Como prevenir e reduzir a polarização?

Estudos apontam caminhos para contornar a radicalização política, como construir patriotismo inclusivo

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Policiais dispersam manifestantes golpistas na rodovia Hélio Smidt, que dá acesso ao aeroporto de Guarulhos Zanone Fraissat - 1º.nov.22/Folhapress

Isabel Clemente

Jornalista, escritora e mestre em escrita criativa. Trabalhou na Folha de 1997 a 2001

[RESUMO] Fenômeno que acompanha as sociedades há séculos, a polarização já deflagrou incontáveis perseguições e guerras, fomentando regimes totalitários mundo afora. A boa notícia é que pode ser eliminada ou ao menos controlada, relata jornalista, que elenca experiências internacionais exitosas em entender divergências, buscar interesses comuns e estimular o diálogo de pessoas com ideias muito diferentes.

Saumitra Jha é um economista de origem indiana que cresceu em uma das regiões mais ricas e polarizadas de seu país, marcada pela violência entre muçulmanos e hindus. "Eu me perguntava por que o desenvolvimento não resolvia aquilo." Não por coincidência, Jha se especializou em risco político e inovações para a paz.

Professor de política econômica na Escola de Negócios de Stanford, onde coordena o Laboratório de Polarização e Conflito, ele pesquisa como sociedades do passado superaram suas divisões e como adaptar essas lições aos dias de hoje. Uma de suas inspirações são os próprios hindus e muçulmanos que, por mil anos, somaram saberes e trabalharam juntos naquele que foi o maior mercado de tecidos do mundo, Meca, no Oriente Médio.

Uma estratégia de cooperação foi testada em Israel na época das eleições de 2015. Um grupo de israelenses e palestinos, que se desentendem há décadas sobre a criação do Estado da Palestina, recebeu até US$ 100 para investir em ações no mercado israelense e no mercado palestino.

Soldados israelenses ameaçam reprimir manifestantes palestinos em protesto contra a expropriação de terras da Cisjordânia por Israel - Jaafar Ashtiyeh - 11.nov.22/AFP

A aula de economia financeira, que durou 47 semanas, mudou mentalidades. O grupo se tornou mais favorável ao processo de paz, votando em políticos identificados com a causa. "Adultos não gostam de pessoas lhes dizendo o que fazer", resume Jha.

A polarização não é um fenômeno novo. Anda pelo mundo há séculos, deflagrando guerras civis e perseguições, minando democracias e criando regimes totalitários. Vai e volta. A boa notícia é justamente essa: a polarização pode ser eliminada.

Um estudo recente do Carnegie Endowment for International Peace, um think-tank de análise geopolítica, analisou a ascensão da polarização nociva no mundo entre 1900 e 2020 e concluiu que metade dos casos identificados (ou um total de 105 episódios) foram reduzidos ou eliminados por pelo menos cinco anos.

A má notícia é que 20% dos países falharam na tentativa de despolarizar, e metade retomou o problema uma década depois de encontrar a paz. Há que vigiar, portanto, e agir.

No final de 2016, o Fórum Europeu para Segurança Urbana (Efus, na sigla em inglês) definiu como urgente a adoção de medidas de prevenção à polarização e radicalização como parte das políticas de segurança pública. Não bastava só combater, mas prevenir. A decisão colocou as autoridades no centro das ações, com projetos-piloto lançados pela Europa, onde a memória da Segunda Guerra é mantida viva. Não custa lembrar que foi uma Alemanha polarizada o berço do nazismo, que teve sua fase de boicote a lojas de judeus antes do Holocausto.

"O motivo da divisão nos países é diferente, mas a dinâmica é a mesma. Tem sempre essa pressão para escolher um lado ou outro. Tudo fica urgente, e as pessoas sentem medo", diz Tim Dixon, empreendedor social e cofundador da More in Common, lançada para combater a polarização que cindiu o Reino Unido em torno do brexit e que já atua em cinco países.

A estratégia da More in Common, como o nome em inglês sugere, é encontrar mais pontos em comum em comunidades divididas. No Reino Unido, a causa capaz de unir os britânicos é a mudança climática, tema de iniciativas cujo real objetivo é frear as forças da polarização e, de quebra, o desgaste emocional dos confrontos.

Uma amiga, que mora fora do Brasil, ao perceber o silêncio de pessoas próximas e diante do radicalismo revelado por amigos de infância, adoeceu. "Será que coisas horríveis estão escondidas em pessoas que brincaram comigo? Esse silêncio é doloroso, e até meu corpo dói."

A resposta mais provável é não. Tem gente apenas seguindo a manada. "As pessoas nem sempre percebem que estão agindo de forma tribal", afirma Alison Goldsworthy, presidente da Accord, conselheira do Laboratório de Polarização e Mudança Social de Stanford e uma das âncoras do podcast "Changed My Mind".

Embora não seja a única força, a internet ajuda a disseminar o mal-estar ao nos mostrar a pior versão do lado de lá. "Nesse ambiente polarizado e comandado por robôs, fica mais difícil aceitar o outro, mas é um risco pequeno tentar encontrar um caminho para gostarmos mais uns dos outros", diz Goldsworthy, autora, com Laura Osborne e Alexandra Chesterfield, de "Poles Apart" (polos opostos).

O que os estudiosos vêm descobrindo é que a hostilidade crescente esconde questões mais profundas. Nos Estados Unidos, a More in Common encontrou conexões com a perda de identidade e a dificuldade de lidar com a globalização. "Nossas pesquisas mostram que, na briga entre valores cosmopolitas e valores patrióticos, os cosmopolitas, que acham bobagem defender a pátria, vão perder porque a maior parte das pessoas não se identificam com essa visão de mundo", diz Dixon.

É por isso que os políticos de extrema direita crescem, preenchendo a lacuna da identidade nacional perdida. "Daí nossa opção por construir um patriotismo cívico inclusivo, para que a extrema direita não defina a identidade nacional."

Como os radicais pioram o problema, é preciso trazer para a conversa as pessoas que não se identificam com nenhum lado. No Reino Unido, elas são os "cívicos pragmáticos", um grupo formado em grande proporção por mulheres, de meia-idade para cima, engajadas socialmente e que detestam conflito, segundo Dixon. "São as peças que mantêm a sociedade aglutinada."

Quem não conhece alguém assim? Pouco antes das eleições, eu vinha dialogando com uma mulher muito próxima e com visões diferentes das minhas. Ela prefere não falar sobre política. A pressão sobe. É das pessoas mais generosas que conheço. Está sempre ajudando os mais vulneráveis. Passou dos 60. Pensei nela quando Tim Dixon traçou o retrato do grupo que precisa retomar a fé no diálogo.

Foi dela que ouvi a seguinte reclamação: "É uma generalização desrespeitosa achar que todo o mundo da direita é bolsonarista. Bolsonaro é grotesco. No meu entorno, vejo uma maioria que não vota no PT porque quer outra história. Muitas pessoas da esquerda são agressivas na hora de conversar".

Para fugir da agressividade, as pessoas se abrigam em bolhas. Viver entre iguais pode trazer paz no curto prazo, mas nos empobrece intelectualmente. Katherine Philips, professora de liderança e ética da Escola de Negócios da Columbia, explica, no artigo "Como a diversidade nos deixa mais espertos", como falar para os seus pares reduz o esforço de uma pessoa para transmitir ideias. A tendência é se preparar melhor para chegar a um consenso com quem pensa diferente. Dá trabalho, mas melhora os argumentos.

Passei três semanas lendo e ouvindo especialistas em restauração de paz. Comecei na plataforma EDx o curso Bridging Differences (construindo pontes), no modo gratuito, para aprender mais sobre diálogo. Na véspera do segundo turno, saí de um grupo de WhatsApp da família.

Talvez o mais difícil no combate à polarização seja a parte que cabe a cada um de nós: suspender o julgamento, admitir que podemos estar errados e, o auge da iluminação, entender quando é preciso mudar de opinião.

Não julgar não significa concordar com ideias abomináveis. O desafio é não reduzir a pessoa que pensa diferente a uma caricatura. Essa dica eu peguei no curso da EDx, que, entre técnicas para conversas difíceis e exercícios de autocrítica, deixa um alerta: não tente se conectar com pessoas que ameacem a sua segurança.

Para não aderir à desumanização é preciso admitir que o espectro político adversário não é feito só de radicais. Uma pesquisa da More in Common feita em 2019 com 2.100 americanos revelou que democratas e republicanos —as forças políticas antagônicas nos Estados Unidos— nutriam ideias imprecisas sobre o outro lado. Ambos esperavam que mais da metade dos oponentes defendessem visões extremistas. Os extremistas não passavam de 30%.

Quanto a mudar de opinião, não faltam exemplos. No podcast "Changed My Mind", ouvi o depoimento de Aimen Dean, ex-especialista em bombas da Al Qaeda que se tornou espião do serviço secreto britânico, o MI6. Com a palavra, Dean: ‘O extremismo no contexto muçulmano resulta de uma sociedade altamente polarizada. Está ligado a uma guerra civil, não a uma guerra religiosa contra o Ocidente". Na entrevista, de maio de 2020, Dean explicou como entrou e saiu dessa.

"Eu não acordei um dia pensando: serei terrorista. Você é levado pelos eventos", disse. Sua radicalização começou com teorias conspiratórias e a sedutora proposta de lutar "no exército de Deus" e terminou, em 1998, quando os ataques a duas embaixadas americanas na África (Quênia e Tanzânia) mataram 224 pessoas —quase uma centena eram muçulmanos. A tragédia acordou Dean.

Eu voltei para o grupo de WhatsApp do qual havia saído. Como jornalista, confesso ter dificuldades para aceitar que me ignorem como fonte de temas que conheço bem. Talvez, para essa frustração, a solução seja mais simples que desradicalizar um jihadista. Despolarizar não passa por concordar com o que o outro pensa, mas, como diz o ativista internacional John Powell, "já é bastante ser visto, ouvido e compreendido. É muito próximo de ser amado".

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