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Bruno Bioni e Rafael Zanatta

Órgão regulador é o elefante na sala do debate sobre plataformas digitais

A questão não é mais regular ou não, mas desenhar autoridade que garanta comprometimento de empresas com a democracia

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Bruno Bioni

Doutor em direito pela USP e diretor do Data Privacy Brasil

Rafael Zanatta

Doutor em ciência ambiental pela USP e diretor do Data Privacy Brasil

[RESUMO] O debate complexo sobre a regulação de plataformas digitais avança para um terreno ainda não conhecido, em que simplificações, como a mudança do regime de responsabilidade civil do Marco Civil da Internet, pouco ajudam. A definição de competências de uma autoridade que induza uma nova governança do setor é o grande elefante da sala, mas esse é um investimento essencial para que a circulação de informações mediada por algoritmos possa seguir valores democráticos.

A regulação de plataformas está definitivamente na agenda republicana brasileira. Se, inicialmente, a resposta do governo federal ao 8 de Janeiro foi uma proposta atropelada de medida provisória, o consenso firmado pelos três Poderes, visível em evento realizado na FGV (Fundação Getulio Vargas) no Rio de Janeiro, diz respeito a um projeto de lei sobre o tema com enfoque no devido processo e em obrigações das plataformas de remover conteúdos de natureza ilícita ou que promovam condutas severas e intensas.

Nenhum país possui uma receita do que fazer. Em Paris, no encontro da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) realizado em fevereiro, Lula afirmou o interesse político do governo em liderar uma discussão global.

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João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secom (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), lê carta de Lula na conferência Internet for Trust, realizada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em Paris - Marie Etechegoyen - 22.mar.23/Unesco

Um dos pontos em aberto, amplamente discutido no encontro da capital francesa, é sobre quem faria essa futura lei pegar. A experiência brasileira com outros marcos legais sobre tecnologia, a exemplo do Marco Civil da Internet, de 2014, e a Lei Geral de Proteção de Dados, de 2018, nos alerta que essa é uma questão central.

Em 2016, a regulamentação do Marco Civil da Internet buscou um caminho arrojado. A ensaiada cooperação entre o Comitê Gestor da Internet e as autoridades de defesa do consumidor, telecomunicações e da concorrência preservaria, entre outras coisas, "o caráter público e irrestrito do acesso à internet" para o "pleno exercício da cidadania em meios digitais", com respeito à "pluralidade e à diversidade". Na prática, quase dez anos depois, essa cooperação de quatro pontas falhou ou, ao menos, foi tímida na contenção da desinformação, do discurso de ódio e da corrosão da democracia.

Em 2018, a Lei de Dados foi aprovada, mas sem a sua capitã: a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados). Apenas no final de 2020, houve a sua instalação e, além de tudo, em um formato precário. Isso foi corrigido dois anos depois, quando a autoridade foi convertida em autarquia e, assim, se tornou funcional e financeiramente independente.

Como resultado desse ciclo, alongado indevidamente por quase cinco anos —período entre a aprovação da lei e o pleno funcionamento do seu órgão regulador—, o Brasil ainda patina na criação e na implementação de uma política pública efetiva de proteção de dados.

Apesar dos inúmeros percalços e atrasos, a ANPD possui alguns modelos de inspiração nítidos, como o Escritório do Comissário de Informação do Reino Unido, o Garantidor da Proteção de Dados Pessoais da Itália ou a Agência Espanhola de Proteção de Dados.

Não é novidade pensar em uma autoridade capaz de garantir a aplicação dos direitos de proteção de dados pessoais, e as ideias sobre como uma agência desse tipo poderia funcionar foram formuladas no fim da década de 1960.

Já o debate sobre a regulação de plataformas é complexo, porque o problema da viralização de conteúdo com alto potencial de rasgar o tecido social passa por um conjunto de pactuações com grandes aplicações de internet no que diz respeito a suas técnicas de perfilamento e impulsionamento de conteúdo por algoritmos, capacidades organizacionais internas e escolhas sobre como aplicar suas próprias políticas de comunidade, ampliando a transparência e a responsabilização.

Não se trata de terreno conhecido, como a regulação de telecomunicações e suas metas de universalização e acesso econômico a serviços com preços justos. Tampouco estamos diante de regulação social baseada em conceitos específicos de direitos coletivos, apesar do esforço de Lula ao afirmar que a integridade informacional seria uma espécie de direito coletivo.

Tudo parece altamente experimental, o que é agravado pela ausência de conhecimento científico sobre o tema e a grande pressão para que uma autoridade reguladora seja criada, mesmo que seja um órgão leve, como ressaltou o ministro da Justiça, Flávio Dino.

É preciso cautela na discussão do formato do órgão e quais serão suas atribuições para iniciar processos sancionatórios administrativos, bem como na definição de como uma dinâmica de corregulação poderia funcionar, mirando uma governança em rede público-privada. Acadêmicos, jornalistas, ativistas, cientistas, programadores, educadores e as próprias plataformas também são reguladores.

Fachada da sede do Twitter em San Francisco - Samantha Laurey - 4.nov.22/AFP

A modificação de comportamentos que se busca é complexa. Espera-se que plataformas assumam obrigações positivas de minimizar danos sociais produzidos pela disseminação de seus serviços, como a ampliação do ataque a minorias ou a disseminação de campanhas contra o processo eleitoral. Ao assumir essas obrigações, precisam atingir metas de redução de danos e mitigação de riscos previamente identificados.

Ao mesmo tempo, o desenho regulatório precisa estimular a cooperação e relações de confiança entre os regulados e outros atores, permitindo a abertura de informações que hoje são segredos de negócio, como ajustes finos em algoritmos de viralização ou metodologias que definem a relevância em sistemas automatizados de curadoria e indicação de conteúdo.

Binarismos e simplificações pouco ajudarão nessa tarefa, como a de apenas mudar o regime de responsabilidade civil do Marco Civil da Internet. Um órgão anêmico também será incapaz de estipular mudanças comportamentais aos principais agentes econômicos do mundo, as big techs.

A questão não é mais regular ou não regular, mas detalhar as capacidades de fiscalização, de cumprimento de metas e princípios, de auditoria, de sancionamento e de estímulo a uma regulação responsiva que busque virtudes e o comprometimento com valores democráticos por aqueles que exploram nossos dados e nossas subjetividades.

Porém, voltando ao início da reflexão inicial, quem dará ou induzirá esse passo de governança?

Esse é o grande elefante no meio da sala, o mesmo que está em outra proposta que deveria fazer parte do pacote regulatório da democracia digital. No final do ano passado, uma comissão de juristas concluiu um anteprojeto de lei sobre inteligência artificial, que também prevê a necessidade de um órgão regulador para fazer valer as regras do jogo. Dada a conexão entre as duas frentes legislativas, seria adequado o Executivo mapear as sobreposições desses futuros órgãos reguladores e otimizar —talvez até integradamente— não só as vindouras infraestruturas legais, mas também institucionais de fiscalização.

Esse é um investimento necessário para não perdermos mais uma década e que dados, informação e sua circulação na internet, mediada por algoritmos e inteligência artificial, estejam a favor da democracia.

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