Descrição de chapéu
Francisco Bosco

Disco de Wisnik dá forma e sentido a um Brasil em chamas

Compositor percorre chagas do país como nunca antes em seu cancioneiro; shows no fim de semana estão esgotados

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Francisco Bosco

Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de "A Vítima Tem Sempre Razão? Lutas Identitárias e o Novo Espaço Público Brasileiro"

[RESUMO] Em seu novo disco, "Vão", José Miguel Wisnik, talvez inspirado por sua pesquisa sobre Drummond, adentro o mundo da máquina, do capitalismo, e busca no vão das canções o remédio para um país envenenado, analisa Francisco Bosco.

"Vão", o título do novo disco de José Miguel Wisnik, é uma espécie de aleph, em cujas três letras apenas se esconde e se revela o segredo do seu microcosmo de canções. Os sentidos da palavra, ao longo da obra, articulam a dimensão do empenho inútil, "em vão"; do espaço aberto, livre e indeterminado, como na arquitetura; e do verbo ir.

Essa máquina do mundo wisnikiana percorre estradas nunca dantes palmilhadas por seu cancioneiro, ao menos com essa intensidade. As canções de Wisnik costumam enfatizar a máquina da própria canção, sua chama, seu tempo sem tempo, indivisível, produzindo pérolas aos poucos.

José Miguel Wisnik
José Miguel Wisnik no vão livre do Masp, na avenida Paulista, em São Paulo - Divulgação

Agora, entretanto, a canção adentra o mundo da máquina, do capitalismo, essa "estranha religião" de "mercados alucinados no ar", como diz a canção com letra de Guilherme Wisnik, que é um dos pilares da construção.

Ao que tudo indica, a viagem a Itabira que Wisnik realizou durante pesquisa de seu livro sobre Drummond, "Maquinação do Mundo" (2018), deixou uma dolorosa fotografia nas suas paredes afetivas, cognitivas e políticas. Pois o pico do Cauê, a montanha pulverizada, assassinada pela mineração, retorna agora como a resistência viva e altiva do Jequitibá ancestral que ainda habita o Trianon e já o habitava, muito antes do "Conjunto Nacional, do Itaú Cultural/ Do metrô e da metrópole/ Da parada gay/ E do Réveillon", como lembra a letra de "O Jequitibá", parceria de Wisnik com Carlos Rennó, que abre o disco.

O tom ambientalista se desdobra, na sequência, com a dura meditação de "Chorou e Riu", contrabossa que registra o fim do sonho do amor, do sorriso e da flor, sonho que "jamais chegou", mas que agora se despedaçou na ausência do "chão comum/ O que se diz/ Que é um país".

A canção perscruta o abismo civilizatório onde hoje se mostra o monstro "que estava em nós/ Nos nossos nós". O monstro que ora sufoca a "flor que pulsa dentro do Brasil". A canção o encara sabendo que o sonho nunca chegou, mas nunca deixou de viver como sonho, a ser buscado novamente, com "tantas mãos/ o nosso amor".

Fincados os pilares, o vão da canção ganha espaço para se abrir livremente, afirmando os remédios para o veneno Brasil. "Roma", parceria com Marina Wisnik, nos leva a "um lugar circular", palindrômico, metaespaço de todos que vivemos dessa dádiva da canção.

Em seguida, "Eu Disse Sim" tem letra baseada no conhecido monólogo final de um dos píncaros da literatura modernista, o tour de force joyceano "Ulysses". Aqui, Wisnik e Rennó dizem sim ao mundo da beleza, do espelho d'água dos signos, do júbilo glorioso da vida erótica. Sim a esse mundo que não se amarra nas máquinas assassinas, na truculência dos imbecis e dos imbecis dos imbecis.

Vale voltar a "Estranha Religião", a canção seguinte, para registrar a mobilização de duas temporalidades antinômicas: o presente alucinado, a que dão forma e sentido os instrumentos eletrificados, e a ancestralidade de quem pisa leve na terra, como costuma dizer Ailton Krenak sobre os povos indígenas, aqui vocalizados por Zahy Guajajara, que improvisa em Ze'eng eté uma fala que, mesmo sem que entendamos a língua, entendemos perfeitamente tratar-se de um comentário sarcástico sobre nossa estranha religião que esmaga a terra.

Um disco de Wisnik não será jamais completo sem a tristeza do Zé, aquelas melodias emocionadas e emocionantes, entoadas na sua voz de pouco ar e muita alma. "Iara", um lindo bolero com direito a bongô, maracas e trecho em espanhol, cantado por Zé Miguel e Marina Wisnik, presenteia os simpatizantes da meia-luz.

"O Chamado e a Chama", parceria com Paulo Neves, de título à la Octavio Paz, é uma peça precisa sobre esses diferentes modos da otridad, a poesia e a música. Enquanto o poeta se mantém "na flutuação/ Entre o som e o sentido", no "vão da palavra", o músico "está sempre na música", "está ou não está/ é tudo ou nada". Os samples de Elza Soares e Gilberto Gil, em pleno devir-música, imersos, fora de si, ratificam o que a canção a um tempo diz e realiza, interpreta e intervém.

A reta final do conjunto traz ainda "Sereia", poesia de mar alto, parceria com Arnaldo Antunes, que remete a outras canções de Wisnik sobre a finitude, a existência, o envelhecer (tema também caro a Arnaldo, e que aqui evoca, a mim pelo menos, a frase límpida de Deleuze: "a velhice é finalmente o ser").

Outro parceiro, em amplos sentidos, de longa data, Luiz Tatit dá o ar de sua graça em "Deixe Eu Ir". Mais uma letra redonda, espirituosa mesmo no clássico tema da separação, do grande autor de "O Cancionista".

Quase ao fim, outra parceria com Marina Wisnik, mais um mergulho no metaespaço da canção, "lá onde a matéria é dona do seu próprio avesso imenso vão" (ói ele aí de novo).

Tendo principiado pelo ser que estava antes do lugar, o Jequitibá; chorado e gargalhado de quem, de si, acreditou no lugar que se foi sem nunca ter chegado; afirmado o lugar circular da canção, seu metaespaço, sua chama; tendo ainda estranhado a religião do capital, o pão nosso de cada dia —o conjunto se despede com a procura por um outro lugar.

O fado encalhado de "Terra Estrangeira", com belo arranjo para violões por João Camarero, retoma o tema clássico do romantismo, mas em nota antinostálgica, apontando para um lugar indeterminado, que "faltou descobrir".

Noutros tempos, Wisnik costumava referir a si mesmo como um mestre cantor, jogando com a sua posição de professor uspiano autor de canções. Desde sempre, ele procurou integrar o som e o sentido, a canção e os livros, num desejo de convergir tudo para uma gaia ciência.

Tornou-se não apenas o incontornável intérprete da canção popular, como, pelo menos a partir de "Pérolas aos Poucos", a linha de fronteira (que talvez ainda houvesse) entre o professor e o cancionista se rompeu.

De mestre compositor passou a compositor magistral. Habita o chamado e a chama com a mesma categoria. Nesse "Vão", foi chamado pela chama de um Brasil em chamas e sentou-se ao piano para dar forma e sentido a esse lugar e os desvãos que ele contém e o ultrapassam.

Lançamento do disco ''Vão''

  • Quando sábado (20/8), às 20h; domingo (21/8), às 18h
  • Onde Sesc 24 de Maio (rua 24 de Maio, 109, São Paulo)
  • Preço Esgotado
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