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ataque à democracia

Releia texto de 1995 de Otavio Frias Filho sobre Brasília, atacada agora

Artigo 'Brasília, urgente' falava na época sobre uma crise de identidade e transformações vividas pela capital federal

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São Paulo

Publicado originalmente em 25 de maio de 1995, na seção Opinião, o texto "Brasília, urgente", de Otavio Frias Filho, ganha novos sentidos após a invasão dos Três Poderes por golpistas, no domingo passado (8).

Mentor do Projeto Folha e diretor de Redação do jornal até sua morte, em 21 de agosto de 2018, Frias Filho fala de uma Brasília em crise de identidade, que foi desqualificada como obra de arte. Relembra, inclusive, quando o escritor francês André Malraux (1901-1976) imagina como a cidade daria belas ruínas.

Durante os ataques do último domingo, manifestantes golpistas quebraram vidros, danificaram obras de arte, destruíram móveis, rasgaram documentos e arrancaram fios de edificações da praça dos Três Poderes, entre outras ações.

Palácio do Planalto na última segunda-feira (9), um dia depois do ataque de golpistas
Palácio do Planalto na última segunda-feira (9), um dia depois do ataque de golpistas - Ueslei Marcelino/Reuters

Há uma crise em Brasília. Os sinais ainda são esparsos e pouco visíveis, mas a coisa está para eclodir a qualquer momento. Quem passou recentemente por Brasília percebeu algo de soturno, perturbador, no mormaço pesado do ar.

Tudo começou com a visita de um antropólogo gringo que se meteu a atacar a cidade de Niemeyer. Nunca ninguém ousara defender Brasília como cidade, mas aquela foi, parece, a primeira vez que alguém tinha o topete de desqualificá-la como obra de arte.

Desde então só cresce o número de pessoas que acham Brasília não só inabitável, mas medonha. Suas propriedades sociológicas se transmitiram à estética e ela se mostra acadêmica, insípida, decadente. O stalinismo de Niemeyer, encoberto pela lírica bossa nova, irrompe a olho nu.

Cedo ou tarde, Brasília teria de enfrentar o teste definitivo: como manter a identidade de uma arquitetura que revoga a própria ideia de identidade, como preservar uma cidade futurista? Esse o paradoxo de Malraux, quando conjecturou sobre que belas ruínas Brasília daria.

A profecia se cumpre, a própria cidade viva, real, sabota o plano piloto agora também no sentido arquitetônico, além do demográfico. Fiel a sua única tradição —o frenesi imobiliário— Brasília está coalhada de prédios pós-modernos prestes a funcionar.

A ideia é desfigurar. Já que Brasília não pode ser erradicada, já que recuar a capital para o Rio é capricho que não está ao alcance nem mesmo do chefão Roberto Marinho, o negócio é destruí-la "in loco", sob colunas dóricas e arcos mussolinianos. Morte ao moderno, urram os prédios recentes.

Collor, que levou a política e a economia brasileiras ao estágio pós-moderno, introduziu o pós-modernismo também na arquitetura local, por intermédio de dois antigos companheiros de farra que até hoje dominam o panorama imobiliário da cidade.

Uma besteira pós-moderna passa batido na balbúrdia, por exemplo, de São Paulo, mas em Brasília ela é um tapa na cara, uma ofensa aos sentidos, tão grave quanto revestir uma catedral de parangolés, como pintar um bigode na Pietá de Michelangelo.

Só compreende Brasília quem a toma como síntese de uma época em que quase unificamos o original e o cosmopolita no interior da nossa cultura. Foi o tempo de Guimarães Rosa, das bienais, de João Cabral e da poesia concreta, do Centro Popular de Cultura, do cinema novo, foi o ápice de Nelson Rodrigues.

Se houve uma Renascença brasileira foi nesse curto período, fim dos 50 e começo dos 60, em que prevaleceu uma trêmula aliança entre interno e externo, folclore e vanguarda, erudito e popular, litoral e sertão, quando se esboçava, afinal, uma unidade estilística no país.

O ciclo militar abortou essa unidade, mostrou que ela era fantasiosa e reinstalou o antagonismo entre civilização e barbárie. Mantida em formol burocrático, Brasília ficou uma alucinação a prefigurar a harmonia nunca realizada, enquanto o país mergulhava no kitsch psicodélico, subversivo e ditatorial.

Brasília pode ser o marco da nossa desilusão, isso apenas a nobilita como arte. Está na base da endemia inflacionária que até hoje tentamos debelar, mas a arquitetura não tem nada a ver com o pato.

A cidade é o testemunho do que fracassamos em ser. Deveria ser respeitada como ex-utopia e pós-relíquia, esplendidamente moderna, produto da invenção humana, pois o Pão de Açúcar está ali por acaso, mas Brasília não. Brasília fomos nós.

Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho

Diretor de Redação

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