Amigo de Miles Davis, cineasta vendeu pó nos EUA para bancar filmes experimentais

Fugindo do FBI, Jorge O Mourão voltou ao Rio e reuniu a contracultura em famoso espaço na Lapa

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] No início dos anos 1970, Jorge O Mourão entrou na rede do tráfico de cocaína nos EUA para financiar seus filmes experimentais, enquanto circulava entre artistas de vanguarda e fazia amizade com Miles Davis e João Gilberto. Procurado pelo FBI após a descoberta do esquema, ele voltou ao Rio e criou na Lapa um célebre loft que reunia a nata da contracultura e o baixo mundo. Aos 76, homenageado na Europa, ele acumula em seu apartamento caixas de lembranças de uma vida que mais parece história de cinema.

O cineasta Jorge O Mourão se refere aos "arquivos impossíveis" como uma extensão de sua memória. O desejo de reter suas vivências o levou a acumular retratos, livros, rolos de filmes, jornais, passaportes, diários de viagem, malas velhas e cartas de amor.

As caixas tomam a sala, o corredor e os quartos de seu apartamento de 64 m² na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Ao iniciar uma conversa, liga o gravador do celular para guardar as palavras faladas. Ele tem 76 anos, 1,77 m, voz bem-disposta e um bigode desordenado no rosto branco.

Mourão vive como se fosse um segredo. Pouco divulgados, seus curtas em super-8 trazem um experimentalismo radical na representação do submundo e na interação do corpo com a câmera. A influência do cinema underground americano fica exposta em "A Pátria", "Costumes da Casa", "1.872.000 Minutos, Noves Fora?", "Shave & Send" (1977) e "Washington Square Sunday" (1978). Esses são filmes digitalizados de seu acervo de mais de 60 obras. Os outros seguem arquivados nos cantos de casa.

O cineasta Jorge O Mourão em sua casa no centro do Rio - Tércio Teixeira/Folhapress

"A edição era feita na câmera. O rolo de super-8 tinha três minutos. O tempo de meus filmes sempre é um múltiplo de três. Era o negócio da penúria. Eles não são editados. Os de Nova York não têm edição, têm adição", conta Mourão. "As influências são óbvias. Nos anos 1970, fui influenciado por Andy Warhol, Stan Brakhage e Jonas Mekas."

Em 2017, o roteirista João Paulo Reys teve um gesto de anjo ao pôr Mourão em contato com o curador Stefan Solomon, da australiana Universidade Macquarie, em um encontro no Rio. Solomon incluiu quatro curtas do carioca na mostra "Tropicália and Beyond: Dialogues in Film History", na Tate Modern, e o convidou para uma palestra em Londres. No bate-papo, um espectador londrino pediu a Mourão um conselho aos jovens artistas. "Para começar, deixe de trabalhar e vá fazer coisas mais interessantes, como vender fumo", ironizou o convidado.

O conselho tinha origem real. De 1972 a junho de 1973, para financiar sua vida de cineasta, Mourão costurou uma conexão brasileira de tráfico de cocaína, atendendo a uma clientela de artistas em Nova York.

"A ideia era montar uma rede pequena, rentável e segura de maneira que eu pudesse ter cada vez menos contato com o flagrante e mais com a minha arte", ele escreveu no breve livro de memórias "Brazilian Connection", lançado sem alarde pela editora Massao Ohno em 1990, com apresentação de Fernando Gabeira, prefácio de Fausto Wolff e orelha de Walmir Ayala.

Mourão fala hoje dessa experiência com liberdade ainda maior. Em 1972, em busca de um fornecedor de pó, o carioca viajou de Nova York para o Rio e, em seguida, La Paz. Da Bolívia, partiu para Miami, com escala em Lima. Na fila da imigração americana, topou com o cartaz: "Desculpe a demora. Um país sem drogas vale seu tempo".

Ele sentiu palpitações, mas conseguiu pegar outro avião para NY. A rota estava testada. Por segurança, guiava-se pela "paranoia preventiva". Em uma situação de perigo, devia estar preparado para o pior cenário.

Os maus pensamentos não predominavam. "Fui à Bolívia, fiz o trajeto todo, criei o ambiente. Aí os caras vinham do Brasil e me davam. Eu distribuía. Ganhava na chegada e testava. Eu mandava uma amostra para um laboratório na Califórnia, para me dizerem a porcentagem", disse Mourão em nossa primeira conversa, na Cinelândia.

O grau de pureza oscilava de 80% a 90%. Generoso à sua maneira, ele enviava alguns gramas a mais para o divertimento dos especialistas. "Eu estava muito bem, frequentava todos os lugares, fazia filmes e cerâmicas. Em Nova York, você não precisa dormir. Tem coisas pra fazer full time".

"Você vai ser o maior transeiro de Nova York", disse-lhe o amigo brasileiro Chico Rudge, apelidado de Gordo, motorista de táxi incorporado à conexão. "Corta essa, cara", reagiu Mourão. "Quero apenas ter dinheiro pra fazer meus filmes."

Mourão se preocupava com a megalomania de Gordo, mas só perdia o sono para viver as noites nova-iorquinas. Aos 27 anos, ele frequentava as leituras públicas do poeta beat Allen Ginsberg, filmava protestos pacifistas e jogava pingue-pongue com o cantor João Gilberto na casa do saxofonista Stan Getz. João era o padrinho informal de Koki, filho de Mourão e sua mulher, Teresa, e apareceu certa noite para ninar o afilhado. O acalanto foi gravado e deve ser a trilha de um curta.

A militância de Mourão contra a ditadura brasileira alcançava as estrelas da contracultura. Em janeiro de 1973, depois de saber pelo jornal The New York Times da censura militar a um livro com desenhos eróticos de Pablo Picasso, Mourão organizou um manifesto de repúdio assinado por artistas e escritores.

Ginsberg não só o assinou como revisou o texto em inglês. Na lista de signatários, constavam também os diretores Julian Beck e Judith Malina, do Living Theatre, o poeta chileno Nicanor Parra, o trompetista Miles Davis, Stan Getz, o pintor Andy Warhol, o artista plástico Hélio Oiticica e os ativistas Abbie Hoffman e Jerry Rubin.

Mais ousado, Mourão apareceu no prédio de um casal que passeava de bicicleta pelas ruas da cidade. John Lennon e Yoko Ono assinaram o manifesto, que só mereceu no Brasil uma nota na coluna de Zózimo Barrozo do Amaral.

Um dia, ao tentar produzir um show de Miles Davis, o cineasta conquistou a amizade de seu maior ídolo no jazz. "Não consegui levá-lo para o Rio. O empresário dele era insuportável. Nessa época, um amigo meu, Carlos Falchi, fazia artesanato em couro. Entrei nessa sociedade. Miles usava nossas roupas de couro. Dei pra ele o disco ‘Expresso 2222’, de Gilberto Gil, e ele se amarrou, queria botar o Gil na banda dele. Tive que explicar que ele já era band-leader", lembra.

Houve desconcerto quando Miles, meses mais tarde, o estimulou a transar com sua própria namorada. "Não sei se isso aconteceu com outros amigos. Todo o mundo estava calibrado. Ele falava: ‘Vá nessa, Jorge. Ela é linda’. Respondi: ‘Mal tenho tempo para a minha. Se eu trepar com as suas, não vou nem respirar’."

Uma noite, Miles desceu de seu Lamborghini e tocou o interfone do apartamento do cineasta, no Village, cortando o som do violão de outro ilustre visitante, João Gilberto. "Miles chegou de surpresa", anunciou Mourão. "Prefiro não ver. Vou embora", avisou João, subitamente pálido. "Se você for embora, vai cruzar com ele lá embaixo", advertiu o amigo. Mourão e Teresa se apressaram em esconder João na cozinha. Por pouco mais de meia hora, Miles conversou com os anfitriões sem saber da presença oculta do mestre da bossa nova.

Na Little Italy, Mourão frequentava o restaurante Umbertos Clam House, referência em frutos do mar e máfia italiana. Apesar da discrição, era observado. Uma noite, ao vê-lo em direção à rua, um siciliano assobiou. "Se quiser ampliar seus negócios, fale comigo, ok?", avisou. "Não, não quero", agradeceu Mourão, gaguejando. Nessa época, ele me diz, "só não vendia quem não tinha".

No Umbertos, em outra noite, ele assistiu ao amadorismo de um brasileiro recrutado como mula (pessoa que transporta porções de drogas dentro ou junto ao corpo) por Gordo. Charuto à boca, o aprendiz de traficante encheu uma mesa com seus convidados e pagou sozinho a conta elevada. O figurino dava bandeira. Ele imitava o Don Corleone de Marlon Brando. De um canto, Mourão pressentiu o fim do jogo.

Dali a poucas semanas, em junho de 1973, no aeroporto Kennedy, uma mula entraria em pânico ao ser abordada pela alfândega. A meia distância, a esposa de Gordo observou a tremedeira da amiga conduzida a uma sala reservada. Havia dois quilos de cocaína nas duas malas despachadas no voo da Pan American.

O carregamento, que passara por La Paz e Buenos Aires, valia US$ 200 mil na época —em valores atuais, cerca de US$ 1,3 milhão (quase R$ 6,7 milhões). No fornecedor boliviano, o quilo custara US$ 2.500. Os investigadores elevariam o valor de varejo dos dois quilos para US$ 1 milhão. Mourão explica a diferença de cálculos. Para render e lucrar, os distribuidores misturavam a cocaína purinha com outros ingredientes, do sal de frutas a manitol.

Na hora do flagrante no aeroporto, Mourão dormia com a mulher e o filho no hotel Albert, no Village. Gordo se hospedava no outro extremo do corredor. "Se manda e não vá mais em meu quarto", aconselhou Mourão. Na manhã seguinte, uma batida policial prendeu o amigo. Mourão escapara porque estava registrado como George Simon na ficha do hotel.

Antes de fugir para Portugal, ele encontrou pouso na casa do empresário de show business Stanton Freeman, na Perry Street, West Village. Freeman era um figurão da noite e dirigira até 1971 a discoteca nova-iorquina Electric Circus. Em 6 de outubro de 1973, o New York Times noticiaria a condenação do empresário por envolvimento com o esquema dos cinco brasileiros. Ele comprava e revendia cocaína a músicos.

Segundo o jornal, o empresário pagou a fiança de US$ 200 mil para responder ao processo em liberdade. Avisado sobre a batida em seu escritório, ele ainda teve tempo de ligar para Mourão. "Se manda, George!"

Os investigadores superestimaram a rede brasileira, que era quase uma licença poética em termos de tráfico internacional. No Albert, o FBI lacrou os quartos de todos os hóspedes com sobrenomes portugueses. Um garçom amigo do grupo, que nada tinha a ver com a conexão, pediu ao crítico de cinema João Carlos Rodrigues para subir a escada de emergência e resgatar seus papéis.

"Alguém tinha de pegar o passaporte. Essa pessoa fui eu, acompanhado da dupla Claudinha Overdose e Moura Morena (nomes de guerra). Entramos no hotel sem sermos incomodados, quebramos o lacre, entramos no quarto e pegamos a bagagem e os documentos desejados", conta Rodrigues.

Os agentes do FBI passaram a importunar artistas do círculo do cineasta, como Hélio Oiticica e o compositor Jorge Mautner, residente no Chelsea Hotel. Em Portugal, seu novo refúgio, Mourão receberia uma carta da esposa de Gordo, escondida no Brasil. Ela o alertou sobre a delação do marido. A polícia farejava "George Morao". Com calma, George Simon decidiu regressar ao Rio e voltar à pele de Jorge O Mourão.

"Eu questiono as drogas legais. E os pesticidas? É evidente que a guerra às drogas foi promovida por interesse político do governo americano, por causa dos traficantes mexicanos e para reprimir a imigração. A questão é social", afirma. "Existem a indústria das drogas e a indústria contra as drogas, que move trilhões. Nunca a repressão vai acabar com o consumo. Isso complicou até a pesquisa científica. A cânabis, em forma de óleos essenciais, agora é usada para tratamento de depressão. Nunca tomei essas porras de Rivotril. Sempre tomei droga para ficar up, nunca down".

No Brasil, o foragido recepcionou o chapa Miles Davis na chegada ao aeroporto para uma turnê. "Acompanhado do baterista Al Foster e de um casal de amigos —o cineasta Jorge Mourão e sua mulher, Teresa—, seu diálogo limitava-se a expressões carinhosas na mais pura gíria nova-iorquina", testemunhou Mary Ventura, repórter do Jornal do Brasil, em 23 de maio de 1974.

A caminho de São Paulo, o trompetista ficaria triste em se despedir do Rio. "Tenho de vir de novo para esta cidade. Com calma, sem a banda, nem concertos. Quero nadar, preciso tomar um sol. Nadar", insistiu Miles, olhando para Mourão, enquanto bebia uma caipirinha.

Nessa altura, o cineasta reinventava a sua vida. Em 1975, na Lapa, criou um loft badalado por travestis, prostitutas, artistas e militantes políticos. Seus salões serviram de cenário para os longas "A Lira do Delírio" (1978), de Walter Lima Jr., e "Rio Babilônia" (1982), de Neville d’Almeida.

Para realizar o documentário "L.O.F.T.Doc", Mourão vem colhendo depoimentos de amigos como Neville, o escritor Paulo Coelho e a atriz Vera Valdez. No sobrado da rua Mem de Sá, 41, hoje arruinado, ele projetava filmes de 35mm e 16mm, ambientando as sessões com garrafas arremessadas na tela e alto-falantes sintonizados na Rádio MEC.

"A maior importância do loft do Mourão na Lapa foi ser um point de encontro entre a contracultura e o baixo mundo, entre o Cabaré Casanova e os admiradores de Andy Warhol e Jean Genet. Era o final da Lapa histórica", diz João Carlos Rodrigues, seu amigo desde a juventude em Ipanema. "Os super-8 têm coisas preciosas, como Marisa Chaves, a decana transformista, comentando horrorizada sobre a xoxota operada de uma terceira ["Atualmente Agora", de 1981]. Uma loucura."

Em um vídeo gravado ao lado da esposa, Christina Oiticica, Paulo Coelho recordou o convívio no loft da Lapa, fechado em 1985. "Mourão tinha uma mania de carimbos. Tudo dele era carimbado no seu jeito totalmente louco. Existem suas histórias nos Estados Unidos, essas coisas que não vêm ao caso, mas ele foi um cara muito digno. Ele conseguiu equilibrar loucura e dignidade, o que não é muito fácil", elogiou Coelho.

Em 1990, encantado com os curtas, o artista plástico Tunga escreveu o poema em prosa "Mourão Dá as Cartas", guardado nos arquivos impossíveis. "Primeiro magnetizador de diminutos grãos que espalha no dorso da loucura, calma e intensa. Deixa então escapar por entre as unhas circular o testemunho, circular espécime exógeno do saber cervical. Depois, na grande migração das formigas (as de longa data albinas), recobra inteiro delas o corpo e ensina a língua contida nos grãos. É a circulação desses grãos, agora magnetos dotados de aventura, que percorre abertas as cartas."

Depois de passar o ponto na Lapa, o cineasta decidiu migrar para Trancoso, no sul da Bahia, onde dirigiu um jornal. Agora, reside no Rio e toma batidas de gengibre no bar Escadinha, ao lado de seu prédio.

"Eu acho que o Mourão ainda será descoberto de duas maneiras: como artista e como personagem", afirma João Paulo Reys, que esboçou um roteiro em inglês sobre sua história. "Esse é um filme que eu imagino dirigido pelo Olivier Assayas, no mesmo estilo em que ele filmou ‘Carlos, o Chacal’, personagem com um certo parentesco com o Mourão de ‘Brazilian Connection’."

Na criação artística, acrescenta Reys, o cineasta estabelece polaridades: "Organização e caos, espontaneidade e arbitrariedade, afabilidade e violência, sagrado e profano, contemporâneo e anacrônico, autoria e colaboração, público e privado".

Neste mês, no Festival de Cinema de Trancoso, Mourão lançou o curta "Smetak - Silêncio Não É Ausência de Som", articulando áudios e imagens captados em uma performance do músico suíço de vanguarda Walter Smetak, em São Paulo, em 1982.

Cercado de notas de viagens, ele prepara o livro "Paris/Kathmandu", memórias dos seis meses de andanças na sequência do maio francês de 1968. Ele deixou Paris e rumou para o Oriente, passando por Alemanha, Grécia, Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia e Nepal.

O desfecho policial da fase nova-iorquina não impediu seu regresso. "Imagina se eu não voltaria a Nova York", sorri Mourão. No final de 1977, com o processo arquivado, ele planejou o retorno.

"O Gordo estava solto. Eu não ia ficar naquela nostalgia. Uma semana antes de partir, peguei chato [piolho pubiano], não sei se em um colchão na parte de baixo do loft. Todo o mundo dormia e trepava ali. Esse lençol foi exposto no filme ‘1.872.000’ com mancha de esperma. Pensei: ‘Agora vou contrabandear esses chatos’."

Em Manhattan, ele filmou a raspagem dos pentelhos e enviou alguns fios em cartões de Feliz Ano Novo. Assim nasceu o belo curta "Shave & Send", depilar e enviar, em que o corpo nu de Mourão aparece com espuma.

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