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Arqueólogo propõe nova visão sobre civilizações amazônicas

Eduardo Góes Neves apresenta em livro a principal síntese em décadas da história pré-colombiana da Amazônia

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Rio Amônia, no Acre, em área ao sul da aldeia Apiwtxa Sebastião Salgado/Divulgação

Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

[RESUMO] No livro "Sob os Tempos do Equinócio", o arqueólogo Eduardo Góes Neves apresenta trajetória mais nuançada e complexa da trajetória de mais de 10 mil anos dos povos amazônicos, refutando o modelo mecanicista e linear que associa a evolução à formação do Estado, o que abre novas possibilidades de compreensão das sociedades.

As tentativas de narrar o passado profundo da Amazônia têm o desagradável costume de descambar para os extremos.

Pesquisadores europeus e americanos do século 20 proclamavam que a região sempre teria sido um deserto de homens e ideias, sem os recursos necessários para que sociedades complexas emergissem por conta própria, enquanto a cultura popular e os teóricos da conspiração continuam a sonhar com cidades perdidas, pirâmides e Eldorados no meio da mata.

Nenhuma das pontas desse espectro consegue parar de pé diante do que sabemos hoje sobre a trajetória muito mais complicada e interessante dos povos amazônicos, diz o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

Eduardo Góes Neves, arqueólogo e professor da USP - Pesquisa Fapesp no YouTube/Reprodução

No seu novo livro, "Sob os Tempos do Equinócio", Neves apresenta a síntese mais importante das últimas décadas sobre a história pré-colombiana da Amazônia, com destaque para o centro da região (grosso modo, a área onde hoje está Manaus), na qual ele e seus colegas realizaram escavações entre 1995 e 2010 no âmbito do Projeto Amazônia Central.

O retrato que surge dessa análise, incorporando também informações sobre o passado de lugares como o Alto Xingu, a ilha de Marajó e o Acre, é decididamente paradoxal e nada linear. De um lado, fica nítido que os povos amazônicos encontrados pelos invasores europeus a partir do século 16 eram herdeiros de uma trajetória de mais de 10 mil anos de ocupação humana da floresta.

Tinham domesticado dezenas de espécies vegetais e dominado tecnologias como a cerâmica em épocas tão remotas quanto as de outros centros civilizacionais espalhados pelo mundo. Eram perfeitamente capazes de projetar assentamentos de grande escala, conectados por estradas e redes de comércio e adornados por estruturas monumentais (em geral, montículos de terra ou desenhos geométricos no solo, por vezes com centenas de metros de perímetro).

No entanto, tudo indica que as aldeias superpopulosas e o gosto pela monumentalidade são um fenômeno relativamente recente, que teria começado apenas nos primeiros séculos do que costumamos chamar de Era Cristã, embora os ancestrais dos atuais indígenas já ocupassem a região havia vários milênios.

Além disso, por volta do ano 1.000 d.C., momento de aparente ápice das sociedades da região, sinais de crise e conflito pipocam na Amazônica Central, com o encolhimento ou abandono das povoações e a construção repentina de estruturas defensivas. Embora os primeiros europeus que passaram pela região, como o frade dominicano Gaspar de Carvajal (1500-1584), mencionem povoados imensos, que se estendiam por léguas e léguas nas margens do Amazonas, é possível que eles estivessem vendo apenas o que restara de grupos ainda maiores.

O significado por trás desses vaivéns ainda não está totalmente claro, mas, para Neves, os dados trazem a chance de abandonar modelos mecanicistas a respeito de como uma sociedade "deveria" evoluir, em uma linha reta que começaria com os caçadores-coletores, passaria pela descoberta e intensificação da agricultura, desencadearia processos cada vez mais férreos de centralização política e desembocaria no Estado.

"Dá para achar um caminho diferente e se libertar dessa perspectiva evolucionista muito linear. O Estado pode não ser o único caminho", diz Neves em entrevista à Folha.

Os debates sobre o tema têm ganhado força em outros livros que buscam reanalisar as raízes arqueológicas das sociedades humanas, como "O Despertar de Tudo", escrito pelo antropólogo David Graeber e pelo arqueólogo David Wengrow.

Tanto a obra da dupla quanto o livro de Neves ressaltam o fato de que há custos consideráveis, do ponto de vista individual e social, para que "grandes civilizações" regidas por monarcas, controladas por burocratas e caracterizadas por altos níveis de desigualdade social acabem se consolidando.

O fato de que instituições desse tipo não tenham se desenvolvido de forma autóctone em muitos lugares do mundo não seria explicado por algum tipo de deficiência ambiental ou cultural (falta de recursos naturais ou de ambição, digamos), mas porque alguns povos teriam sido capazes de resistir ativamente à centralização de poder econômico e político.

"Descobri uma afinidade grande com as ideias do Wengrow nos últimos anos", afirma Neves. Outra influência importante de "Sob os Tempos do Equinócio" é o antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977), que não enxergava as "sociedades contra o Estado" dos povos indígenas como falta, mas como potencialidade.

Para o pesquisador brasileiro, no entanto, também é preciso levar em contar os aspectos ambientais e geográficos que influenciaram a trajetória das culturas amazônicas e as de outras regiões sul-americanas, mas em um sentido oposto ao que os arqueólogos da velha guarda atribuíam a esses elementos.

O caso mais famoso é o da americana Betty Meggers, que trabalhou em Marajó e morreu em 2012, aos 90 anos. Dando destaque aos solos pobres e à alta temperatura e umidade de boa parte da Amazônia, Meggers propunha que a região jamais teria conseguido sustentar populações densas no longo prazo, por não ser suficientemente produtiva do ponto de vista agrícola.

Segundo essa visão, o presente seria, no fundo, uma representação mais ou menos fiel do passado: as aldeias de pequeno porte e as lavouras itinerantes e modestas dos grupos indígenas atuais também teriam predominado nos séculos antes da chegada dos europeus.

Faltou, porém, combinar com as chamadas várzeas, como são conhecidas as margens dos rios amazônicos, em especial as dos classificados como de águas brancas, como o Solimões, que se encontra com o rio Negro nas vizinhanças de Manaus. A designação popular, de fato, é a chave: as tais águas brancas adquirem essa coloração por causa dos sedimentos de origem andina que carregam —sedimentos capazes de potencializar a fertilidade dos solos onde são lançados na época das cheias.

Quando esse fator se soma à abundância de recursos pesqueiros, o quadro pode muito bem se inverter, argumenta Neves.

"A gente pode fazer uma comparação com o litoral e as regiões montanhosas dos países andinos, onde se observa o surgimento do Estado na América do Sul pré-colombiana", exemplifica. "Ali, você tem uma abundância de recursos, mas eles estão circunscritos a certas áreas e são mais fáceis de controlar, o que impulsiona o surgimento de organizações estatais. Na Amazônia, os recursos são muito abundantes e espalhados por uma área grande demais —portanto, mais difíceis de controlar. O problema, entre aspas, é a abundância, não a falta."

Além do mais, no cenário amazônico pré-cabralino, o próprio conceito de agricultura se torna escorregadio. De um lado, é da Amazônia, ou das matas de transição em sua zona de influência, que parecem ter vindo espécies vegetais domesticadas que hoje são peças importantes da alimentação humana no mundo todo, como a mandioca, o amendoim e o cacau. O próprio milho, apesar de ser oriundo do México, passou por um estágio de melhoramento crucial em solo amazônico, que possibilitou seu uso em outros locais do continente.

Mas os arranjos de plantio, ao que tudo indica, caracterizavam-se por uma alta diversificação dos cultivos e pelo manejo constante de espécies que não se tornaram propriamente domesticadas, em especial as palmeiras produtoras de frutos. Em outras palavras, a distribuição de espécies da floresta é "antropizada", mas ela não deixa de ser floresta.

Aliás, esse ponto talvez seja relevante para compreender, em parte, porque o adensamento populacional e as aldeias com estruturas monumentais só começam a tomar forma a partir de uns 2.500 anos atrás. Alguns dados paleoclimáticos indicam que é nesse período que condições ambientais mais secas, predominantes durante vários milênios após o fim da Era do Gelo, deram lugar ao clima extremamente úmido da Amazônia.

"Bom, pelo menos o clima da Amazônia de até dez, 20 anos atrás", brinca Neves, referindo-se às secas cada vez mais comuns na região, provavelmente ligadas à atual crise climática.

Com mais umidade, a floresta teria se expandido, favorecendo justamente o aumento das populações que aprenderam a "domesticá-la" —de novo, um movimento na contramão do que a decana Betty Meggers teria proposto.

As grandes aldeias circulares da Amazônia Central onde o arqueólogo concentrou boa parte de seu trabalho de campo assentavam-se, em grande medida, em montículos artificiais de alguns metros de altura e produziam uma cerâmica intrincada, combinando decorações pintadas, incisões, apliques com figuras de animais.

A profundidade dos sítios arqueológicos sugere que ocupações contínuas no mesmo local por centenas de anos eram possíveis —outro golpe na ideia de que o nomadismo teria caracterizado as sociedades amazônicas desde sempre.

Já a crise do ano 1.000, como às vezes é designada, é acompanhada de alguns indícios extremamente sugestivos, como a construção de paliçadas, valas e até mesmo da tentativa de cortar o acesso por terra a uma grande aldeia construída em uma península. Alguns sítios encolhem, outros são abandonados.

Tanto na Amazônia Central quanto em vários outros pontos da bacia do Amazonas, o período é marcado pelo espalhamento relativamente rápido de um novo "kit" de cultura material, a cerâmica da chamada tradição polícroma (como o nome indica, caracterizados pela pintura multicolorida).

Há indícios de que esse fenômeno corresponde à expansão de grupos da família linguística tupi, cujo domínio chegaria também a boa parte do litoral brasileiro nos séculos imediatamente anteriores à chegada dos portugueses. Seriam sociedades mais descentralizadas que os construtores das aldeias monumentais, mas talvez com a vantagem de uma ideologia bélica mais estruturada. "É a hipótese menos pior que consigo imaginar", brinca Neves.

Esse quadro geral corresponde a um enorme avanço em relação ao que se sabia poucas décadas atrás, mas ele continua sendo, em larga medida, provisório. Muitas regiões amazônicas ainda não foram prospectadas sistematicamente por arqueólogos, e o Brasil está só começando a participar da revolução dos estudos de DNA antigo, que mudou muito do que acreditávamos saber sobre deslocamentos populacionais, guerras e miscigenação no passado remoto.

"Sob os Tempos do Equinócio", de qualquer modo, estabelece uma base sólida para os que revisitarem essa história no futuro.

Sob os Tempos do Equinócio: Oito Mil Anos de História na Amazônia Central

  • Preço R$ 69,90 (224 págs.); R$ 35 (ebook)
  • Autor Eduardo Goés Neves
  • Editora Edusp e Ubu
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