[RESUMO] Livro de Herman Melville publicado em 1851 virou assunto nas redes sociais depois que o youtuber Felipe Neto se manifestou sobre passagens do romance que lhe pareceram racistas. Pesquisadora argumenta que buscar apenas a confirmação ou não dessa impressão pode levar o leitor a perder de vista o principal aspecto do livro: o perigo de se deixar levar pela obsessão, que de resto deturpa nossa compreensão da realidade da mesma forma que o preconceito.
Quem nunca se sentiu obcecado por algo em algum momento da vida que atire a primeira pedra. Um amor não correspondido, um objeto de consumo, um artista, um time de futebol, uma figura política: há sempre um quê por trás das coisas e das pessoas que nos fascina e que não pode ser justificado sob um ponto de vista plenamente racional.
O famoso Capitão Ahab, personagem central do romance "Moby Dick", publicado por Herman Melville em 1851, é uma figura que ilustra nossa condição humana. O desejo de se vingar da baleia que lhe arrancou a perna é um ensaio do que acontece em nossa mente quando nosso pensamento se fixa em uma ideia: a certeza absoluta nos assalta, de modo que nos tornamos movidos antes pelo afeto do que por um olhar imparcial diante da realidade.
Ahab convence toda a tripulação do seu navio a caçar um cachalote monstruoso, e então todos se veem fadados ao mesmo destino. Diante de Moby Dick, pretos e brancos, sem distinção, precisam lidar com seus afetos -igualmente perturbadores e por vezes obsessivos.
Acontece que -e peço perdão pelo spoiler para os que não leram o romance- Ahab é tão obcecado pela baleia branca que não enxerga, ou não se importa com esse fato, que está cavando a sua própria cova. Ahab afunda nas profundezas do Pacífico e leva com ele toda a tripulação do navio. Herman Melville não nos deixa um "happy end" para confortar nossas almas tão inquietas em um mundo que insiste em girar à revelia do nosso controle.
Por outro lado, diferentemente do que acontece em peças de ficção apocalípticas, a história da baleia branca não se propõe a ser um ultimátum para o nosso terrível fado. Sim, vamos todos morrer um dia, mas essa constatação não precisa tomar ares catastróficos.
Ishmael, o narrador meio onisciente, meio parcial do romance, é o único que sobrevive à tragédia do naufrágio do navio Pequod e, com isso, nos entrega essa história tão fascinante.
Não, não somos imortais, mas aqui, agora, enquanto eu escrevo e você lê, estamos vivos, a despeito do fato de que, segundo as estatísticas, a cada segundo duas pessoas morrem no mundo.
A imagem de Ishmael, no final da história, boiando em um caixão no meio do Pacífico enquanto o navio afunda, lembra-nos justamente isso: a cada dia que vivemos, estamos também sobrevivendo.
Se "Moby Dick" possui um tema central, eu diria que é este: precisamos encontrar formas para lidar com as nossas obsessões, entendendo que o mundo não é nem um mar de rosas, nem um grande tsunami contra o qual nada podemos fazer, a não ser sentar e chorar.
O romance é um convite para sentarmos ao lado de Ishmael e vermos como ele tece os fios da história da sua vida, que ferramentas utiliza para isso, como consegue viver e sobreviver em um navio que caminha, inexoravelmente, em direção à destruição e à morte.
Nesse sentido, o Pequod se mostra como um espaço propício para que possamos enxergar a nossa própria condição humana, sem distinção de cor. Pretos, brancos, índios, selvagens: somos todos Isolatoes, "federated along one keel".
O romance, entretanto, não assume exatamente uma agenda política, como era comum na época e ainda é na ficção de hoje. A inquietação de um influenciador no século 21 -Felipe Neto se viu perturbado por passagens que lhe parecem racistas- nos lembra que críticos e biógrafos não chegaram a um consenso sobre qual teria sido a posição do escritor em relação à escravidão e ao racismo, tópicos que circulavam diariamente em jornais e periódicos literários de sua época.
O que me parece claro, entretanto, é que tentar afirmar se há ou não racismo em "Moby Dick" desvia o nosso olhar do fato de que o romance nos coloca em um processo de constante autocrítica, e isso precede qualquer mudança efetiva em um âmbito macropolítico: as verdadeiras transformações sociais são consequências de mudanças culturais, iniciadas na mentalidade de cada indivíduo.
Entretanto, antes de sermos membros de uma coletividade, somos indivíduos cujos desejos e obsessões nem sempre acompanham as regras impostas pelas instituições sociais de controle. Se ainda existe racismo nos EUA é porque ainda existem inúmeros indivíduos que resistem à autocrítica e preferem apegar-se a sua baleia branca.
Em sua base, o preconceito atua em nossa mente como qualquer ideia fixa, uma ideia que se apoia mais no afeto do que na racionalidade. A experiência de Ahab mostra o perigo de nos deixarmos levar por nossas obsessões, sem nos darmos conta de que a realidade é muito maior do que sonha a nossa vã filosofia individual.
Devemos aceitar que os consensos que se formam no domínio público não são e nunca serão reflexos de uma mentalidade individual; são antes consequência do encontro entre diversas perspectivas individuais, e isso é tanto mais válido quando vivemos sob um regime democrático.
Quando um indivíduo é responsável por tudo o que se passa em uma sociedade, podemos, por sorte, viver no paraíso de Mahatma Gandhi ou, por azar, no inferno de Adolf Hitler.
Como entusiasta do potencial da democracia a despeito de seus riscos, Herman Melville parece nos dizer, com sua obra-prima, que precisamos ser um pouco Ishmael para conter a força avassaladora do Ahab que habita dentro de todos nós.
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