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Como Italo Calvino, amante dos clássicos que chega aos 100, se tornou um clássico

Escritor italiano se inspirou nas tradições para produzir obra atemporal que se renova a cada livro

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ilustração de mulher e criançã levantando um lençol estampado

"Giufà e la Statua di Gesso", ilustração de Fabian Negrin inspirada na obra do escritor Italo Calvino, que integra a exposição 'Calvino Ilustrado' Mondadori/Reprodução

Walter Porto
Walter Porto

Editor de Livros e colunista do Painel das Letras

[RESUMO] Autor de um célebre estudo sobre livros clássicos, Italo Calvino, que completaria cem anos neste domingo (15), tornou-se ele mesmo um cânone da literatura do século 20, criador de vasta obra desassossegada que mergulhou na tradição e nas narrativas orais para subverter a prosa em chave pós-moderna, mas sem abdicar do encantamento da ficção.

"Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer." Essa é a citação mais lembrada de "Por que Ler os Clássicos", um dos mais célebres ensaios de Italo Calvino. Mas quem conhece bem o texto sabe que essa não é a única definição que ele oferece ali.

O italiano rabisca mais 13 verbetes curtos, tentando capturar o que transforma um livro num clássico, mas reconhecendo que são insuficientes —e torna essa insuficiência a base de seu argumento. Clássicos são inesgotáveis e indefiníveis.

"A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos", escreve por fim o autor de uma das literaturas mais vivas do século 20, que agora completa cem anos.

E, bem, ler Italo Calvino é certamente melhor que não ler Italo Calvino.

O escritor Italo Calvino, que faria cem anos
O escritor italiano Italo Calvino, que faria cem anos neste domingo, dia 15 - Acervo pessoal

"Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos"

A obra de Calvino, nascido no dia 15 de outubro de 1923 em Santiago de las Vegas, no subúrbio da capital cubana onde seus pais passavam uma temporada de pesquisa, ostenta esse desassossego com orgulho.

O autor costuma surpreender quem o acompanha livro após livro, como ele mesmo brinca no início de "Se um Viajante numa Noite de Inverno", uma de suas obras de maturidade, publicada seis anos antes de sua morte em 1985, aos 61 anos.

Em uma escolha narrativa particularmente transgressora, ele elege como protagonista "você" —isso mesmo, o leitor ou a leitora de sua própria obra—, que vive as aventuras fantásticas de ler um bom livro.

"Agora, sim, você está pronto para devorar as primeiras linhas da primeira página. Está preparado para reconhecer o estilo inconfundível do autor", anuncia ele no primeiro capítulo, optando pelo gênero masculino numa escolha forçosa à maneira como a obra é construída.

"Não, você não o está reconhecendo. Mas, pensando bem, quem afirmou que este autor tem estilo inconfundível? Pelo contrário: sabe-se que é um autor que muda muito de um livro para outro. E é justamente nessas mudanças que se pode reconhecê-lo."

"Calvino experimentou de tudo", aponta Maurício Santana Dias, tradutor e um dos maiores especialistas brasileiros em literatura italiana, responsável pelo posfácio da nova edição especial da obra. "Encontrou soluções formais que criaram um estilo e um modo de pensar próprio. É essa força que faz com que continue sendo lido no mundo todo."

"Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo…’ e nunca ‘Estou lendo…’"

Entre reedições e exemplares frescos da chapa, a prosa de Calvino chega agora à sua integralidade no mercado brasileiro para marcar o centenário. É um projeto, coordenado pela editora Camila Berto, que coroa décadas de investimento da Companhia das Letras no autor.

Surgem pela primeira vez nas livrarias daqui a coletânea inaugural de contos do italiano, "Por Último Vem o Corvo", de 1949, e "Um Otimista na América", seu relato de viagem pelos Estados Unidos
na virada para a década de 1960.

Acaba de sair também um apanhado de 101 entrevistas do autor, material em que se discute fartamente seu projeto literário, intitulada "Nasci na América" —uma investigação biográfica que deve ser completada nos próximos anos com dois volumes de correspondências do autor.

Um deles é uma seleção ampla de cartas, capitaneada por Santana Dias, que incluirá textos que não foram revelados nem em edições estrangeiras, conforme adianta o publisher da Companhia das Letras, Otávio Marques da Costa. Outro compilado, mais afetivo, vai trazer seus escritos à mulher, a argentina Esther Judith Singer, apelidada de Chichita.

A partir da próxima quinta-feira (19), também poderá ser visitada em São Paulo uma exposição de 61 trabalhos de artistas plásticos, entre nomes consagrados que ilustraram obras do autor e os vencedores de um concurso promovido pela Feira do Livro Infantil de Bolonha, responsável por conceber a mostra.

"Sua obra é uma enorme fonte de inspiração visual", diz Elena Pasoli, a diretora da feira italiana, em entrevista. "Ele mesmo dizia que, ao escrever, via imagens diante de si e as transformava em ficção. Seus romances são imaginativos e propícios à ilustração, por isso tantos artistas magníficos se interessam por ele."

A exposição "Calvino Ilustrado" chega como fruto de uma parceria entre o Instituto Emília e o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo e integra a Semana da Língua Italiana no Mundo, rodando o planeta depois de sair do evento que é vértice da literatura infantojuvenil na Europa.

"A fantasia de Calvino se exerce dentro de uma moldura que está sempre entre a geometria e o delírio livre do pensamento", elabora Santana Dias, professor doutor da Universidade de São Paulo.

Não é à toa que seja um escritor tão querido por arquitetos —foi amigo próximo de Renzo Piano, responsável pelo projeto do Centro Pompidou, em Paris—, que costumam citar seu livro "As Cidades Invisíveis" a torto e a direito em estudos acadêmicos.

A obra de 1972, um exercício incansável de imaginação, inventa dezenas de comunidades fantásticas —algumas inviáveis pelas leis da física, outras incoerências geográficas, outras utopias comportamentais
incompatíveis com o mundo real—, usando como gancho um relato de viagem do explorador Marco Polo ao imperador Kublai Khan.

"Ele sempre dialogou com uma tradição oral que o levava para o maravilhoso", continua o crítico literário da USP. "Isso surge de uma tensão com o poder da palavra, sua capacidade mágica de expressar a relação da humanidade com o mundo."

"Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele reconhece logo o seu lugar na genealogia"

Em seu recém-publicado "Escrita em Movimento", uma reflexão sobre a criação literária, Noemi Jaffe lembra como o conceito de originalidade se imbrica no de origem. Para ser verdadeiramente original, mirando o futuro, é preciso saltar do passado. Em outras palavras, a escritora defende no livro "repensar a ideia de novo e considerar que, para que seja possível criar o novo, é essencial recorrer ao passado, às origens".

É algo cristalino na obra do italiano. "Calvino retrabalha diversos arquétipos adaptados a uma realidade atual, voltado mais ao político que ao mitológico", afirma a autora.

Ressalte-se que estamos falando de um dos mais dedicados conhecedores do folclore contado de boca em boca em seu país, cuja pesquisa extensiva resultou, por exemplo, na organização das "Fábulas Italianas".

Remexer a história da literatura levou Calvino a colher material para narrativas que funcionam quase como contos de fadas, caso de sua festejada trilogia "O Visconde Partido ao Meio", "O Barão nas Árvores" e "O Cavaleiro Inexistente", novelas que o projetaram na década de 1950.

"Aqui ele consegue algo raro, que é falar do terrível, da submissão violenta do fascismo, de forma bem-humorada", argumenta Jaffe. "São livros de forte carga ideológica, com uma convicção política no humanitarismo, sem desbancar no panfletário."

Não é só daí que ele tira as sementes de seus textos. O autor sempre enxergou um equilíbrio fino entre as artes e as ciências naturais, algo que colaborou para que sua escrita prezasse pela clareza e limpidez.
Seu pai, Mario, era agrônomo, e sua mãe, Eva, botânica e professora, enquanto o próprio Calvino estudou ciências agrárias antes de largar tudo mergulhar na literatura.

Em "Todas as Cosmicômicas", que também ganham uma edição em capa dura após um tempo fora de catálogo, seus textos afloram de raízes científicas, de verbetes técnicos duros que se transformam, como encanto, em ficções engraçadíssimas.

Qualquer leitura de Calvino permite ver que se lida com um brincalhão —e com alguém que
leva muito a sério o que faz.

Entre os movimentos literários a que o autor se aproximou durante sua carreira desacomodada estava o francês Oulipo, que se traduzia por "oficina de literatura potencial" e propunha espécies de jogos matemáticos com a linguagem. A ideia, grosso modo, era estabelecer parâmetros rígidos à escrita para, quem sabe, fazer brotar novos significados.

"Calvino dialoga com essa prosa pós-moderna nos anos 1970 e subverte o romance, mas não perde nunca o encantamento", aponta Marques da Costa, editor da Companhia.

"Se ele foi influenciado pelo Oulipo, sobreviveu porque soube fazer esse jogo sem perder a força narrativa que muitos daqueles autores perderam em formas estéreis. Por isso, grande parte deles não é mais editada, enquanto Calvino se inseriu no panteão da prosa moderna."

"Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe"

Calvino se doutorou em literatura na Universidade de Turim com uma tese sobre Joseph Conrad, autor de "Coração das Trevas" e analisado em "Por que Ler os Clássicos".

Ao apresentar o polonês naturalizado britânico com um elogio a um projeto literário que traz o "sentido de uma integração com o mundo conquistada na vida prática" —Conrad passou 20 anos navegando e 30 anos escrevendo, no feliz resumo do italiano—, Calvino também oferece um espelho torto de si mesmo.

O italiano esteve imerso no front da Segunda Guerra Mundial e participou, de peito aberto, de uma brigada que resistia a Mussolini, apoiado por uma família mergulhada no ativismo. Foi algo que certamente alimentou ficções de verve antimilitarista, como "O Cavaleiro Inexistente" e os contos de "A Entrada na Guerra", outro inédito que chega agora ao Brasil, mas nunca o transformou em escritor militante.

"Ele escapou da morte por pouco", lembra Santana Dias. "Na volta, se filia ao Partido Comunista Italiano, onde milita intensamente, mas não nos romances. Sempre teve claro que o espaço da ficção não podia se submeter à lógica da militância."

Seu primeiro romance, já em 1947, é "A Trilha dos Ninhos de Aranha", no qual a guerra é vista pelos olhos de uma criança, uma leitura lúdica "que rompe com o pacto da literatura de guerra que é feita pelo testemunho documental", diz o crítico.

O escritor se afasta do partidão em 1956, quando a Hungria é invadida pela União Soviética, e escreve em seguida duas obras mais politizadas que representam aproximações mais evidentes a suas experiências na militância: a sátira "A Especulação Imobiliária", narrativa de um escritor em crise, e "O Dia de um Escrutinador", considerada sua despedida do romance realista, em 1961.

Curioso que, naquele ensaio sobre Conrad que integra "Por que Ler os Clássicos", publicado pouco antes disso tudo, em 1954, ele passe tão de leve pela política, sem medir palavras, contudo, para apontar o "feroz espírito reacionário" do escritor.

É que hoje o britânico é apontado com frequência como um estandarte do colonialismo, alvo de críticas duras por seu retrato de uma viagem à África como uma penetração no "coração das trevas" —algo explorado a fundo, aliás, em lançamento quente da editora Fósforo, "Exterminem Todos os Malditos", do sueco Sven Lindqvist.

O texto de Calvino é de 70 anos atrás. Não fazia tanto tempo assim que Conrad tinha virado clássico.

"É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível"

É até divertido ler Calvino falando, lá em 1981, sobre a aparente desarticulação entre se concentrar num livro antigo, no silêncio monástico de casa, e lidar com o barulho do mundo que insiste em invadir os ouvidos.

"Ler os clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista." Imagine se ele conhecesse o TikTok.

A questão é que os livros persistem, e a leitura do próprio Calvino nunca deixou de ser popular. Marques da Costa, da Companhia das Letras, ressalta que editar sua obra completa é uma decisão comercial tanto quanto de prestígio, já que o autor segue lido até nas escolas.

"Calvino é um autor melhor que qualquer outro para inspirar jovens leitores, porque sua literatura impulsiona o interesse em ler outras coisas", diz Elena Fasoli, da Feira de Bolonha, contando ter voltado a obras que tinha lido na juventude e se surpreendido ao notar como tudo continua "absolutamente moderno".

O que faz pensar que talvez sejam as cidades invisíveis aquelas assentadas sobre as bases mais sólidas.

Este texto, como os leitores perspicazes puderam perceber, se entremeia de algumas das tentativas de Calvino para conceituar um clássico. Nem lá nem cá se pretendeu ser exaustivo. Quem quiser escolher uma citação favorita, fique à vontade, mas aqui terminamos. Depois, é só recomeçar.

"Toda releitura de um clássico", afinal, "é uma leitura de descoberta como a primeira".


Italo Calvino, 100

Lançamentos inéditos:

‘Por Último Vem o Corvo’ (1949), sua primeira coletânea de contos

‘A Entrada na Guerra’ (1954), três contos inspirados na experiência militar na juventude

‘Um Otimista na América’ (1959-1960), relato de viagem do autor aos Estados Unidos

‘Nasci na América...’, volume com 101 entrevistas

Novas edições:

‘Se um Viajante numa Noite de Inverno’ (1979), com novo posfácio de Maurício Santana Dias

‘Por que Ler os Clássicos’ (1991), com posfácio de Maria Cecília Gomes dos Reis

‘Todas as Cosmicômicas’ (1997), com ilustrações de Marcelo Cipis

Exposição:

‘Calvino Ilustrado’, no Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, de 19/10 a 15/12; abertura na quinta (19), às 19h, com Paolo Di Paolo e Maurício Santana Dias. De seg. a qui., das 9h às 13h e das 15h às 17h; sex., das 9h30 às 13h.

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