Descrição de chapéu
Rosane Borges

Quase todo o Brasil cabe na casa abandonada

Podcast une jornalismo investigativo com ares novelescos e retrata decomposição do Brasil

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Rosane Borges

Jornalista e pesquisadora da ECA-USP

[RESUMO] O podcast da Folha "A Mulher da Casa Abandonada", que apresenta a história de uma herdeira, moradora de Higienópolis investigada nos Estados Unidos por escravidão de empregada doméstica, é um retrato novelesco de um Brasil condescendente com comportamentos criminosos de brancos.

Tal como um incêndio florestal, "A Mulher da Casa Abandonada", podcast deste jornal, apresentado pelo jornalista Chico Felitti, vem se alastrando país afora e provocando reações das mais diversas. O excelente trabalho jornalístico/dramatúrgico de Felitti (o podcast tem o traço indisfarçável de uma radionovela) se presta a um exame em várias camadas, tal como a raspagem de um palimpsesto.

Do latim, o palimpsesto foi uma técnica frequentemente usada na Idade Média e diz respeito àquilo que é raspado novamente, um conjunto de escritas que se sobrepõem, um manuscrito sob cujo texto se descobrem escritas anteriores. Uma vez que o pergaminho era escasso e caro, o material acabava sendo utilizado várias vezes. Além disso, o desejo da Igreja Católica em "converter" antigos escritos pagãos, sobrepondo a eles a palavra de Deus, pode ter orientado a difusão dos palimpsestos.

A mulher da casa abandonada - Podcast Chico Felitti
Capa do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' - Catarina Pignato

Pois bem, a cada episódio de "A Mulher da Casa Abandonada", camadas narrativas vão sendo raspadas, elos restabelecidos, fios subterrâneos oxidados vão sendo conectados para, gradativamente, apresentar o perfil de um mundo em estado de decomposição, "um mundo que se despedaça" (expressão do escritor nigeriano Chinua Achebe), tal como a mansão de Higienópolis.

Se uma conexão oculta é mais forte que uma evidência, como proclamou Heráclito, parece que estamos diante de acontecimentos com força diamantina para colocar em perspectiva o Brasil de ontem e de hoje.

"A Mulher da Casa Abandonada" não é Avenida Brasil, a novela que parou o país, mas vem atraindo a atenção de fatias expressivas da sociedade. Felitti dá várias lufadas de oxigênio no combalido jornalismo investigativo, fazendo de cada episódio um exemplar das boas práticas na profissão. O programa, no entanto, não é tão-somente um salutar exercício de jornalismo, mas também se configura como uma peça dramatúrgica, o que nos permite fazer paralelos com as (radio)novelas.

Como toda novela, coexiste nesse podcast uma história que se imbrica com tantas outras: trabalho escravo, colonialidade do poder, subalternidade, esnobismo aristocrático, condescendência e descaso desfilam em profusão à nossa frente.

A pesquisadora Merlise Meyer diz que as novelas são marcadas, invariavelmente, por "coincidências, idas e vindas, prolongamentos e repetições; [...] ricos gananciosos e pobres lutadores; tramas diabólicas e perseguições infindáveis; e, no final, recompensa para os bons e punição para os maus. Tudo devidamente picotado em capítulos diários, ansiosamente esperados e interrompidos em momentos decisivos".

Ao que tudo indica, o público optou por extrair do mix narrativo (jornalismo com dramaturgia) que esqueleta "A Mulher da Casa Abandonada" apenas a dimensão fantástica que lhe é intrínseca. A cada episódio, picotado em capítulos semanais, as pessoas se convertem em ouvintes de relatos que são acolhidos como se fossem meramente peças de ficção, bem ao modo da descrição de Meyer (deve-se admitir que uma mulher que anda com a cara besuntada de pomada, ao que tudo indica Hipoglós, e uma casa abandonada em Higienópolis são vocacionadas para o exercício da ficção).

Mas a mulher da casa abandonada é real, demasiadamente real, habita um dos territórios mais ricos do Brasil e sobre ela projetam-se histórias outras que revelam as hierarquias sociorraciais à brasileira, histórias essas que, em geral, são atravessadas como cortina de fumaça por aqueles que se plantam na frente da casa para tirar selfies que são compartilhadas nas malhas do digital.

A especulação/espetacularização bizarra e grotesca que parte dos interessados vem promovendo em frente à casa oblitera as camadas da crueldade que sedimentam a mansão de Higienópolis desde que uma de suas moradoras voltou a habitá-la.

A repercussão sísmica do podcast vem provocando peregrinações em série: as pessoas se deslocam até a casa para tirar selfies, espiar o imóvel, produzir vídeos como se estivessem lidando com personagens malévolos da ficção, à la Carminha ou Nazaré Tedesco.

Alguns ingressam no acontecimento como se estivessem assistindo a um filme de terror; outros parecem que estão fazendo um passeio na Disney, convertendo a frente da casa em um verdadeiro parque de diversões (até pedidos de pizza são feitos para segurar a vigília) e todos são movidos por uma ânsia em ganhar visibilidade com a história. O fato de algumas pessoas do bairro a batizarem de bruxa e excêntrica só reforça o imaginário de histórias fantásticas que orbitam a casa abandonada.

Esse comportamento coletivo é a expressão bruta de como a lógica algorítmica nos motiva a querer ser participantes de tudo. Afinal, deixamos de ser apenas consumidores/receptores de notícias e informações e nos convertemos em produtores de textos em formatos variados. A designação "prosumer" (produtores e consumidores) incide sobre essa condição bifronte.

Essa dupla condição —receptores e produtores de conteúdos em fluxo contínuo— chega a um estágio crítico, em que extraímos dos fatos e acontecimentos do mundo os elementos para projeções individuais tal como estivéssemos em um trabalho de exploração dos outros e de nós mesmos.

Os eus atomizados sentem-se compelidos a tirar todo tipo de vantagem dos fatos que ganham a atenção dos holofotes. Na lógica da visibilidade, animada por algoritmos, é preciso que cada um se banhe nas luzes projetadas por esses holofotes, independentemente do que trazem à lume na superfície das plataformas digitais.

Tira-se foto, faz-se filme, especula-se sobre o entorno da casa abandonada, não para dimensionar o que as revelações do podcast dizem sobre as microrrelações no Brasil em que o passado insiste em não passar, mas para se ganhar likes na despudorada economia da atenção. Nessa dinâmica vampiresca, parasitária, tudo vale, porque nada vale. Perde-se o parâmetro da responsabilidade social e coletiva e se esgota ou se destrói a sociedade civil, como bem assinala Muniz Sodré no seu mais recente livro, "Sociedade Incivil".

Pode-se cogitar se o formato do podcast não contribui para uma certa glamorização de Margarida Bonetti, se a forma do relato não comporta em si uma estrutura que beneficia narrativamente a mulher da casa abandonada, transformada em celebridade, ou ainda se o podcast não deveria colocar mais foco na história da empregada doméstica.

Até o momento, defendo que o problema não está na forma do relato, tampouco no papel de coadjuvante, pelo menos até o momento, da empregada doméstica que foi escravizada durante anos pelo casal Bonetti (até porque essa história não é dela, ela própria já se posicionou dizendo que não quer mais voltar à experiência tão traumática), mas reside na dinâmica da sociedade incivil.

De acordo com Sodré, "linguagem não é semântica, nem sintaxe, nem gramática, portanto, nem sequer apenas discurso, mas a ordem simbólica de acolhimento das diferenças e aproximações capaz de se apropriar e de expressar aquilo que somos. [...] Só que o aumento da liberdade técnica de resposta por parte do usuário, portanto, a responsabilidade individual, em nada afeta sua irresponsabilidade civil. Apenas no comum se constituem as identidades e os laços coesivos imprescindíveis à responsabilidade social".

Essa irresponsabilidade civil nos torna indiferentes ao que o podcast vai gradativamente revelando. Quanto mais cerramos fileiras em frente à casa para obter o bilhete de ingresso à praça da visibilidade internética, menos alcançamos as camadas do acontecimento criminoso.

Para quem vem acompanhando o podcast, o fio condutor da história é a contenda entre uma mulher que traja roupas sujas e malcheirosas e funcionários da Secretaria do Meio Ambiente na praça Vilaboim, em Higienópolis, nas vésperas do Natal de 2021. A mulher, que se apresenta como Mary, tenta impedir a derrubada de uma árvore na praça. No desenrolar da confusão, Chico Felitti descobre, por meio de outra moradora da região, que Mary mora na casa abandonada bem próxima da praça.

O rosto de Mary, que na verdade é Margarida Bonetti, é também uma alegoria do palimpsesto, em que a cada raspagem se tem acesso a subterrâneos de uma história tenebrosa. As camadas dos relatos que estão grudadas no rosto de Margarida Bonetti e na casa decadente que ela habita nos levam a pensar na colonialidade do poder.

No seu trabalho exaustivo, Chico vai entrevistando moradores e, aos poucos, descobre o que a pomada no rosto de Margarida esconde. Além de saber o nome verdadeiro de Mary, o jornalista toma conhecimento que a bruxa da casa abandonada era procurada pelo FBI por ter escravizado a empregada doméstica que levou do Brasil quando se mudou para os EUA no final da década de 1970 com o marido.

Com essa informação, o podcast vai descendo aos porões da casa e tendo acesso a outras informações. Puxando mais alguns fios desse novelo, o jornalista descobre que: o pai de Margarida "deu de presente" a empregada negra e analfabeta para que fosse escravizada pela filha e pelo genro; quando o marido de Margarida, Renê Bonetti, é condenado nos EUA pelos crimes hediondos contra a empregada, é a mãe de Margarida que, do alto dos seus 85 anos (sim, uma senhora em idade provecta), vai aos EUA testemunhar a favor do genro e dizer que ele não podia ser condenado, porque tratava-se de um homem da alta sociedade paulistana, e a empregada, uma pessoa da família, fazendo uso de um recurso tão velho quanto a escravidão.

Espanta como a vizinhança de Higienópolis era condescendente com a vizinha indesejada, ainda que várias tentativas de interdição da casa tivessem sido feitas (diz uma moradora: "Ninguém consegue entrar na casa". É isso mesmo, produção?).

Margarida jogava excrementos no muro que compartilhava com a vizinhança (já que não tinha mais esgoto), empesteando o primeiro andar de um condomínio muito conhecido no bairro. O mau cheiro obrigou um vizinho a se mudar (os incomodados que se mudem, deve ter dito Margarida). Além dos excrementos, moradores falam de uma quantidade absurda de mosquitos, de focos de dengue, do quanto ela desestabilizava a todos.

Com um temperamento autoritário, a criminosa de Higienópolis vivia arrumando confusão com várias pessoas: dos funcionários da Secretaria do Meio Ambiente aos porteiros, chamava com recorrência a polícia para afastar o que a incomodava, embarcava em táxi do bairro, dirigia-se aos subalternizados com esnobismo aristocrático.

Fosse um corpo negro ou pobre, Margarida não viveria mais de 20 anos no coração de um bairro nobre. Todos os elementos acima referidos certamente comporiam um dossiê espesso para a mais que justificada remoção. Em caso de insucesso, o que seria difícil, canais de TV e a imprensa seriam convocados para registrar tamanho descaso dos órgãos oficiais.

As pessoas falariam do perigo ao qual estavam sendo expostas, do ponto de vista sanitário e da segurança. Taxistas provavelmente recusariam transportar essa pessoa negra ou pobre que perturba a boa rotina do bairro e que não frequenta com assiduidade os chuveiros. Senhores gentis não varreriam sua porta, tampouco policiais passariam em frente à casa perguntando se está tudo bem.

Aliás, em sendo um corpo negro ou pobre o acesso à casa não seria um problema, como atestam as invasões, sem mandado oficial, nos bairros pobres deste país. Afinal, o que tinha Margarida de especial que impedia toda e qualquer tentativa de entrada oficial na casa? Por que os donos do poder jamais conseguiram ultrapassar o umbral da mansão? Os cachorros não valem como desculpa.

Higienópolis, anos atrás, virou assunto nacional quando um movimento dos moradores se colocou contra a construção de metrô no bairro porque traria gente indesejada para a região. Mesmo sendo uma ameaça sanitária, Margarida flanava pelo bairro porque se sentia uma igual. De certa forma, era assim reconhecida, integrante de família que outrora foi uma das mais ricas do estado de São Paulo.

Em tempo: o título deste artigo é uma adaptação do título do texto do historiador Luiz Felipe de Alencastro, "quase todo o Brasil cabe nessa foto", publicado em 1988. Decididamente, quase todo o Brasil cabe na casa abandonada e nas camadas de pomada do rosto de Margarida Bonetti, que é uma alegoria da decomposição de um Brasil que fede tal como a casa e sua dona.

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