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Ana Carla Marinato

Apontar racismo em 'Moby Dick' é ignorar caráter crítico do livro

Tema veio à tona após Felipe Neto se dizer incomodado com passagens que lhe parecem racistas no clássico romance

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Ana Carla Marinato

Doutora em letras pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)

[RESUMO] Livro de Herman Melville publicado em 1851 virou assunto nas redes sociais depois que o youtuber Felipe Neto se manifestou sobre passagens do romance que lhe pareceram racistas. Pesquisadora argumenta que buscar apenas a confirmação ou não dessa impressão pode levar o leitor a perder de vista o principal aspecto do livro: o perigo de se deixar levar pela obsessão, que de resto deturpa nossa compreensão da realidade da mesma forma que o preconceito.

Quem nunca se sentiu obcecado por algo em algum momento da vida que atire a primeira pedra. Um amor não correspondido, um objeto de consumo, um artista, um time de futebol, uma figura política: há sempre um quê por trás das coisas e das pessoas que nos fascina e que não pode ser justificado sob um ponto de vista plenamente racional.

O famoso Capitão Ahab, personagem central do romance "Moby Dick", publicado por Herman Melville em 1851, é uma figura que ilustra nossa condição humana. O desejo de se vingar da baleia que lhe arrancou a perna é um ensaio do que acontece em nossa mente quando nosso pensamento se fixa em uma ideia: a certeza absoluta nos assalta, de modo que nos tornamos movidos antes pelo afeto do que por um olhar imparcial diante da realidade.

ilustração de baleia branca no mar
Ilustração da nova edição de 'Moby Dick', que sai pela Zahar - Divulgação

Ahab convence toda a tripulação do seu navio a caçar um cachalote monstruoso, e então todos se veem fadados ao mesmo destino. Diante de Moby Dick, pretos e brancos, sem distinção, precisam lidar com seus afetos -igualmente perturbadores e por vezes obsessivos.

Acontece que -e peço perdão pelo spoiler para os que não leram o romance- Ahab é tão obcecado pela baleia branca que não enxerga, ou não se importa com esse fato, que está cavando a sua própria cova. Ahab afunda nas profundezas do Pacífico e leva com ele toda a tripulação do navio. Herman Melville não nos deixa um "happy end" para confortar nossas almas tão inquietas em um mundo que insiste em girar à revelia do nosso controle.

Por outro lado, diferentemente do que acontece em peças de ficção apocalípticas, a história da baleia branca não se propõe a ser um ultimátum para o nosso terrível fado. Sim, vamos todos morrer um dia, mas essa constatação não precisa tomar ares catastróficos.

Ishmael, o narrador meio onisciente, meio parcial do romance, é o único que sobrevive à tragédia do naufrágio do navio Pequod e, com isso, nos entrega essa história tão fascinante.

Não, não somos imortais, mas aqui, agora, enquanto eu escrevo e você lê, estamos vivos, a despeito do fato de que, segundo as estatísticas, a cada segundo duas pessoas morrem no mundo.

A imagem de Ishmael, no final da história, boiando em um caixão no meio do Pacífico enquanto o navio afunda, lembra-nos justamente isso: a cada dia que vivemos, estamos também sobrevivendo.

Se "Moby Dick" possui um tema central, eu diria que é este: precisamos encontrar formas para lidar com as nossas obsessões, entendendo que o mundo não é nem um mar de rosas, nem um grande tsunami contra o qual nada podemos fazer, a não ser sentar e chorar.

O romance é um convite para sentarmos ao lado de Ishmael e vermos como ele tece os fios da história da sua vida, que ferramentas utiliza para isso, como consegue viver e sobreviver em um navio que caminha, inexoravelmente, em direção à destruição e à morte.

Nesse sentido, o Pequod se mostra como um espaço propício para que possamos enxergar a nossa própria condição humana, sem distinção de cor. Pretos, brancos, índios, selvagens: somos todos Isolatoes, "federated along one keel".

O romance, entretanto, não assume exatamente uma agenda política, como era comum na época e ainda é na ficção de hoje. A inquietação de um influenciador no século 21 -Felipe Neto se viu perturbado por passagens que lhe parecem racistas- nos lembra que críticos e biógrafos não chegaram a um consenso sobre qual teria sido a posição do escritor em relação à escravidão e ao racismo, tópicos que circulavam diariamente em jornais e periódicos literários de sua época.

O que me parece claro, entretanto, é que tentar afirmar se há ou não racismo em "Moby Dick" desvia o nosso olhar do fato de que o romance nos coloca em um processo de constante autocrítica, e isso precede qualquer mudança efetiva em um âmbito macropolítico: as verdadeiras transformações sociais são consequências de mudanças culturais, iniciadas na mentalidade de cada indivíduo.

Entretanto, antes de sermos membros de uma coletividade, somos indivíduos cujos desejos e obsessões nem sempre acompanham as regras impostas pelas instituições sociais de controle. Se ainda existe racismo nos EUA é porque ainda existem inúmeros indivíduos que resistem à autocrítica e preferem apegar-se a sua baleia branca.

Em sua base, o preconceito atua em nossa mente como qualquer ideia fixa, uma ideia que se apoia mais no afeto do que na racionalidade. A experiência de Ahab mostra o perigo de nos deixarmos levar por nossas obsessões, sem nos darmos conta de que a realidade é muito maior do que sonha a nossa vã filosofia individual.

Devemos aceitar que os consensos que se formam no domínio público não são e nunca serão reflexos de uma mentalidade individual; são antes consequência do encontro entre diversas perspectivas individuais, e isso é tanto mais válido quando vivemos sob um regime democrático.

Quando um indivíduo é responsável por tudo o que se passa em uma sociedade, podemos, por sorte, viver no paraíso de Mahatma Gandhi ou, por azar, no inferno de Adolf Hitler.

Como entusiasta do potencial da democracia a despeito de seus riscos, Herman Melville parece nos dizer, com sua obra-prima, que precisamos ser um pouco Ishmael para conter a força avassaladora do Ahab que habita dentro de todos nós.

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