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Daniel Hirata e Carolina Christoph Grillo

Tese de migração de criminosos para o Rio não tem respaldo

Polícias, responsáveis por 35% da letalidade violenta na região metropolitana, insistem em práticas de extermínio

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Daniel Hirata

Coordenador do Geni-UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense)

Carolina Christoph Grillo

Coordenadora do Geni-UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense)

[RESUMO] Depois da decisão do STF que restringiu a realização de operações policiais durante a pandemia, autoridades vem difundindo a narrativa de que o Rio de Janeiro se tornou um parque de diversões para criminosos de outros estados. Autores argumentam que essa alegação não é compatível com as dinâmicas interestaduais conhecidas das facções criminosas e que as polícias empregam uma lógica da chantagem para resistir à submissão aos limites da lei.

O Rio de Janeiro se tornou um parque de diversões para criminosos de outros estados, alegaram policiais fluminenses à imprensa como justificativa para a operação policial que resultou em 13 mortes no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no mês passado. O mesmo argumento justificou duas das cinco maiores chacinas policiais da história do Rio de Janeiro: uma operação policial que terminou com ao menos 23 mortos no bairro da Penha em maio de 2022 e outra realizada dois meses depois no Complexo do Alemão, na qual morreram 18 pessoas.

Sobre o ocorrido em São Gonçalo, Cláudio Castro (PL) afirmou que "não adianta vir de outro estado para cá que será neutralizado, como foram estes aqui", se referindo à morte do suposto líder do Comando Vermelho no Pará e seus associados. Essa ação policial no Complexo do Salgueiro, comemorada pelo governador, fez com que unidades básicas de saúde e oito escolas tivessem as suas atividades suspensas, deixando quase 2.000 crianças sem aula.

Policiais durante operação no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 21.jul.22/Folhapress

Além de justificar chacinas e impactar os serviços de educação e saúde para milhares de pessoas, a prisão e a morte de lideranças de facções de outros estados tem sido apresentada como evidência da crescente migração de criminosos para o Rio de Janeiro.

No entanto, existe de fato uma onda migratória de criminosos em direção ao Rio de Janeiro? Seria muito difícil demonstrar isso, afinal, a circulação interestadual de pessoas procuradas pela polícia acontece, evidentemente, de forma velada. As forças policiais alegam que seus setores de inteligência têm percebido tal movimentação mas que, devido à natureza sensível dessas informações, não é possível divulgá-las.

É pegar ou largar. Neste caso, pegou: essa narrativa já circula com muita força, mesmo sem que existam meios para verificar a sua veracidade. Uma reportagem recente do G1 abordou a prisão ou a morte de 60 criminosos de outros estados pelas polícias nos últimos dois anos no estado.

Do ponto de vista de quem pesquisa há anos as dinâmicas criminais no Brasil, é necessário, por dever de ofício, questionar a validade desse tipo de informação, buscar compreender se existe, de fato, uma onda migratória de criminosos e, se houver, qual é a sua motivação. Afinal, 60 criminosos de outros estados presos ou mortos no Rio de Janeiro em dois anos é muito ou pouco em comparação com anos anteriores?

Segundo o ISP-RJ (Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro), em 2021 e 2022, as polícias fluminenses realizaram ao todo 90.005 prisões e mataram 2.686 pessoas no estado. Considerando esses dados, esperaríamos um número até maior de pessoas presas ou mortas vindas de outros estados.

Digamos que descobríssemos que 60 pessoas presas ou mortas é de fato muito em comparação com as prisões desse tipo em anos anteriores: ainda assim, esse dado poderia refletir mudanças não no perfil dos criminosos, mas no desempenho das polícias que, salutarmente, estariam atuando em cooperação interestadual. É possível que, face a um processo já antigo de nacionalização das organizações criminosas, as forças policiais estejam finalmente aprendendo a atuar articuladamente para enfrentar esses grupos, o que é muito bem-vindo.

Sabemos que a circulação de criminosos entre estados ocorre há muitas décadas, seja como fruto de alianças ou como fuga para territórios onde alguns ainda não são procurados. Sabemos também que essa circulação foi intensificada em razão da expansão do PCC e do CV para outros estados, nos quais estabeleceram alianças e rivalidades com grupos locais.

Vale ainda lembrar que o assassinato do empresário Jorge Rafaat em 2016 foi considerado um marco da quebra da aliança entre CV e PCC, que se desdobrou em uma guerra sangrenta e em massacres em presídios no Norte e e no Nordeste, impulsionando o recorde histórico de homicídios no Brasil em 2017. Essa guerra poderia, quem sabe, ter motivado a fuga de criminosos derrotados em seus estados para territórios com domínio estável do PCC ou CV. O que se observou nos últimos anos, porém, foram sinais nítidos de arrefecimento desse conflito e uma redução nacional dos homicídios, com retorno ao patamar pré-guerra multilocal entre as duas maiores facções do país.

A narrativa apresentada pelas autoridades fluminenses de que o Rio virou um parque de diversões para criminosos nos últimos dois anos, portanto, simplesmente não bate com a cronologia do que é conhecido sobre as dinâmicas interestaduais das facções.

Desde os anos 2000, o Rio de Janeiro vem exportando para vários estados não apenas criminosos como também uma forma específica de organização em facções, sendo perfeitamente esperado que essa circulação ocorra em via de mão dupla. Contudo, considerando que os anos mais críticos das guerras de expansão já passaram, não faz muito sentido que esse refluxo ocorra justo agora, quando há um arrefecimento da disputa nacional entre grupos armados.

O que está em curso nos últimos dois anos é o ponto culminante de um processo de estatização das mortes, em que as forças policiais se tornaram responsáveis por 35% da letalidade violenta na Região Metropolitana do Rio de Janeiro —isso sim é uma bandeira vermelha.

Em maio do ano passado, quando ocorreu a chacina que resultou em ao menos 23 mortes na Penha, representantes das polícias argumentaram que a operação tinha como objetivo prender criminosos de outros estados e que esses haviam se mudado para o estado motivados pela decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu a realização de operações enquanto durasse a pandemia. Foi a primeira vez que as autoridades fluminenses anunciaram explicitamente a tese completa de que o Rio de Janeiro tinha se transformado em um parque de diversões por culpa do STF, que estaria impedindo a polícia de combater o crime organizado.

Mas como entender esse suposto estímulo se a decisão só foi respeitada —e apenas parcialmente— nos primeiros quatro meses? Depois, o governo do estado simplesmente desobedeceu o STF, realizando operações como se não houvesse restrição alguma. Cumpre destacar que, mesmo durante a efetiva vigência da decisão, os crimes contra o patrimônio e contra a vida mantiveram a sua trajetória anterior de queda, mostrando que a limitação da brutalidade policial não se opõe ao controle do crime.

O estado tem oferecido resistência a muitas das demais decisões do STF que buscam estabelecer o controle democrático da atividade policial e preservar vidas, como a instalação de câmeras corporais nos policiais, a presença de ambulâncias durante operações e a proteção das unidades de saúde e educação.

Nas redes sociais, representantes importantes das polícias argumentam que proteger o perímetro escolar incentivaria os criminosos a se refugiar em escolas durante operações policiais, mas por que criminosos fugiriam para uma área protegida? Foi sob esse argumento que, em 5 de abril, dois veículos blindados do Bope cercaram um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública) na Maré, interrompendo as aulas de 7.491 estudantes, segundo a Secretaria Municipal de Educação.

Ao se negarem a respeitar toda e qualquer restrição ao uso da força, as polícias usam a lógica da chantagem de que não haverá enfrentamento ao crime caso elas sejam submetidas aos limites da lei. O controle do crime no Brasil, no entanto, não pode ser um vetor de descontrole das polícias e de justificativa para a sua atuação violenta e ilegal: não pode impulsionar mortes de jovens negros moradores de favelas.

Não apenas porque viola o princípio basilar do Estado moderno, segundo o qual o uso da força estatal deve ser limitado pela lei, mas porque é ineficaz insistir em práticas de extermínio, quando sabemos que há um contingente pronto para substituir tanto a ponta pobre e precária da cadeia produtiva do superlucrativo mercado de drogas quanto as posições dos altos escalões.

Assim, temos que decidir se queremos mesmo forças policiais responsáveis, atuando dentro da legalidade e, sob hipótese alguma, com permissão para perpetrar chacinas nas quais julgam e executam pessoas por fora dos seus papéis institucionais. Ser conivente com essa ilegalidade em nome do combate ao crime organizado nunca foi uma medida eficaz, além de ter como efeito principal o aprofundamento da corrosão de nossa frágil democracia.

Já faz anos que insistimos, inclusive nesta Folha, que o enfrentamento à brutalidade policial não é só um questão de segurança pública, mas, sobretudo, da proteção do arremedo institucional democrático que foi construído a duras penas. Temos que decidir se nos contentaremos com a moral de conveniência em que o controle das forças policiais é desejável em alguns casos e não desejável em outros, a depender do bairro, da cor de pele e da origem social das vítimas, ou se nos guiaremos por critérios de igualdade, de eficácia e de defesa da democracia.

Não nos parece que o Rio tenha se transformado em um parque de diversão para criminosos, mas o fato é que o parquinho está pegando fogo e, se quisermos apagá-lo, precisaremos enfrentar o desafio do controle democrático da atividade policial. Essa é a questão em disputa hoje.

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