Repórter conta experiência de inalar DMT, psicodélico em teste contra depressão

Potencial da substância extraída da jurema-preta, planta da caatinga, será investigado na UFRN em ensaio com voluntários

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Obra de Rodolpho Parigi Divulgação

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] Jornalista narra sua experiência psicodélica ao inalar DMT, que vem sendo objeto de um teste clínico na UFRN para investigar seu potencial no tratamento da depressão. Encontrada na jurema-preta, planta abundante da caatinga, a substância inalada ou injetada poderia contornar entraves que outras terapias com psicodélicos ingeridos enfrentam, como as longas sessões terapêuticas.​ Esta é a primeira reportagem da série A ressureição da jurema.

São 7h25 na chegada ao Hospital Universitário Onofre Lopes, da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Fernanda Palhano-Fontes, Marcelo Falchi, Sophie Laborde, Nicole Galvão-Coelho, Isabel Wießner e Aline Assunção já estão a postos.

A saleta no HUOL foi caprichadamente decorada para dar conforto aos voluntários do estudo com DMT (N,N-dimetiltriptamina). A poltrona reservada à cobaia é reclinável, aconchegante. Aparelho de EEG (eletroencefalografia), vaporizador Volcano, fones de ouvido, equipos da enfermagem: tudo pronto.

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DMT em decantação com hexano em laboratório do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) - Claudia Kober e Marcelo Leite/Folhapress

Explicam ao jornalista o que aconteceria, relembrando acordos prévios firmados nas sessões de triagem, com Falchi, e de preparação, com Laborde. Poderiam, por exemplo, tocar seu braço ou segurar sua mão, em caso de necessidade.

Descrevem a seguir a duração e a sequência do experimento: várias coletas de sangue e saliva, duas doses de DMT, um EEG antes e outro depois de cada pico na experiência psicodélica, preenchimento de questionários e escalas, duas sessões de integração rápida com a psicóloga.

A pequena orquestra atua sob batuta do físico Dráulio Barros de Araújo, neurocientista do Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN. Ele entra na saleta, confere se está tudo em ordem e dá o sinal verde para iniciarem a sessão.

É o quarto ensaio geral da fase-piloto de um teste clínico para investigar o efeito antidepressivo da DMT inalada ou injetada no músculo. O experimento começaria para valer no mês seguinte, junho, com os primeiros voluntários saudáveis (sem depressão), mas com experiência prévia no uso de psicodélicos.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), quase 300 milhões de pessoas no mundo vivem com o transtorno, 5% da população adulta. Considerando que um terço dos deprimidos não encontra alívio com os antidepressivos disponíveis, alternativas de tratamento fazem muita falta para reduzir tanto sofrimento.

O novo estudo dá continuidade à pesquisa do ICe que resultou, em 2018, na publicação do primeiro estudo no mundo com uma substância psicodélica para tratar depressão controlado por grupo de pacientes que tomaram placebo. Naquela ocasião, usou-se ayahuasca.

Esse sacramento religioso, pesquisado principalmente na UFRN e na USP de Ribeirão Preto, ajudou a pôr o Brasil em terceiro lugar entre países com artigos de maior impacto no renascimento da ciência psicodélica, a partir do ano 2000.

Depois daquele estudo pioneiro, Araújo passou dois anos na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. Retornou com o projeto de testar o potencial da DMT, composto psicoativo da ayahuasca ao qual se atribui o efeito antidepressivo, mas em um experimento diferente.

Estava convencido da necessidade de abreviar a sessão psicodélica com fins terapêuticos. A "força" do chá, como dizem adeptos de religiões como Santo Daime, Barquinha e UDV (União do Vegetal), pode durar três a quatro horas.

Uma viagem assim tão longa seria complicada de encaixar no contexto clínico, pois exigiria a presença de terapeutas treinados o tempo todo. Isso encareceria o procedimento, caso aprovado, e restringiria a quantidade de pacientes que se poderiam tratar.

Outros psicodélicos sob investigação para transtornos psiquiátricos apresentam dificuldades similares. MDMA para estresse pós-traumático, por exemplo, terapia mais próxima de regulamentação nos EUA, pode durar seis horas.

É mais ou menos o mesmo tempo de uma sessão com psilocibina, dos cogumelos "mágicos", também avançada em testes clínicos contra depressão. Hoje se estuda menos o LSD, não só pelo estigma adquirido na Guerra às Drogas desde os anos 1970, mas porque a viagem lisérgica pode ultrapassar oito horas.

A ayahuasca, se fosse para uso médico, apresentaria problema adicional: varia muito, de local para local, seu preparo com o cozimento das folhas da chacrona (Psychotria viridis) e do cipó mariri ou jagube (Banisteriopsis caapi). A variação dificulta sua padronização e o controle de dosagem.

Daí a preferência de alguns grupos de pesquisa, como o de Araújo, por empregar a DMT pura. No caso da UFRN, o composto vem sendo extraído da árvore jurema-preta (Mimosa tenuiflora), planta abundante na caatinga.

Essa planta nordestina se tornou o ingrediente primordial do que ganhou o nome de juremahuasca, combinação do chá da casca de sua raiz com outro preparado com arruda-da-síria (Peganum harmala), vegetal originário de áreas secas em torno do Mediterrâneo. Esse análogo da ayahuasca é muito usado por neoxamãs urbanos do Brasil e da Europa.

Na Holanda, por exemplo, a juremahuasca foi testada em um estudo da Universidade de Maastricht sobre seu efeito antidepressivo. Publicado em janeiro no periódico Psychopharmacology, o artigo constatou que o benefício permanecera por até um ano para 12 de 17 frequentadores de cerimônias neoxamânicas em busca de ajuda para depressão moderada a grave.

Inalada, a dimetiltriptamina tem efeito agudo curto, 10 a 15 minutos. Absorvida na corrente sanguínea pelos pulmões, chega rápido ao cérebro, desviando-se assim do sistema digestivo onde a DMT é inativada por enzimas (na ayahuasca, o cipó fornece inibidores dessas enzimas, enquanto no caso da jurema elas vêm de outras plantas, como a arruda-da-síria).

Na forma de cristal e misturada com ervas para combustão, a DMT fumada em cachimbos recebe em círculos não acadêmicos o nome de changa. Outra via de administração investigada na UFRN é a injeção intramuscular, que produz efeito por menos de uma hora.

Série A ressurreição da jurema

Marcelo Leite apresenta a pesquisa da UFRN sobre o efeito antidepressivo da DMT, encontrada na jurema-preta, e os rituais religiosos do Nordeste que empregam a substância

  1. Repórter conta experiência de inalar DMT

  2. Cientistas investigam efeito antidepressivo de psicodélico

  3. Cultos com alucinógeno da jurema florescem no Nordeste

A empresa Biomind, que tem sede no Reino Unido e é presidida pelo empresário uruguaio Alejandro Antalich, firmou um acordo com a universidade para promover o teste clínico, toda a pesquisa com extração e síntese de DMT e testes com animais. A parceria garantiu repasses para a universidade e para o instituto como um todo, além das verbas para o laboratório de Araújo.

Antalich havia sido responsável pela venda da primeira empresa a produzir maconha para um governo nacional, a ICC Labs de que fora diretor, à Aurora Cannabis. Depois do negócio, saiu à luta para empregar, na embrionária indústria dos psicodélicos, sua experiência empresarial e regulatória com substâncias controladas.

Foram três meses de buscas por um cientista para a tarefa, até presenciar uma apresentação de Araújo. Para Antalich, 50, os trabalhos anteriores com ayahuasca e depressão ali apresentados tornavam o neurocientista da UFRN um parceiro talhado com exatidão para a Biomind.

No Projeto Dunas, como foi batizada a pesquisa com "DMT de A a Z", o acordo com a Biomind permitiu formar a equipe de 20 pessoas, entre psiquiatras, psicólogos, químicos, enfermeiros, experimentadores animais e fisiologistas. Foi com os fundos assim obtidos que se fez a montagem do laboratório para processar jurema-preta e das salas em que ocorrem os experimentos.

Após o grupo de voluntários saudáveis, chegará a vez de pacientes com depressão resistente a outros tratamentos inalarem a DMT, já com o fármaco em formulação fornecida pela Biomind. Na fase seguinte, a sequência se repetirá com a injeção da mesma substância produzida segundo parâmetros rígidos para uso clínico.

Sem mais percalços, como a pandemia de Covid que atrasou o início do estudo, o plano é concluí-lo até o final de 2023.

A colocação da touca branca de EEG, com 32 eletrodos, demora um tanto. De tamanho médio, não serve muito bem na cabeça grande, mantendo as orelhas sob pressão.

A solução de Wießner, Palhano-Fontes e Falchi é deixá-las para dentro, mas aí um eletrodo do lado direito fica um pouco afastado e não emite sinal. Mais um pelote de gel e se resolve a dificuldade.

O acesso na veia do braço direito também dá trabalho, não de imediato, só após a segunda dose. Assunção, a enfermeira, não consegue colher sangue aos 5 e aos 10 minutos, ou seja, 2 em 11 coletas falham. Ela atribui a dificuldade a coágulos que se formam no finíssimo cateter de silicone inserido no vaso sanguíneo.

Uma ou duas vezes o sangue vaza, e ela limpa o braço com álcool. Nada disso incomoda, e a informação parece tranquilizá-la, diante da tensão com os prazos apertados das coletas e o risco de hemólise do sangue (quando hemácias se rompem sob pressão e prejudicam a centrifugação para separá-las do soro para análise).

Falchi mostra a malha de metal com 30 mg de DMT que vai no vaporizador. Após treinar o uso do balão três vezes, sem a substância, chega a hora da inalação de verdade.

Não é fácil esvaziar o reservatório de dois litros, porque a DMT irrita as vias respiratórias. Seguidos reflexos de deglutição permitem reter o fôlego por dez segundos, depois de esvaziar o plástico farfalhante que o psiquiatra vai amassando para auxiliar no escoamento. Retido o gás nos pulmões, reclinam a poltrona bege para a decolagem.

O efeito visual foi semelhante ao da changa fumada na praia de Algodões (BA), em março, durante o festival neoxamânico Equinox. Frio nos braços e a impressão de que tudo fugia, um desmaio parecendo iminente, leveza enorme, como se flutuasse no espaço.

A partida é vertiginosa, e tudo fica colorido de imediato. É grande a dificuldade em reter e descrever as imagens. Parecem bidimensionais, como que projetadas na tela das pálpebras fechadas, algo fractais, mas não geométricas nem caleidoscópicas.

São fractais mais orgânicos, com limites curvos entre as cores, não linhas retas nem ângulos. Formas que se repetem com predominâncias de amarelo, marrom, laranja e vermelho, pouco azul, verde e roxo. Bonito, mas menos esfuziante que as imagens com changa, semelhantes a arabescos em uma mesquita em Istambul.

Mesmo com a percepção alterada do tempo, fica claro que a viagem dura poucos minutos na fase visual. Alguém toca o braço do repórter para avisar que iriam registrar o EEG e pedir para alternar olhos abertos com olhos fechados.

O primeiro registro, cinco minutos com fones de ouvido nos quais toca a música de Raphael Egel, marido de Wießner, são tranquilos, assim como a sucessão abre-e-fecha de pálpebras. Tudo parece engraçado, instantes prenhes de bom humor.

Muitos sorrisos e prazer. Uma experiência agradável com aqueles pesquisadores, ainda que não exatamente em conexão com eles, mais voltada para dentro.

Novos cinco minutos de olhos fechados, agora sem música, e se torna penoso não adormecer. Surgem imagens de um menino desconhecido, fugidias, como de quem escorrega para o sono.

Após essa primeira dose, surpresa quando o médico, Falchi, diz que já haviam passado 40 minutos. Pergunta se poderia prosseguir para a integração e as escalas psicométricas.

Tudo soava divertido, mas o raciocínio estava prejudicado. Surge alguma dificuldade para entender e marcar os traços verticais, com caneta vermelha, na régua de avaliação de intensidade e qualidade (agradável/desagradável) da experiência.

Sophie Laborde, 25, encarregada de entabular conversas de avaliação da experiência que psicólogos como ela e psiquiatras como Falchi chamam de integração, é quase 40 anos mais nova que o jornalista. Apesar da diferença de idade, a conversa sobre sentimentos íntimos do voluntário flui sem barreiras.

Formada em psicologia na UFRN, é uma das poucas pessoas de ciências humanas no grupo de cientistas naturais do laboratório de Araújo no ICe. O ensaio clínico será tema de sua dissertação de mestrado.

O interesse dela em substâncias psicoativas surgiu no contato com a ayahuasca em uma fase difícil da vida, aos 19 anos. O pai, francês radicado no Brasil, havia sido diagnosticado com câncer em 2016 e voltara a morar com a família da qual se distanciara.

Após ouvir relatos sobre o chá, buscou ajuda da beberagem e passou por uma das experiências mais significativas de sua vida. "Encontrei muita compreensão para meu pai", conta. "Compreensão e empatia, inclusive comigo mesma." Teve outras experiências com DMT, com xamãs e na UDV.

Fez concurso para vaga temporária de psicóloga jurídica e trabalhou dois anos em processos de conciliação. Passou o ano de 2021 na praia de Pipa, dando consultas virtuais de psicoterapia.

Também acompanhou grupos de jovens que usavam psicodélicos, seja recreativamente, em baladas, seja em busca de autoconhecimento, geralmente com neoxamãs urbanos. A maioria lhe dizia que nunca houvera chance de falar sobre essas experiências, boas ou más.

Em janeiro de 2022, voltou a Natal, com planos de fazer mestrado na França, os quais havia adiado por força da pandemia. Uma colega de clínica lhe falou então que o grupo de Araújo buscava psicólogos para fazer a integração de participantes no ensaio com DMT.

Candidatou-se para a vaga e começou a participar de reuniões, intimidada de início com os termos técnicos e médicos, mas se sentiu bem com o apoio do grupo. Entusiasmou-se com a possibilidade de fazer o que mais gosta: ouvir pessoas.

"Se conseguirmos o mesmo resultado da ayahuasca com dez minutos de DMT, imagine o efeito disso na saúde pública. Um fármaco que poderia ajudar muito quem hoje não tem ajuda." Ajuda dos antidepressivos disponíveis, ela quer dizer, referindo-se àqueles 30% de pessoas com depressão resistente a tratamento.

Laborde considera importante que pesquisadores e terapeutas, elas e eles também, tomem os psicodélicos que aplicam. Por experiência própria, inclina-se em favor da hipótese de que algo na própria viagem contribui para o benefício terapêutico, e passar por ela torna menos difícil escutar. "Para o voluntário, saber que o pesquisador tomou e confia na substância pode ser muito tranquilizador."

A segunda dose, 100 mg no vaporizador, tem algo de parecido e, ao mesmo tempo, de completamente diverso da primeira. Para começar, calorão, não frio.

Apesar do volume idêntico de gás no balão, esvaziá-lo resulta mais complicado. Ocorre intensa irritação na garganta e nos pulmões, quase insuportável, forçando aspiração pelo nariz sem soltar o bocal, engolindo em seco para não tossir.

A contagem de dez segundos parece interminável, e na metade já começa com estrondo uma decolagem vertical. A força empregada para respirar é bem maior, assim como a ansiedade. Aberturas seguidas dos olhos tentam conter o desamparo perturbador.

O coração bate acelerado. A pressão sobe a quase 17 (na primeira dose, tinha ido a 14,5).

A ponto de pedir para alguém segurar-lhe a mão, o jornalista passa a acariciar o pano do braço esquerdo da poltrona. É uma reminiscência de quando tomara LSD na praia, anos antes, e ficara escorrendo areia entre os dedos da mesma mão esquerda, com efeito calmante sobre o turbilhão de emoções.

Há diferenças marcantes nos visuais. Mesmo esta observação, contudo, vem com sabor de reconstrução, sem a certeza de capturar em palavras o muito que se vê.

Tudo parece tridimensional, ou talvez multidimensional, porque as transparências e a navegação pelo espaço colorido em nada se assemelha a projeções em uma tela, mesmo se vista com óculos em um cinema 3D. A cabeça inteira circula entre salões e corredores de palácios, como se fosse ela própria um drone.

As divisórias dos espaços percorridos têm figuras que lembram símbolos alienígenas ou escrita vagamente centro-americana. O conjunto evoca uma nave ou um ambiente de outro planeta, e não seria surpresa se um ET surgisse ali.

Dissipadas as imagens e turbinada a introspecção, o sentimento não é mais de graça ou espanto divertido, como poucas horas antes, mas de peso. Nada de leveza ou flutuação. O corpo se retesa, não exatamente tenso, contraído.

Pressão e leve dor na cabeça. Pescoço rijo, além da mandíbula. Algumas contrações involuntárias, tremor no braço direito, espasmos sutis de corpo inteiro. Nada preocupante.

As sensações corporais vêm acompanhadas de notável queda de humor. Uma espécie de tristeza, não doída, melancolia mais que tristeza. Como que uma lembrança decepcionada de que estar vivo é viver apartado dos outros —em última instância, só. O abandono de ser indivíduo, separado, autônomo.

Na integração, Laborde pergunta se o sentimento é de voltar a ser criança. De certa maneira, sim, no que tem de penoso. O principal lampejo, ouve a psicóloga, vem com a intuição de que as doses sucessivas desencadeiam contato com dois planos diferentes da psique.

Na primeira dose, goza o eu motivado e determinado do cotidiano, que tenta sempre ir para cima, fazer piada, dar carinho, buscar prazer, diversão, humor, bem-estar, produtividade. Aquela parte que consegue encontrar alegria na vida, apesar de tudo, de Bolsonaro, da pandemia, da desumanidade antes insuspeitada.

Na segunda dose, ocorre a descida a um porão da mente, onde vegeta um caroço mais duro, básico, primitivo. Não algo escuro, desesperador ou angustiante, mas menos brilhoso, aterrado, imóvel como um monólito. É difícil achar palavras para emoções tão brutas.

Preocupado de início com as coletas de sangue e saliva, o repórter se dá conta de que mal as percebe. A avalanche de imagens e sentimentos mais e menos luminosos toma todo o espaço mental, não deixa quase margem para perceber interferências externas sobre o corpo.

Tais amostras serão cruciais, no teste clínico da DMT, para deitar alguma luz sobre o terreno obscuro em que a bioquímica da mente secreta humores, traumas, ideias e vontade de viver. Ou não.

A fisiologista Nicole Leite Galvão-Coelho colabora há mais de uma década com Dráulio Araújo. Foi responsável pelas análises de sangue dos participantes do estudo pioneiro de ayahuasca para deprimidos com controle por placebo, de 2018.

Ela pesquisa o efeito do chá também em saguis isolados por nove semanas, quando caem em um estado equivalente à depressão de humanos. Tem dado a bebida para eles a cada três semanas, com aparente efeito profilático.

Nos estudos anteriores com ayahuasca, a dose efetiva de DMT era conhecida de modo impreciso. Afinal, a metabolização do psicoativo varia muito de indivíduo para indivíduo.

Agora, com a substância inalada ou injetada, as 11 sucessivas amostras de sangue permitirão estabelecer concentrações mais precisas, no corpo do voluntário, a cada instante. Com isso, será possível correlacioná-la com os escores das escalas psicométricas (questionários) para medir a resposta antidepressiva.

"O mais complexo é a coleta durante o efeito psicodélico, não pode demandar atenção do paciente", diz a pesquisadora. "A DMT é vasoconstritora, o que dificulta pegar a veia, daí usarmos o catéter e não uma agulha. Agora temos um desafio novo: ser muito ágil e ao mesmo tempo dar conforto ao voluntário."

Por esse motivo, a fobia de perfuração figura entre os critérios de exclusão do teste clínico. O mesmo vale para propensão ou histórico de psicose, inclusive em parentes de primeiro grau, e problemas cardíacos.

As análises de sangue e saliva abrangerão mais que determinar a concentração de DMT no sangue. Nos experimentos anteriores, Galvão-Coelho já vinha medindo biomarcadores que a literatura tem associado com o transtorno de depressão e o efeito antidepressivo, como o cortisol, conhecido como hormônio do estresse.

Outro fator investigado é a PCR (proteína C-reativa), indicador de inflamação, pois cérebros de pessoas deprimidas com frequência se mostram inflamados (embora não se saiba ao certo se como resultado ou componente causal do transtorno). Outro ainda, o hormônio do crescimento, participa da reação ao estresse agudo e parece estar relacionado com a depressão.

Por fim, a atenção do grupo se volta para o BDNF (do inglês para "fator neurotrófico derivado do cérebro"). Essa proteína se encontra em quantidade no hipocampo e no córtex cerebral e está envolvida na neuroplasticidade, ou seja, na formação de sinapses (conexões entre neurônios) e, portanto, no aprendizado.

Um dos mecanismos aventados como explicação para o efeito antidepressivo dos psicodélicos aponta nessa direção. Eles facilitariam a abertura de novos caminhos na mente para a pessoa escapar do circuito fechado de pensamentos negativos, a ruminação que em alguns casos pode desembocar em ideações suicidas.

O HUOL, hospital da UFRN vinculado ao SUS, realiza 800 a 900 atendimentos psiquiátricos por mês, dos quais 10% a 20% são pacientes com depressão. A cada semana, 10 a 20 são diagnosticados como portadores da forma resistente do transtorno, pessoas que já tentaram dois ou mais medicamentos sem sucesso.

Não faltarão participantes para o teste clínico em parceria com o ICe, informa Emerson Arcoverde Nunes, 40. O psiquiatra do HUOL também colaborou com Araújo no estudo da ayahuasca.

A zona norte de Natal, exemplifica, tem cerca de 400 mil moradores e conta apenas um Caps (centro de atenção psicossocial), ainda por cima especializado em álcool e drogas. "Fica tudo com a gente", queixa-se o psiquiatra.

Para complicar, com a priorização do atendimento a infectados com Covid, o hospital viu os leitos psiquiátricos reduzidos de 130 para 65. O serviço público de saúde mental precisa urgentemente de alternativas de tratamento, resume o médico.

Arcoverde põe muita esperança na DMT: "Quanto mais opções, melhor, e opções novas", diz. Ele cita o anestésico cetamina, que vem sendo usado com algum sucesso contra depressão, mas não funciona com metade dos pacientes.

"A DMT tem efeito forte e agudo, pode tirar da ideação suicida", espera o psiquiatra. "A vantagem da DMT é ser uma medicação diferente, com mecanismos de ação diferentes e diferentes contraindicações."

As mais recentes inovações farmacológicas para depressão surgiram há quase meio século, com os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (neurotransmissor em cujo circuito os psicodélicos também agem).

Marcelo Falchi Parra Carvalho Silva, 32, parceiro de Arcoverde no ICe, é também psiquiatra. Natural de Votuporanga (SP), esteve baseado até outubro de 2021 em Campinas, onde atuou com Luís Fernando Tófoli e Isabel Wießner em experimentos sobre o efeito de LSD na cognição.

Falchi largou tudo e se mudou com apenas duas malas para Natal, atraído pela chance de estudar a DMT contratado pela Biomind como chefe da unidade de pesquisa psiquiátrica. Sua fascinação com a molécula vai ao ponto de carregar uma tatuagem dela nas costas.

A primeira experiência com a N,N-dimetiltriptamina, "impactante", ocorreu ainda na residência em psiquiatria. Trabalhou no SUS e iniciou um mestrado na Unicamp, mas se sentia insatisfeito com a precariedade dos procedimentos em sua especialidade. Queria entender melhor a consciência e sua alteração sob efeito de psicodélicos, o que chama de "cartografia fenomenológica".

"Minha função principal aqui é trabalhar como médico-cientista. Lá tinha de trabalhar como médico em uma enfermaria do SUS, prescrevendo tratamentos de eficácia limitada, dedicando-me em segundo plano à ciência. Atualmente faço ciência sem preocupação com o título acadêmico."

Planeja dois anos nos experimentos da Biomind com o ICe/UFRN. Depois, talvez, encarar um doutorado.

Falchi considera inviável, para atendimento no SUS, um modelo similar à psicoterapia apoiada por MDMA para estresse pós-traumático. O tratamento poderá ser aprovado em 2023 ou 2024 nos EUA, com base nos esforços da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês).

Além de caro, o acompanhamento das longas sessões de dosagem por terapeutas dá margem a interferências indevidas do profissional que não for muito bem treinado, pois o paciente se torna sugestionável. "É uma janela muito grande para o médico inserir coisas indesejáveis, por maldade ou despreparo", preocupa-se.

Caso sessões mais curtas de DMT se revelem eficazes contra depressão, o psiquiatra vislumbra um esquema de atendimento diferente. Por exemplo, clínicas que se especializem em aplicar doses, monitorar pacientes durante o procedimento e devolvê-los ao serviço psicológico ou psiquiátrico em que já se tratavam.

A DMT entraria com uma lufada de neuroplasticidade, sem elaboração de conteúdos no auge da experiência psicodélica, breve e intensa. Só no período posterior, de efeitos subagudos, ocorreria tratamento psicoterápico em sentido estrito.

Para isso, seria necessário capacitar um número bem menor de terapeutas que no modelo Maps, e o treinamento poderia ser mais curto. "Por eu ter vindo do SUS, sei que não vai dar. Para a Vera Fischer dá, para o seu Cícero, não."

Os procedimentos finais do experimento transcorrem sem tropeços, sem alegria, sem impaciência e sem enlevo. De novo, certo embotamento, dificuldade de entender e preencher, a pedido de Falchi, as escalas sobre intensidade e qualidade da experiência.

O médico pergunta várias vezes se o jornalista se sente bem. Informa que deu tudo certo com o experimento-piloto, fora algumas falhas na coleta de EEG e sangue. Pode liberá-lo para alimentar-se e ir embora.

A acompanhante já está à espera. São quase 15h, e de novo a surpresa com quanto tempo transcorrera.

Chega o almoço na quentinha: peixe com arroz, feijão e legumes. Claudia recebe carne assada com arroz, feijão e farofa de milho. Um pouco enjoado, com dor de cabeça e apetite, o repórter raspa o prato da mulher.

De volta à casa de hospedagem, surge uma necessidade imperiosa de sair, ver o céu e caminhar, por 40 minutos. Suor copioso à flor da pele, acompanhando o jorro de emoções e pensamentos.

Uma narrativa condensada para os anfitriões ajuda a organizar pensamentos, mas com a sensação crescente de que a razão se esforça por preencher lacunas naquilo que não tem como acessar. Quase uma impostura, uma reconstrução criativa movida pelo desejo de comunicar aos outros a experiência inefável.

Como resíduo principal, fica o impacto da segunda dose. Insinua-se a suspeita de que seria experiência talvez perturbadora demais para quem não tenha contato prévio com psicodélicos, o que poderia desencadear pânico.

Ao jornalista, parece duvidoso que uma vivência limítrofe possa ter sempre utilidade terapêutica, ao menos para deprimidos graves. Trata-se de impressão deixada por uma única observação subjetiva, contudo.

Sabe-se muito pouco, ainda, sobre o mecanismo por trás do benefício psíquico, alerta Dráulio de Araújo. Não se exclui que o efeito seja principalmente bioquímico, o que permitiria até que futuros medicamentos psicodélicos venham a ser administrados sob sedação, para evitar eventuais viagens tumultuosas.

Em uma reunião à tarde, logo após a dupla sessão, a equipe se inclina a diminuir as doses para 15 mg e 60 mg, ao menos para alguns voluntários, informaria depois Araújo. Pensem bem antes de dar esse passo, recomenda o jornalista.

Afinal, pode ser cisma de pessoa dada à parcimônia, que não vê sentido em jornadas heroicas com psicodélicos. No frigir dos ovos, não se trata de um paciente em busca de cura, e sim de experiências para ancorar em relatos vívidos o potencial terapêutico vislumbrado pela ciência, mesmo que trazendo autoconhecimento e paz como efeito colateral —e nada adverso.

O maior espanto: perceber que a DMT inalada desencadeia momentos intensos, perturbadores, mas não faz emergir conteúdos (memórias, pessoas, traumas, acontecimentos), como é comum no efeito comprido da ayahuasca. Lança a pessoa em um espaço estranho, que pode ser maravilhoso, mas também inóspito.

Agora, é aguardar a conclusão do estudo para descobrir se essa rápida visita ao subsolo da psique pode trazer alguma luz transcendental também para quem se encontra aprisionado na depressão.

Rodolpho Parigi é artista visual. A obra no início deste texto faz parte de um conjunto realizado entre 2018 e 2020, que será exibido pela primeira vez no Instituto Tomie Ohtake a partir de 25 de agosto.

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