separar essa tendência do fato de ele ser o único candidato a se identificar como socialista.

Hoje, ao criticar a forma casual em que Washington tantas vezes intervêm no resto do mundo, ele não está sozinho. A despeito do avanço do movimento contestatório do qual ele faz parte desde os anos 1960, no fim das contas, os obstáculos institucionais à candidatura de Bernie se mostraram intransponíveis.

A maior dessas, com certeza, foi o fato de o sistema político americano ser dominado por apenas dois partidos, ambos com relações estreitíssimas com o setor privado. O linguajar agressivo de Bernie contra os "milionários e bilionários", que, na sua visão, têm capturado todos os benefícios do capitalismo americano nos últimos anos, gerava divisões excessivas para muitos membros do Partido Democrata, uma agremiação mais progressista, mas a que Bernie sempre relutou em se filiar e criticou pela esquerda.

De acordo com o senso comum articulado na grande imprensa e por líderes políticos importantes, um discurso "nós contra eles" de esquerda simplesmente não seria a melhor maneira de enfrentar Donald Trump.

Outra crítica a Bernie era que sua suposta teimosia ideológica o impediria de ganhar —e ainda mais de exercer— a Presidência.

Segundo Rabin-Havt, ninguém menos que Barack Obama levantou diplomaticamente essa ressalva em uma conversa privada com Bernie antes do início da última campanha. "Bernie", disse o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos ao homem que poderia ter sido o primeiro judeu, "você é um profeta do velho testamento, uma voz moral para nosso partido, ajudando a nos orientar, mas aí é que está. Profetas não se tornam reis. Reis precisam fazer escolhas que profetas não precisam. Você está disposto a fazer essas escolhas?".

Bernie escutou respeitosamente a fala um tanto soberba de Obama e, de acordo com Rabin-Havt, discordou: "Ele tem uma crença fundamental de que poderia liderar um movimento firme para desafiar quem comandava o Partido Democrata, liderando, ao mesmo tempo, a mesma instituição, à qual se recusava veementemente a se filiar". As suas duas candidaturas presidenciais nasceram sob o signo dessas contradições.

A teoria de que, em um sistema bipartidário como o dos Estados Unidos, um outsider à frente de um movimento expressivo poderia ganhar a indicação de um dos partidos e, assim, concretizar uma possibilidade real de chegar ao poder enchia a esquerda de esperança. Afinal, de certa forma, foi isso que Trump fez em 2016.

Trump estava longe de ser consenso no establishment republicano, mas venceu as prévias, em grande parte, porque a oposição interna estava dividida. Dessa falta de coordenação partidária, brotou o extremismo racista, xenófobo e ultranacionalista de Trump.

Depois que Bernie ganhou em Iowa, New Hampshire e Nevada e ficou em segundo na Carolina do Sul —os primeiros estados a escolher o indicado democrata—, os candidatos mais conservadores, sem chances reais de vencer, desistiram para apoiar Joe Biden.

Como sustenta Rabin-Havt, o Partido Democrata mostrou em 2020 que tinha aprendido com o assalto do Partido Republicano por Trump. Com um partido dividido por vários postulantes, cada um com menos apoio popular que ele, Bernie poderia aos poucos acumular os delegados necessários para conseguir a indicação na convenção do partido. Para o autor, foi nesse momento que as chances de Bernie evaporaram.

Trump havia jogado um jogo parecido ao conquistar o Partido Republicano em 2016, mas o Partido Democrata não permitiu que isso acontecesse. Na perspectiva dos apoiadores de Bernie, ficou patente que o partido faria de tudo para se inocular contra a orientação socialista ou social-democrata representada pelo senador.

Depois de Bernie conceder a derrota a Joe Biden em abril de 2020, muitos analistas passaram a dizer que o socialista deveria ter tentado mais assiduamente conquistar pelo menos o apoio tácito de figuras expressivas do establishment. Quem sabe uma versão sanderiana da Carta ao Povo Brasileiro, apresentada por Lula em 2002, teria apaziguado os ânimos das forças de centro do Partido Democrata, aqueles com dificuldade de perdoar Sanders por ter desafiado Hillary Clinton em 2016?

Rabin-Havt discorda: tais colocações "ignoram a realidade de que as propostas [de Bernie] foram desenhadas, em parte, para minar o poder desses indivíduos e instituições, e é justamente por isso que eles buscavam derrotá-lo".

A despeito da insatisfação com o resultado das prévias, poucos fariam tanta campanha contra Trump quanto Bernie. Ele tinha uma preocupação real com o avanço da extrema direita, revela Rabin-Havt, tendo em vista a memória do nazifascismo que matou membros da sua família na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial.

Os princípios inabaláveis de Bernie não são fruto de vaidade, machismo ou sanha de poder, como alegavam vários de seus oponentes, mas de uma crença na necessidade urgente de uma mudança drástica de rumo político.

Diferentemente de muitos no Partido Democrata, Bernie não condenava os eleitores de Trump. Pelo contrário, argumentava que essas pessoas haviam sido abandonadas pela classe política e que buscaram no republicano uma maneira de romper com um sistema que já não provia vida digna à grande parte da população.

Bernie, obviamente, discorda de Trump sobre quem culpar pelo declínio do padrão de vida dos americanos. Para o ex-presidente, são os imigrantes, os progressistas, os chineses e outros vilões politicamente convenientes. Para Sanders, a culpa não é daqueles que lutam por uma vida digna, mas daqueles que detêm o poder.

O retrato de Bernie no livro de Rabin-Havt suscita muitas comparações com Lula. O petista, sem dúvida, atingiu um grau de sucesso político que Bernie jamais conseguirá —com 80 anos, é improvável que participe mais uma vez das prévias do Partido Democrata.

Pessoas próximas ao senador dizem que ele enxerga Lula como um exemplo exitoso da dinâmica que tentou ativar nas suas duas candidaturas: criar um grande movimento político baseado na conscientização da classe trabalhadora. A cultura política e as estruturas eleitorais dos Estados Unidos fazem com que seja praticamente impossível criar um novo partido viável baseado explicitamente no empoderamento dos trabalhadores.

No Brasil, condições históricas específicas —a abertura política, o novo sindicalismo, a Lei de Anistia e outras desde o fim dos anos 1970— permitiram a construção do PT, que sintetiza esse espírito.

Na campanha, Bernie insistia que a chamada revolução política que ele quis inspirar não poderia recair apenas sobre ele: era preciso um movimento de massas para mudar o rumo da política americana. A despeito desse discurso, eleições têm sempre um grau de personalismo e é impossível separar o candidato do projeto que busca encarnar.

O PT virou uma força nacional após muitos anos de construção política no Brasil inteiro. Goste-se ou não de Lula e do PT, ambos são exemplos de apoio duradouro em um sistema político multipartidário. Basta ver o desempenho fortíssimo de Lula nas pesquisas mesmo após a saga por que ele passou nos últimos anos.

Bernie, por sua vez, não conseguiu costurar as alianças políticas que talvez fossem necessárias para transformar seu apoio popular em perspectiva real de vitória —balança que Lula entende muito bem—, mas isso não quer dizer que ele não teve efeito sobre a política americana. ​

"Bernie Sanders nunca será presidente", conclui Rabin-Havet no livro, "mas suas duas campanhas transformaram o Partido Democrata e este país. Antigas ortodoxias sobre gastos governamentais e política externa desmoronaram como resultado dos esforços incessantes de um velho socialista".

Para Bernie, a emergência da extrema direita tem origem na falência da ordem global pós -Segunda Guerra Mundial, que desaguou na austeridade neoliberal e, em termos relativos, piorou a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo.

Ele quis enfrentar Trump nas urnas em 2016 e 2020 para avançar o projeto de um governo comprometido com os interesses dos trabalhadores, da vasta maioria da população e de todas as idades, gêneros, etnias, raças e níveis de educação­, com vistas a transformar para melhor o status quo.

Lula terá a oportunidade de enfrentar Bolsonaro neste ano. Que não falte fôlego para levar esse projeto adiante.

The Fighting Soul: On the Road with Bernie Sanders

  • Preço R$ 118 (352 págs.); R$ 112 (ebook)
  • Autoria Ari Rabin-Havt
  • Editora Liveright
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