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Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman

Maioria no Brasil valoriza mais intenção que resultado em questões éticas

Estudo mostra que 66% dos entrevistados julgam ações como certas ou erradas a partir de regras morais, como 'não matarás'

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Um trem, ao fundo, passando no trilho em uma floresta, com um papagaio em primeiro plano

Ilustração de João Montanaro Folhapress

Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Hélio Schwartsman

Colunista da Folha, foi editor de Opinião. Autor de "Pensando Bem…"

[RESUMO] Pesquisa sobre os posicionamentos éticos dos brasileiros aponta que a maioria da população é mais kantiana, julgando um comportamento como certo ou errado pela ação em si, que consequencialista, visão em que o desfecho dos atos é o que determina seu valor moral. Autores do estudo argumentam que um sistema ético não é intrinsecamente superior ao outro e, levados ao extremo, ambos geram situações absurdas, mas a inclinação dos brasileiros a valorizar mais a intenção que o resultado acaba por legitimar atitudes violentas e o populismo na política.

Um estudo inédito sobre posicionamentos éticos, surgido de uma conversa dos autores deste texto e executado pelo Instituto Locomotiva, mostrou que 66% dos brasileiros são predominantemente kantianos, enquanto 34% se pautam mais pelo consequencialismo.

Isso significa, muito resumidamente, que dois terços tendem a julgar uma ação como certa ou errada com base em princípios, enquanto o terço restante o faz tomando como critério as consequências dessa ação. Sim, estamos falando de filosofia, é complicado e, por isso, talvez seja melhor começar do começo.

Simplificando bastante as coisas, existem duas famílias de sistemas éticos. A primeira, que se pode chamar de deontológica, tem como expoentes clássicos o grego Platão (cerca de 429 a.C-347 a.C.) e o alemão Immanuel Kant (1724-1804).

Um trem, ao fundo, passando no trilho em uma floresta, com um papagaio em primeiro plano
Ilustração de João Montanaro - Folhapress

Para eles, são os princípios que importam. Valem incondicionalmente regras como "não matarás" ou "não mentirás", porque estão amparadas pela ideia de justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade meio metafísica.

Na outra ponta está o consequencialismo, defendido por pensadores como os britânicos Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Eles dizem que não existem princípios externos abstratos capazes de validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências que acarretam. Uma boa ação, assim, é a que engendra bons resultados.

No caso de Bentham, conhecido como o pai do utilitarismo, o que interessa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula "o maior bem para o maior número de pessoas".

Haveria ainda uma terceira família de sistemas éticos, a das éticas da virtude, a qual está bem na moda. Não é o caso, porém, de tratar dela neste artigo.

O problema, tanto com as éticas deontológicas quanto com as consequencialistas, é que, se levadas a ferro e fogo, geram paradoxos que desafiam nossas intuições e nosso senso de justiça. O dever de ser honesto com todos, por exemplo, nos obrigaria a revelar a um assassino o paradeiro de sua vítima.

O próprio Kant caiu nessa armadilha. Após ter sido provocado por Benjamin Constant, o filósofo de Königsberg publicou "Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Amor aos Homens", um texto bizarro, no qual confirmou que não temos o direito de mentir para ninguém, nem para celerados que ameacem nossa vida e a de nossos amigos.

Em um mundo kantiano, torturadores ficariam sem emprego por duas razões. Primeiro, por ser a tortura imoral, devendo ser banida; segundo, porque prisioneiros jamais mentiriam para seus interrogadores.

Ilustração para matéria da Ilustríssima sobre o posicionamento ético do brasileiro
Ilustração de João Montanaro - Folhapress

A situação dos consequencialistas não é muito mais confortável. Se tudo o que importa é produzir o maior bem possível para a maioria das pessoas, então o médico poderia matar o paciente saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pessoas que necessitam de transplante.

De forma análoga, maiorias poderiam escravizar minorias, se esse arranjo gerasse prazer para mais pessoas que o número de indivíduos reduzidos à servidão. Este último problema pode ser contornado atribuindo à dor um peso maior que ao prazer, mas, mesmo assim, é estranho sermos obrigados a recorrer a fórmulas matemáticas com um que de arbitrário para decidir essas questões.

O fato, inconteste, é que, em suas formulações mais radicais, ambas as matrizes éticas levam a absurdos. Pessoas de carne e osso costumam, portanto, pular de uma para a outra ao sabor das circunstâncias. Nada mostra isso melhor que a "trolleyology", os experimentos mentais envolvendo trens desgovernados e vítimas inocentes que já se tornaram uma subdisciplina da filosofia. Vejamos alguns exemplos.

Um trem desembestado se aproxima de um desvio controlável, que está aberto para o lado esquerdo. Poucos metros à frente, cinco homens conversam distraídos, de costas para a locomotiva; à direita, um homem dorme sobre os trilhos. Você vê tudo de uma plataforma suspensa, onde existe uma alavanca cujo acionamento desviaria o trem para a direita, poupando o quinteto, mas atingindo em cheio o dorminhoco. Você puxa a alavanca ou fica na sua? Se você pensa como a maioria, age.

Agora, considere que não existe alavanca: a única maneira de evitar a morte dos cinco é jogando um objeto extremamente pesado (mais pesado que você) na frente do trem, que tem um sensor que aciona os freios de emergência após colisões. Ao seu lado, na plataforma, está um indivíduo bariatricamente avantajado, cuja massa seria capaz de parar o trem. Você empurra esse homem obeso, que morreria no choque, ou fica na sua? Se você pensa como a maioria, não faz nada.

No primeiro exemplo, a maioria cede à lógica consequencialista. Sacrificar um para salvar cinco é algo que vale a pena. No segundo exemplo, contudo, o dilema é rigorosamente o mesmo. Um morre para salvar cinco. Por que, então, a maioria das pessoas opta pela inação?

Ilustração para matéria da Ilustríssima sobre o posicionamento ético do brasileiro
Ilustração de João Montanaro - Folhapress

Atirar uma pessoa plataforma abaixo é muito mais pessoal que puxar uma alavanca. Uma hipótese para explicar a diferença é que, enquanto o desvio do trem para a direita para salvar cinco pessoas tem, como efeito colateral indesejado, a morte do dorminhoco (doutrina do duplo efeito), empurrar o sujeito obeso é, inapelavelmente, um homicídio.

Assim, no segundo exemplo, prevalece a lógica deontológica do "não matarás". Há dezenas de variantes do problema, com desenhos e resultados muitas vezes surpreendentes.

Se a doutrina do duplo efeito é, de fato, a melhor explicação, poderíamos concluir que a maioria das pessoas pende para a deontologia, ainda que abrindo flancos para o consequencialismo quando a situação não envolve violações muito diretas aos princípios.

Uma visão bastante popular hoje em dia é que a ética deontológica, nessa variante mais aguada, sem os rigores kantianos, é mera racionalização do senso comum. Segundo esse raciocínio, que tem Joshua Greene, professor de psicologia de Harvard, como seu proponente mais famoso, os princípios éticos espontâneos são consequência das pressões evolucionárias que moldaram a cognição social humana.

Durante a maior parte da nossa história, dinâmicas mentais envolvendo alavancas e cálculos de custo-benefício feitos a partir de abstrações não possuíam valor, ao contrário da vida do inocente condenado à morte pelas nossas mãos. "A lógica para distinguir entre formas pessoais e impessoais de dano é principalmente evolucionária" (Greene, 2008, p. 43).

O famoso jurista Cass Sunstein considera que a ética deontológica é uma espécie de heurística. Inspirado pela distinção entre sistema um e sistema dois, de Kahneman e Tversky, ele propõe a tese de que abordagens deontológicas seriam "rápidas e frugais" e, tal como nas dinâmicas decisórias descritas pela famosa dupla de economistas comportamentais, dariam lugar a raciocínios consequencialistas, conforme o sujeito tivesse tempo e o problema fosse formatado de maneira correspondente.

"As reações rápidas que emergem do sistema 1 funcionam bem na maioria das vezes, mas também podem levar a erros sistemáticos. Intuições deontológicas têm essencialmente a mesma base que essas reações" (Sunstein, 2013, p. 17).

Greene e Sunstein são exemplos do entendimento atualmente dominante, que pressupõe que o consequencialismo leva a menos vieses e mais virtude que a ética deontológica. Há quem discorde e não é apenas Kant.

Um dos contrapontos surgem da constatação de que psicopatas tendem a ser mais consequencialistas. "Devemos nos preocupar com o favorecimento de um método que equaliza a qualidade dos juízos morais a respostas que, na prática, são primariamente endossadas pelas pessoas reconhecidamente menos morais (por terem traços como insensibilidade e tendência à manipulação). Adotar esse método pode levar à inferência contraintuitiva de que os julgamentos 'corretos' são aqueles feitos pelas pessoas mais imorais" (Bartels e Pizarro, 2011, p. 158).

Outro contraponto é a demonstração de que pessoas que internalizam princípios deontológicos tendem a mentir menos e a agir mais corretamente em diversas situações. "Na vida real, a deontologia tem mais chances de levar a comportamentos morais" (Xu e Ma, 2015, p. 8).

Os autores argumentam que a superioridade da ética consequencialista demonstrada por alguns experimentos é um artefato criado pelo uso de dilemas de laboratório, envolvendo mortes e outros temas existencialmente complexos, que pouco têm a ver com os nossos desafios cotidianos.

No dia a dia, princípios sólidos e simples funcionariam melhor, como emerge da distinção observada entre os impactos sociais daqueles que incorporam princípios morais e os psicopatas, com a sua sanha característica pela maximização utilitária. Como tende a ser o caso em debates longevos, ambas as correntes têm sua dose de razão.

Menos importante que tomar partido é mapear se e como essas tendências permeiam a vida dos brasileiros. Essa foi a premissa de um estudo que desenhamos e que foi levado a campo pela divisão de neurociências do Instituto Locomotiva.

O perfil moral brasileiro

Participaram do estudo 1.700 pessoas, distribuídas de acordo com os critérios sociodemográficos do IBGE, com grau de confiança de 95% e margem de erro de 2%. O experimento foi conduzido a partir de uma plataforma digital, o Instituto Locomotiva, proprietária de neurociências e dinâmicas comportamentais. Os testes aconteceram em outubro de 2022, ao passo que os resultados foram produzidos nos dois meses subsequentes. Trata-se da primeira iniciativa do tipo conduzida no país, e os resultados são inéditos.

Uma de suas baterias contou com um teste de concordância com frases criadas para discriminar aqueles que acreditam que os fins justificam os meios (consequencialistas) daqueles para os quais a intenção possui papel fundamental. Por exemplo: "O comportamento da pessoa que compete agressivamente no mercado financeiro para acumular dinheiro e assim fazer caridade é moralmente aceitável".

De acordo com essa questão, 66% dos brasileiros são predominantemente kantianos, acreditando que "aquilo que determina um comportamento como certo ou errado é o princípio nuclearizado na ação, e não o seu resultado". Os 34% restantes são mais utilitaristas/consequencialistas.

Diferenças de gênero ou raça nas variações

A distribuição varia em termos etários, sendo a ética kantiana mais prevalente entre as pessoas com mais de 40 anos. Nossa interpretação é que as responsabilidades familiares favorecem a incorporação de heurísticas morais simples e amplas, que ajudam a transmitir modelos de conduta por meio da identificação projetiva e da educação.

Outro fator digno de nota é que a hegemonia e a intensidade das inclinações deontológicas variam conforme o tema. As pessoas são mais afeitas a esses princípios em questões que tratam de cooperação (68%), seguidas das de educação dos filhos (60%) e de assuntos financeiros (58%).

A despeito dessa ordem, vale notar que 45% opõem-se veementemente à ideia de que "é correto ameaçar e colocar os filhos de castigo caso não passem na prova, mesmo sabendo que você não irá fazê-lo, só para estimulá-los a estudar mais, o que de fato precisam". Isso revela que o rechaço ao consequencialismo é particularmente intenso nesse domínio da vida moral, ainda que posicionamentos deontológicos sejam mais comuns quando o assunto é cooperação.

Em outra bateria, investigamos o grau de otimismo dos brasileiros. Confirmando resultados anteriores, apenas 26% dos participantes veem o mundo como aprazível. A taxa dos que o veem como totalmente hostil é de 35%.

Um fato interessante é que as pessoas que se identificam com princípios deontológicos enxergam o mundo como mais adverso que seus pares consequencialistas.

Da mesma forma, o Brasil também é visto como um país mais hostil pelos kantianos. Nossa interpretação é que essas pessoas sentem que seus princípios são renegados por outras e se ressentem disso.

Perfil moral e inclinação à violência

Tais resultados sugerem que a maioria dos brasileiros seria tolerante a eventuais consequências negativas de intenções positivas. Isso leva à seguinte questão: será que a violência interpessoal é predominantemente motivada por impulsos altruístas?

A pergunta parte da hipótese de que motivos supostamente nobres poderiam legitimar parte da violência interpessoal brasileira (a qual se distingue da motivada por roubos, tráfico etc.), sob a premissa de que esse tipo de comportamento tende a ser socialmente aceito. Já a hipótese contrária seria que a defesa de interesses pessoais é mais motivadora.

Quando submetemos os participantes à escolha forçada entre tomar satisfação na rua para (1) defender outrem ou por (2) motivos pessoais, obtemos que 66% dizem estar dispostos a entrar em conflito com um estranho pela primeira razão e 34% pela segunda.

Em paralelo, observamos que 61% acreditam que tomar atitudes de confronto em defesa de algo/alguém é correto e que 23% consideram isso extremamente correto (um sinal de disposição extremista?).

Oitenta e um por cento das pessoas acham que é correto tomar atitudes violentas para defender outra pessoa, e mais de 70% julgam o mesmo em relação a seus ideais. Do mais, 38% têm posicionamentos extremos em relação ao primeiro caso, e 27% em relação ao segundo. A legitimação do confronto é mais comum nas pessoas que se identificam com a moral kantiana.

Esses resultados indicam que motivações altruístas representam fortes gatilhos para o confronto. Sua legitimação tende a ser reforçada pela noção de que as intenções relevam o impacto gerado. Assim, atos violentos em defesa de outrem, de um ideal, do país ou de grupos de interesse são vistos como éticos por quem os perpetra e pelo seu entorno, o que precisa ser levado em consideração nas teorizações sobre a violência interpessoal no Brasil.

Deontologia e consequencialismo no Brasil

Ao se fiar a desfechos e não a princípios, o consequencialismo exige maior esforço cognitivo que a deontologia, tornando-se mais popular conforme o padrão educacional se eleva. Isso não significa que seja intrinsecamente positivo ou superior, conforme já argumentado, mas tampouco seria correto dizer que o debate inteiro se reduz ao gosto do freguês.

Há ao menos um aspecto que parece pairar acima de qualquer relativismo: seria desejável que a lógica dos impactos e desfechos se impusesse sobre o populismo, na criação e defesa de políticas públicas, como argumentado pelo jurista Noel Semple e por tantas outras pessoas.

O populismo, em essência, é um feixe de ideologias que separa o mundo de maneira dicotômica. São as elites financeiras e despudoradas que querem injetar chips controladores no braço dos cidadãos de bem, os burocratas corruptos contra o povo trabalhador, as pessoas de Deus contra as do Diabo e tantas outras oposições que, mesmo quando partem de raciocínios de alguma forma alinhados à realidade, terminam em narrativas distorcidas para angariar o apoio da maioria.

Pois essa ideologia que tanto mal já fez ao Brasil invariavelmente apela para princípios deontológicos para inibir qualquer intenção pensante. "É da natureza humana ser hétero e ter filhos", "posto que é errado usar drogas, não faz sentido discutir a descriminalização", "a vida é sagrada; aborto nem em caso de estupro" e por aí vai.

É compreensível que parte da população tenha essas intuições, mas é lastimoso ver legisladores dando formato ao arcabouço legal do país sem qualquer discussão mais séria sobre as consequências das posições que defendem. De peruca circense ou não.

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