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Camila Crumo

Obra investiga formação de religiões afro-brasileiras e ataques de evangélicos

Reginaldo Prandi aponta resistência de candomblé e umbanda em meio a demonização de entidades e intolerância religiosa

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Camila Crumo

Mestre em sociologia pela USP

[RESUMO] "Brasil Africano", coletânea que sintetiza a produção intelectual do sociólogo Reginaldo Prandi nos últimos 50 anos, oferece um panorama abrangente das mutações das religiões de matriz africana no Brasil. A obra explora, além do sincretismo com a doutrina católica e a perseguição por igrejas neopentecostais, os fatores culturais, geográficos e socioeconômicos que moldaram o culto de orixás no país e produziram um cenário que combina flexibilidade e resistência, mudança e estabilidade e abandono e memória.

Que caminhos levam um pesquisador a escolher o tema ao qual dedicará a maior parte da sua vida? Como é feita a seleção —e a própria construção— de um objeto de "sucesso"?

A sociologia ensina que nossas escolhas são condicionadas por muito mais fatores que sonha nosso vão individualismo. Não bastasse isso, cada novo passo, por mais planejado que seja, traz consigo um universo de repercussões imprevistas, gerando aquilo que Max Weber chamou de paradoxo das consequências. São por essas encruzilhadas da incerteza que caminha a mudança. Mesmo quando a oferenda funciona e o pai de santo consegue trazer de volta, em sete dias, aquele amor de outrora, a impermanência é a única constante.

Imagens no terreiro de umbanda Cansuá de Preto Manoel do Congo, na Vila Prudente, em São Paulo - Rubens Cavallari - 23.set.21/Folhapress

O mesmo é verdadeiro para as instituições, entre as quais as religiões. A despeito de geralmente se promoverem como bastiões imutáveis da tradição, elas não são imunes às transformações sociais e às inflexões da história.

Tais mudanças, que se impõem sem serem convidadas e em torno das quais a vida se ajusta, são exatamente o fio condutor de "Brasil Africano: Deuses, Sacerdotes, Seguidores" (Arché). A coletânea de Reginaldo Prandi reúne artigos sobre as religiões afro-brasileiras que evidenciam as transformações sofridas tanto pelo autor quanto por seu objeto de estudo nas últimas cinco décadas.

Ainda em seu início, a própria carreira de Prandi foi marcada por uma mudança inesperada de planos. É verdade que o tema religião aparecia em suas investigações ocasionalmente. Porém, foi somente após ter tido extraviada sua mala repleta de documentos, artigos e livros que juntara nos Estados Unidos para produzir uma tese de livre-docência sobre os efeitos da pesquisa eleitoral no processo democrático que Prandi resolveu se dedicar novamente às religiões afro-brasileiras.

Em um paradoxo das consequências, 50 anos depois, somos brindados com esse livro que é uma espécie de resumo dessa impremeditada trajetória de pesquisa.

A obra pode ser apreciada tanto de forma fragmentada quanto conjunta, como um mosaico. Não é necessária uma leitura linear para compreender os capítulos que entregam detalhes ricos sobre os ritos dos terreiros, as características dos orixás e as organizações hierárquicas das religiões afro-brasileiras, com ênfase no candomblé e na umbanda, vertentes que lograram ultrapassar barreiras raciais e regionais e hoje são praticadas em todo o país.

Contudo, o leitor que se dedicar à apreciação integral do livro será contemplado, ao final, com um panorama bastante completo das mudanças motivadas pelos múltiplos fatores que lapidaram tais religiões e seus ritos em solo brasileiro.

Usualmente, o sincretismo com os santos da Igreja Católica é a primeira ideia que nos ocorre ao pensar nas metamorfoses às quais as religiões africanas foram submetidas aqui. Para poder manter o culto aos seus orixás e ser parte de uma sociedade dominada pela doutrina católica, os negros escravizados associaram suas entidades aos santos católicos —conexão que, como assinalado no livro, foi facilitada pela imensa variedade de santos aos quais os fiéis podem recorrer para rogar por objetivos específicos, de forma semelhante à da relação dos devotos e seus orixás.

Prandi, no entanto, evidencia diversos outros fatores socioeconômicos, culturais e até mesmo geográficos que, agindo em conjunto com a dominação religiosa, contribuíram para a constante remodelação do culto dos orixás no Brasil.

O primeiro desses fatores é a própria mudança territorial. Na África, as entidades ligavam-se diretamente aos espaços e objetos naturais sobre os quais tinham domínio. No novo continente, as conexões geográficas e ocupações de origem perderam o sentido, o que foi agravado, mais modernamente, pelo avanço da urbanização e da industrialização.

Assim, nos conta Prandi, alguns orixás de rio, por exemplo, mudaram de especialidade e ficaram restritos à caça; outros foram suprimidos, e ainda outros mudaram o objeto natural ao qual respondiam, como o caso da famosa Iemanjá, conhecida aqui por ser rainha do mar, mas que originalmente seria uma deusa de rio.

O rompimento dos laços familiares é assinalado como outro fator importante na reorganização interna dessas religiões. Originalmente, o candomblé tem sua estrutura hierárquica baseada na das famílias extensas iorubás.

No Brasil, apesar de persistir a noção de que o terreiro pertence a seu fundador, o comando tendeu a ficar a cargo de mulheres negras libertas ou forras, não sendo mais prerrogativa do homem chefe da família extensa. Além disso, a separação dos membros das famílias reuniu, aqui, diversos orixás dentro de um único terreiro, algo que não ocorria nas comunidades iorubás, onde cada família cultuava um único orixá. Ou seja, no Brasil, a cada novo membro de um terreiro, um altar para o orixá do recém-chegado lhe era acrescentado.

Das transformações modernas, Prandi destaca as aglutinações que se formaram em torno da umbanda, culto que foi um dos principais responsáveis pela popularização das religiões afro-brasileiras. A umbanda nasce da interação entre candomblé, religiões indígenas, kardecismo e catolicismo. Seus rituais e crenças são fruto de uma bricolagem de entidades, ritos e lógicas dessas quatro vertentes, uma montagem que fez com que ela fosse celebrada, por muito tempo, como a religião "verdadeiramente" brasileira.

Nessa composição, as entidades cultuadas englobam orixás africanos e outros representantes das culturas regionais de diversas partes do Brasil, como os caboclos (entidades indígenas), os marinheiros e os baianos, ao passo que conceitos cristãos de moralidade, que dividem o mundo entre "bem" e "mal", se somam à noção de caridade, tão cara ao kardecismo.

Com preceitos morais alinhados aos dos cristãos, a umbanda foi inicialmente encarada como uma religião "do bem", conquistando, assim, um espectro mais amplo de praticantes. Há, no livro, provas de que sua rápida expansão por todo o país levou pesquisadores da religião a acreditar, à época, que ela se tornaria a religião majoritária do Brasil, tomando o espaço do catolicismo, que já dava sinais de crise.

Nessa esteira, o candomblé passou a também cair na graça dos brasileiros. Gradativamente, foi se transformando de religião de resistência, praticada quase exclusivamente por pretos, em religião popular, agregando negros e brancos, inicialmente de camadas sociais baixas, mas, posteriormente, de camadas médias e altas.

Diferentemente do que se previa, no entanto, as religiões afro-brasileiras logo passaram a encolher, como mostraram os sucessivos Censos. Prandi menciona o contraste organizacional como um dos fatores que influenciaram a competição entre religiões afro-brasileiras e evangélicas pela mesma fatia da sociedade e no interior de um mercado religioso em expansão.

Enquanto as denominações evangélicas modernas estabeleceram uma estrutura empresarial, com canais de comunicação, planos de expansão e representação política, os terreiros, em geral, se mantiveram como pequenas empresas familiares, muito ligadas à presença do fundador, que é também sua autoridade máxima. Assim, as igrejas evangélicas conseguiram se tornar religiões de massa, ao passo que as religiões afro-brasileiras permaneceram apegadas às tradições rituais que as mantêm como culto de pequenas comunidades.

Prandi salienta ainda outro fator que passou a desequilibrar a balança da competição religiosa: a perseguição às religiões afro-brasileiras como projeto de expansão das igrejas neopentecostais. Nessa cruzada, a associação entre entidades como Exu e Pombagira e o demônio foi reforçada e instrumentalizado como arma religiosa. Responsabilizadas por todo o mal do mundo, essas entidades se tornaram personagens frequentemente "interpelados", "interrogados" e "expulsos" nos cultos evangélicos.

A consequência da demonização de entidades das religiões de orixás é, inevitavelmente, a intolerância religiosa, que só vem se agravando nos últimos anos, como mostram diversos levantamentos.

Com relação a esse triste fardo arrastado ao longo de toda a história dessas religiões no país, o que mudou foi a fonte da repressão que, como Prandi nos conta ao longo da obra, inicialmente foi promovida pela Igreja Católica, posteriormente (em especial durante a ditadura) pela própria polícia e, atualmente, por lideranças evangélicas e fiéis dispostos a vencer a concorrência religiosa por meio da violência, do preconceito e da estigmatização.

Apesar disso, as religiões afro-brasileiras resistem e, como se pode depreender da leitura, continuarão mudando enquanto estiverem vivas sem, no entanto, mudar completamente. Talvez seja esse aspecto que torna o estudo das religiões afro-brasileiras tão fascinante: o fato de unirem flexibilidade e resistência, mudança e estabilidade, abandono e memória.

Ainda que muito se tenha discutido sobre elas, haverá sempre algo a ser investigado, alguma inovação disfarçada de tradição. Por isso, mais que documentar a produção de Prandi nos últimos 50 anos e mapear a dinâmica social das religiões afro-brasileiras, "Brasil Africano" é um convite instigante para continuarmos seguindo as pistas deixadas na trilha da mudança religiosa.

Brasil Africano: Deuses, Sacerdotes, Seguidores

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