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Gabriel Feltran

Lula ainda não despertou para a contrarrevolução dos jagunços

Paulo Arantes está certo ao relacionar política e violência e criticar guerra contra grupos armados na Amazônia

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Gabriel Feltran

Professor titular da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e diretor de pesquisa no CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Científica da França). Autor, entre outros livros, de "Stolen Cars: a Journey Through São Paulo's Urban Conflict" e "Irmãos: uma História do PCC"

[RESUMO] A linha de poder que emanava das elites tradicionais, alcançava as polícias e os justiceiros e controlava os ladrões e pretos revoltados se rompeu, sustenta antropólogo, em um cenário de multiplicação de facções que controlam armas, mercados ilegais e territórios. Lula tem como inimigo o totalitarismo que brota da politização dos jagunços, hoje entranhados nos grandes negócios e na grande política, mas parece não ter entendido o alerta de Paulo Arantes: a política no Brasil se rebaixou à violência.

Parece bom dormir tarde e acordar tarde. Eu, infelizmente, não sei o que é isso. Desde moleque, durmo cedo e meus olhos se abrem às seis da manhã, sem despertador. A essa hora, leio as notícias.

Ontem, li a entrevista recente do Paulo Arantes à Folha, pelo celular mesmo. O filósofo analisa ali os dilemas do governo Lula frente ao cenário radical em que vivemos. Ele nota que o presidente não tem um projeto claro, mas seu governo importa por adiar o pior. É "redução de danos", ele diz.

Termino de ler e rolo as mensagens no celular ainda pensativo. Meu amigo Evandro Cruz Silva, escritor e sociólogo negro, tinha me mandado um texto sobre o assalto de que foi vítima nesses dias em Salvador. Um menino de pele retinta apontou um 38 ao seu rosto e levou seu celular, sua mochila e seu relógio. O texto é sensível, autobiográfico. A questão de Evandro é política: universitários negros como ele, vindos das periferias, conseguiriam representar os interesses de outros pretos, mais pobres, inscritos no mundo do crime das favelas? O assalto fazia crer que não.

Mais notícias pelo celular: uma colega do Rio Grande do Norte explica que o Sindicato do Crime, uma facção local, queimou ônibus e carros simultaneamente em 15 cidades do estado. A facção reivindica os atentados como resposta às condições indignas da população carcerária. Pensei comigo: "Me parecem protestos políticos, radicalmente violentos, como aconteceu em maio de 2006 em São Paulo ou em Minas uns anos depois".

O Sindicato do Crime, talvez, representaria melhor, em sua revolta contra o sistema, o menino negro que roubou Evandro? O governo Lula representaria a mim e a Evandro quando envia a Força Nacional ao Rio Grande do Norte?

Ainda pelo celular, um jornalista me pergunta sobre o PCC, garimpo e madeira ilegal na Amazônia. "Há uma questão política aí, você concorda com o Paulo Arantes?" Respondo com este texto: se a solução aventada por governistas for uma guerra aos grupos armados que controlam mercados ilegais na Amazônia, comandada pelas nossas forças de segurança, estamos lascados. Repetiremos na floresta o mesmo que fizemos nas periferias urbanas.

Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami registrado em operação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) - Alan Chaves - 25.fev.23/AFP

Abro então, no celular, minha agenda do dia. Reunião no Ministério do Interior da França, a pauta é a reconfiguração do tráfico de cocaína na Europa. Faço cálculos mentais da quantidade de dinheiro que está sendo injetada na economia por esse mercado transnacional. São centenas de bilhões de dólares, distribuídos desigualmente pelo mundo todo.

Sobra um pouco para o revólver calibre 38 que Evandro viu em Salvador e para as pistolas automáticas nas mãos dos rebelados do Rio Grande do Norte, de São Paulo e de Minas. Sobra ainda para os fuzis dos milicianos do Rio de Janeiro, amigos de policiais que extorquem outros traficantes e rebelados, pilhando também os orçamentos da Segurança.

Seis e quinze da manhã. Lembro-me de um delegado com quem conversei, em uma pesquisa. Ele dizia que que, pelos baixos salários, era esperado que, por vezes, os praças acabassem cedendo a aceitar propinas. Os salários deveriam ser maiores. Pensei comigo: "Ele dá uma justificativa econômica e racional para a corrupção, defendendo direitos para combatê-la". Policiais seriam apenas cidadãos querendo melhorar de vida em uma ordem social que lhes parece adversa.

Na frase seguinte, entretanto, o mesmo delegado usou o termo "vagabundo" para falar do ladrão que um policial havia prendido. Esse já não seria um cidadão querendo melhorar de vida em uma ordem social que lhe é adversa.

Os empreendedores —da cocaína, de empresas legais, de fundos públicos, tanto faz— sabem que a vida fica melhor com dinheiro. Dá inclusive para comprar armas e se organizar. Uns ladrões fundaram o Sindicato do Crime, outros, o PCC, outros, a 'Ndrangheta e outros, os cartéis. Com dinheiro e armas na mão, policiais também se organizaram em sindicatos, carreiras políticas e milícias. Não estamos vendo que grupos armados controlam territórios cada vez maiores no Brasil? Que facções criminais e milícias decidem quem vive ou morre por ali?

Nada mais político que controlar armas e mercados, seja nas periferias ou na Amazônia. Há poder político emanando de facções, milícias e polícias corrompidas. Esse poder tem hoje muito dinheiro. Territórios controlados diretamente por armas —a Amazônia inclusive— têm ofertado enorme acumulação e o que ela produz já desafia os governos locais.

Os ideais de mundo de milicianos e faccionados não são democráticos nem republicanos. Mas sabemos, não é de hoje, que policiais estudam direito e que ladrões têm advogados cada vez melhores. Esses homens todos, uns vindo de baixo e outros de cima, falam agora de grandes negócios e da grande política. Suas diferentes sociedades secretas, criminais, partidárias ou ecumênicas estão no jogo político central. Seu poder não me parece estar hoje sob o controle do Executivo.

Lula está desperto para isso? Reeditar o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) não parece chegar perto do problema real.

Estamos diante de uma reestruturação das estruturas de poder? Ou sempre foi assim? Bom, o corporativismo policial-jurídico-empresarial corrompido é, desde sempre, contra a República e os direitos humanos. Nesse corporativismo de gênero, classe e raça, não há uma comunidade de cidadãos a construir. Há uma guerra dos cidadãos (eles mesmos) contra esses pretos todos (e os que os representam). Que fiquem em seus lugares, não nos perturbem.

O problema é que esses pretos e os jagunços já não aceitam esses termos para a guerra. A política de Lula foi nunca falar de segurança, nunca ter tido projeto de controle da violência estatal. O que parece novo, no entanto, é que o centro do poder político tenha se deslocado para a revisão estrutural do papel do Estado.

Agora, a violência é um problema central na política. Perdendo o monopólio da força, o Estado garantidor de direitos some. Mas tentar usar a força estatal realmente existente hoje para recuperá-lo é quase tão temerário quanto.

O dia já raiou, Lula, já vemos as coisas nitidamente. Rompeu-se a linha de poder que emanava das elites econômicas tradicionais e controlava as polícias, que por sua vez controlavam o justiceiro, que então controlava os pretos mais revoltados e os ladrões.

Todos eles se organizaram com dinheiro e armas suficientes autonomamente. Os antes perfeitamente controlados pela violência de capangas das elites estabelecidas, hoje, são capazes de produzir revoltas simultâneas em 15 cidades ao mesmo tempo, em 27 estados do país. Os jagunços que os combatem são, hoje, também vereadores, deputados estaduais, senadores e governadores de extrema direita. São empresários da segurança privada. Controlam ainda as armas do Estado.

Essas forças, armadas, foram Presidência da República ontem, irmanadas em um projeto totalitário. O inimigo de Lula, que vemos chegando pelas notícias, é esse totalitarismo que brota da acumulação ilegal, da corrupção, dessa politização dos jagunços e das facções, dessas armas.

Seis e meia, respondi pelo celular: "Mano, o Paulo Arantes está certo". Se servir para segurar essa contrarrevolução social e econômica, mais parecida com a iraniana do que pensamos, o governo Lula terá feito seu papel. Mas, para isso, terá que entender que a área de Segurança é central, porque é a que maneja a violência estatal.

Infelizmente, o que se anunciava já havia tempos parece estar se consolidando: a extrema direita totalitária é hoje mais forte que o bolsonarismo e se articulará a ele apenas e tão somente se houver interesse eleitoral. Pior: embora saibamos que o governo Lula não esteja compreendendo a gravidade do que acontece no país, temos que apoiar fortemente quaisquer de suas iniciativas que pareçam reduzir danos. Mais que isso, temos que acordá-lo para elas.

Paulo Arantes faz isto: um paralelo entre o que está acontecendo na Amazônia e o que acontece nas quebradas pelo Brasil afora, a guerra às drogas como paradigma. O filósofo falava de política e começa a falar de violência, porque a política se rebaixou à violência.

Lula ainda parece estar dormindo. Aqueles que deveriam despertá-lo parecem não querer incomodá-lo. Talvez seja mesmo papel do intelectual, mas Lula nunca gostou muito de intelectuais. Mesmo para a emergente classe média negra, presente no governo, esses temas parecem não estar claros, até porque são temas que vêm da favela para o centro.

Tudo se passa como se seu principal adversário político, o totalitarismo, não estivesse sendo gestado justamente nos orçamentos da Segurança desse governo, entre outras coisas pelo tipo de relação que ele produz com a administração política da força. Não se nota que a área da Segurança é a área da administração estatal da violência, onde o jogo político se joga mais pesadamente hoje? Paulo Arantes, nesse sentido, sente o mesmo que Evandro Cruz: algo se rompeu na República tupiniquim, e política hoje tem a ver com violência, com polícia, com milícia, com meninos armados.

Ainda são 6h50 da manhã quando abro o Twitter. O primeiro vídeo que me aparece é o de um policial negro fardado, com uma arma pesada, enquadrando sozinho um homem preto de chinelo, bermuda e camiseta. O homem está meio descontrolado, talvez bêbado, e eles discutem. O policial olha para ele em posição intimidadora, mas o homem não para de gesticular e tenta segurar seu braço.

Da arma do policial, ouvimos quatro disparos, diretamente voltados aos pés do homem negro. O corpo preto então cai por terra, se contorce. A cena se dá em praça pública, passantes assistem ao que acontece, consentem. O policial se afasta, sua atitude corporal parece dizer que ele sente que seu trabalho —manter a ordem por ali— já foi feito. O totalitarismo é isso, a violência crua como produtora de ordem legítima.

Vai dar sete horas. Nessa manhã do governo Lula, alguém já está acordado? Apago o celular e vou para a luta, porque o dia vai ser longo.

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