Bolsonaro quer transformar cidadão comum em jagunço, diz Wisnik

Crítico e ensaísta mostra ouvido atento a Racionais e Tom Jobim em novo álbum

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Em novo disco, o compositor e ensaísta José Miguel Wisnik propõe um jogo labiríntico com outras canções, de Tom Jobim a BaianaSystem, que cria frestas para refletir sobre os horrores da realidade brasileira.

O verso "não havia Masp nem seu vão" introduz o novo álbum do compositor José Miguel Wisnik. A palavra "vão" nomeia o disco e surge em quatro canções, em uma suave mas perceptível ressonância estabelecida pela imagem de um lugar fugidio.

"No vão do horror", "no vão da palavra", "avesso vão", "imenso vão". O músico lembra que "em vão" é aquilo que não se cumpre, mas, pegando outro caminho, a palavra define uma fresta, uma passagem ou, ainda, o vazio arquitetônico em que flutua uma estrutura de concreto.

José Miguel Wisnik
O compositor e ensaísta José Miguel Wisnik - Divulgação

Lançado pelo selo Circus, o álbum de Wisnik chegou às plataformas digitais na sexta-feira (12). O conceito ficou visível na montagem do repertório, mas o grande impulso veio da exposição "Infinito Vão: 90 Anos de Arquitetura Brasileira", com curadoria de Fernando Serapião e Guilherme Wisnik, seu filho, concebida para a Casa da Arquitectura em Matosinhos, Portugal, em 2018, e levada ao Sesc 24 de Maio em 2020.

"É a ideia de que a arquitetura brasileira busca o vão e quer flutuar. Isso parece um sonho brasileiro. No nome do disco, é como se essa palavra fosse assim girando em direção a um alvo, que é o infinito vão", conta Zé Miguel Wisnik, 73, em sua casa na Previdência, região do Butantã, onde mora há 50 anos.

As músicas de Wisnik não são inocentes diante da história da canção popular e criam conexões que chegam ao nervo do mundo contemporâneo. Cancionista e ensaísta de primeira linha, ele absorve os ganhos da poesia moderna, da música experimental e da cultura popular das margens. Seus ouvidos se abrem tanto para Tom Jobim como para os Racionais MC’s.

Sete anos mais moço que Gilberto Gil e Caetano Veloso e com 12 a menos que Tom Zé, ele tem afinidade com o procedimento tropicalista de revisão crítica de nossa cultura, mas sem qualquer nostalgia da vanguarda dos anos 1960, pois olha a tropicália da perspectiva que os tropicalistas olhavam a bossa nova, à luz de novos acontecimentos estéticos e históricos.

No disco "O Anel" (Selo Sesc), dividido com a cantora Alaíde Costa em 2020, um verso de "Saudade da Saudade", em parceria com Paulo Neves, apresenta uma ideia-chave: "Canções só feitas de canções".

"Vão" propõe um jogo labiríntico. "O Chamado e a Chama", texto de Neves musicado por Wisnik, conversa com o hit da soul music "Ain’t No Sunshine", do americano Bill Withers, inspirador da bateria e dos caminhos do baixo no arranjo. Em outra camada, há samples com as vozes amalgamadas de Elza Soares e Gilberto Gil.

Em "Estranha Religião", um esconjuro da sociedade de consumo em coautoria com Guilherme Wisnik, ele sampleia a folha de arruda, o pé de coelho e o sal grosso de "Reza Forte" (Russo Passapusso/SekoBass/BNegão), da banda BaianaSystem.

"Terra Estrangeira", composta para a trilha do filme homônimo de Walter Salles e Daniela Thomas, de 1995, é a única regravação. Desta vez, foi entregue ao cantor Celso Sim, em um flerte mais sutil com o fado, entrelaçando a utopia brasileira à miragem do imenso Portugal.

Filha de Zé Miguel, a poeta e atriz Marina Wisnik, que já lançou dois CDs como cantora e compositora —"Na Rua Agora", de 2012, e "Vás", de 2014—, participa de duas faixas. Ná Ozzetti, Mônica Salmaso e a artista indígena Zahy Guajajara são as outras presenças vocais no álbum em que o produtor Alê Siqueira segue como tradutor da cabeça do músico paulista. O piano de Wisnik atravessa a sonoridade total.

Cantado com Salmaso, o samba "Chorou e Riu" recorta elementos de "Meditação", de Tom Jobim e Newton Mendonça, central no imaginário da bossa nova, e "Saudosismo", de Caetano, uma síntese da releitura tropicalista de João Gilberto gravada à época por Gal Costa.

Se antes "as notas dissonantes se integraram ao som dos imbecis", agora Wisnik sente o alarido dos imbecis e dos imbecis dos imbecis. Ao fundo, a cuíca chora e ri.

"Quem acreditou/ Ao ver o encanto se quebrar/ O coração despedaçar/ E despencar/ No vão do horror/ Sem nem lembrar/ O que sonhou/ E não sonhou/ Ao ver o inferno se rasgar/ Pra dar o monstro a se mostrar/ E confirmar que estava em nós/ Nos nossos nós."

"Tem um diálogo de partida com ‘Meditação’, que é uma canção sobre quem acreditou no amor, no sorriso e na flor. E se desiludiu, mas voltou a encontrar o amor. ‘O amor, o sorriso e a flor’ é quase um lema da bossa nova. É uma conversa sobre um Brasil que se sonhou nos anos 1950 e 60, olhado hoje. Aí entra um pouco de ‘Insensatez’", observa Wisnik.

"O tropicalismo já é a questão de que o horror do Brasil está olhado, mas, ao mesmo tempo, atravessado por dentro. Essa canção encara o que estamos vivendo hoje, mas não é absolutamente derrotista. Há uma pergunta sobre essa ‘bruta flor’ que pulsa dentro do Brasil. É uma música sobre a hora e vez dos imbecis e dos imbecis dos imbecis e como se atravessa isso."

Com letra de Carlos Rennó e melodia de Wisnik, "O Jequitibá" leva delicadeza ao tempo de força bruta. "Não havia Masp nem seu vão/ Nem Fiesp nem arranha-céu nem casarão/ Nem Conjunto Nacional/ Com seu relógio à vista [...] Antes da torre global/ Do Itaú Cultural/ Do metrô e da metrópole/ Da Parada Gay/ E do Réveillon/ Era ele, o velho, belo e bom/ Jequitibá do Trianon."

Rennó fez a letra depois de ler uma reportagem da Revista da Folha sobre o jequitibá do parque Trianon, na Avenida Paulista. Segundo Wisnik, as estimativas são conflitantes. A árvore pode ter 150 ou 400 anos. De todo modo, está fincada em um espaço ancestral. A convite de Wisnik e Rennó, o fotógrafo Bob Wolfenson fez uma imersão na Paulista, e suas fotos resultaram em um videoclipe dirigido pelo coletivo Bijari.

"Além de ser um centro empresarial e cultural, a Paulista é um lugar de trânsitos. A população se apresenta de muitas formas. É um lugar de disputa política. Portanto, é um lugar forte da cidade e do Brasil. Dentro dele, tem um segredo. É essa árvore, que está ali no avesso de tudo aquilo, em uma cidade onde nada fica, sem marcas do antigo", afirma Wisnik.

Do vírus à extrema direita, o artista entendeu que o álbum deveria deixar-se invadir pelo momento atual. Anterior à pandemia, "Sereia", com letra de Arnaldo Antunes, ficou ainda mais expressiva em sua descrição de uma doença inominada atravessando o corpo.

Outro comentário da vida corrente aparece em "Estranha Religião". As teias do consumo são urdidas com percussão e beat eletrônico —"Cada minuto produz um produto/ Pra te consumir/ Pra distrair e somar/ Sem se consumar/ E sumir". Na canção babélica, Zahy Guajajara gargalha e improvisa cantos em ze’eng eté, língua do povo tenetehára-guajajara. Um contraponto de estranheza.

"Não tem nada que, ao existir e se mostrar, não vire imediatamente mercadoria. O que a música está dizendo é que essa espécie de transformação de tudo em mercadoria é uma espécie de religião, como se fosse a transubstanciação da hóstia, que encarna o corpo divino. Aqui é o contrário. Qualquer coisa que se apresente é transubstanciado em mercadoria", compara.

"A música popular sabe que ela é de mercado de massas. O que o tropicalismo fez foi assumir isso, não esconder esse fato. Isso há 50 anos. Hoje, você tem um aplastamento, que está ligado ao fato de que não há nada que não se transforme imediatamente em mercadoria. É como se não houvesse espaço, fresta, vão, para furar. A proposição de vanguarda, naquele momento, estava em outro contexto. Tanto que o Augusto de Campos tem expressado essa perda de horizonte e, ao mesmo tempo, afirmado uma negação dentro disso."

O vão da vanguarda resiste na faixa "Eu Disse Sim", que repete a parceria com Rennó a partir de versos pinçados e traduzidos do monólogo de Molly Bloom em "Ulysses", romance de James Joyce da safra vanguardista de 1922. O desejo feminino desabrocha em catadupa. "Eu enlacei os braços nele sim/ E o puxei pra baixo para mim/ Pra que pudesse sentir os meus seios/ Perfumados sim".

O compositor enfatiza que o álbum "O Anel", marco da revalorização crítica de Alaíde Costa, tem um elo espiritual com "Vão". "Foi feito na pandemia. Era outro projeto forte pra mim. Alaíde cantou pela primeira vez uma música minha ["Outra Viagem"] em um festival da canção, em 1968. Aquilo nos ligou. Na ocasião, ela me deu um anel, que ficou como um vínculo." Na trama de sua vida, "O Anel" envolve um desafio similar ao da direção artística de outra grande voz feminina.

"Quando a gente fez ‘Do Cóccix Até o Pescoço’, em 2002, ninguém queria saber de Elza Soares. Ninguém. É isso aí. Nenhuma gravadora, nenhum selo. Quando faziam um disco de Elza Soares era para colocá-la dentro de um modelo convencional. ‘Do Cóccix Até o Pescoço’ vira esse jogo. Declara que aquela não é uma cantora do museu do samba. Que aquela é uma das maiores cantoras contemporâneas no Brasil e no mundo. Aquilo abriu caminhos que levaram para ‘Mulher do Fim do Mundo’ (2015), já em um período de redes sociais, onde isso teve uma expansão."

Professor aposentado de literatura da USP, autor dos livros "O Som e o Sentido", "Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil" e "Maquinação do Mundo: Drummond e a Mineração", Wisnik integra a linhagem de intérpretes do Brasil. Sem ares de espanto, ele identifica os antecedentes dos horrores da extrema direita no poder.

"É um país que nunca deixou de ser escravista. Aboliu a escravidão sem abolir. Então, tem uma espécie de neoescravismo que vem à tona. Esse é o inferno que rasga e se mostra e faz parte de nós. Depois, é um país do mandonismo jaguncista. Nesse momento, tem uma busca de confrontar a lei, as eleições, as urnas eletrônicas. Confrontar a lei com a não lei é o mandonismo jaguncista. Por sua vez, leva a um armamentismo, como se fosse transformar o cidadão comum em um jagunço. É uma demonstração do fato de que fundamentos da vida brasileira não foram superados", analisa.

A ascensão do extremista Jair Bolsonaro não surge como um enigma para Wisnik. "O que nos atinge, fere e desafia é que tanto esforço foi feito para a superação disso, com tantas conquistas de fato. Tem um Brasil moderno que vem de uma cultura moderna, que aponta para uma liberação disso, mas não tem esse salto. Isso é o confronto do futuro com o passado. É preciso enquadrar esse passado e colocá-lo dentro de limites, dos quais ele procura fugir."

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