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12/09/2010 - 08h00

Letras explosivas

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MOACYR SCLIAR
DE SÃO PAULO

O SER HUMANO tem a capacidade de transformar aquilo que é primariamente uma função biológica, a reprodução, numa fonte de emoções e sentimentos que servem, por sua vez, de inspiração para manifestações artísticas, na música, na pintura, na literatura. O beijo, o ato sexual, o orgasmo foram o ponto de partida para grandes obras literárias. Mas será que isto vale para outras funções biológicas? Será que é possível compor uma canção, ou um poema, ou um ensaio sobre o prosaico ato de urinar? Ou sobre as funções intestinais?

Quando buscamos respostas para esta pergunta, ingressamos nos domínios da escatologia, palavra que em português tem, curiosamente, duplo sentido. De um lado significa o estudo dos excrementos; de outro, refere-se à abordagem teológica ou filosófica dos eventos que devem acontecer no fim dos tempos. Ambiguidade que o inglês evita usando duas palavras, "scatology" e "eschatology", respectivamente.

Mas a possível confusão que pode ocorrer em nossa língua não deixa de ser simbólica; sugere que muitas vezes é tênue a linha que separa o espiritual e o transcendente daquilo que é quase grosseiro. O grosseiro é, em primeiro lugar, fácil matéria-prima para anedotas, o humor escatológico, o "toilet humor" dos americanos.

Fezes e gases As anedotas costumam girar em torno de uma "dupla produção" do intestino grosso (e aí o qualificativo "grosso" é mais que apropriado): fezes e gases, ou flatos. Do anedotário popular o tema migrou para a literatura, e aparece já no século 5º a.C.: a peça teatral "As Nuvens", de Aristófanes, tem cômicas passagens sobre gases. Em "A História do Moleiro" ("The Miller's Tale"), de Geoffrey Chaucer, que data do século 14, o personagem Nicholas humilha o rival Absolom pondo o traseiro para fora da janela e soltando gases na cara deste.

Em "Gargantua e Pantagruel", de François Rabelais (c. 1494-1553), que aliás era médico, o gigante Pantagruel solta um sonoro flato que "fez a terra tremer". Deste gás malcheiroso surgem mais de 23 mil anõezinhos, prodígio que antecipa em vários séculos o realismo mágico.

Franklin Já Benjamin Franklin (1706-90), um dos líderes da Revolução Americana e verdadeiro polímata --jornalista, escritor, editor e cientista conhecido por suas experiências com eletricidade--, optou pelo ensaio satírico. Em resposta a um pedido de artigos científicos feito pela Real Academia de Bruxelas, instituição que considerava, como outras similares, "pretensiosa", Franklin, então embaixador em Paris, escreveu, por volta de 1781, "A Letter to a Royal Academy" ("Carta a uma Real Academia"), sugerindo pesquisas no sentido de melhorar o cheiro da flatulência humana.

A carta, que nunca foi enviada, diz, entre outras coisas: "É fato universalmente reconhecido que, ao digerir o alimento, produz-se, nos intestinos dos seres humanos, uma grande quantidade de gases. Permitir que estes escapem e misturem-se ao ar atmosférico é usualmente ofensivo". Para obviar esse inconveniente, Franklin propõe que os cientistas estudem os gases intestinais e desenvolvam substâncias que, misturadas à comida ou aos molhos, tornem a flatulência "não apenas inofensiva, mas agradável".

Franklin distribuiu cópias impressas de seu ensaio a vários amigos, inclusive Joseph Priestley, químico famoso por seu estudo dos gases e que, portanto, deveria interessar-se pelo assunto. Após sua morte, o texto, conhecido como "Fart Proudly", ("Peide com orgulho"), foi convenientemente esquecido e depois recuperado; apareceu, em 1990, numa antologia organizada por Karl Japikse e publicada pela Enthea Press intitulada "Fart Proudly - Writings of Benjamin Franklin You Never Read in School" ("Peide com Orgulho - Escritos de Benjamin Franklin que Você Nunca Leu Na Escola").

Arte de peidar Trinta anos antes da carta de Franklin, em 1751, o francês Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut já havia publicado, sobre o tema da flatulência, um livro recentemente lançado no Brasil, em tradução de Bruno Feitler: "A Arte de Peidar" (ed. Phoebus). Tem como subtítulo: "Ensaio Teórico-Físico e Metódico para o Uso das Pessoas Constipadas, das Pessoas Graves e Austeras, das Senhoras Melancólicas e de Todos Aqueles que Insistem em Permanecer Escravos do Preconceito", e já começa com uma admoestação: "É vergonhoso, leitor, que, apesar de peidares desde sempre, ainda não saibas como fazê-lo [...]. Peidar é uma arte e, consequentemente, coisa útil à vida".

O autor define o que é peido (diferenciando-o do arroto), faz uma classificação dos peidos de acordo com sua musicalidade: peidos mudos, peidos plenivocais. E fala dos peidos ditongos, dos peidos femininos e dos peidos de pedreiro. Defende o flato como um instrumento civilizatório, educativo mesmo, capaz de colocar em seu lugar os inoportunos e os chatos: "Em um jantar, no salão, um peido no momento certo interrompe uma tagarelice".

Hurtaut, que tinha 32 anos quando publicou seu trabalho, era um homem culto, professor de latim e autor de vários livros sobre temas variados, incluindo um dicionário de homônimos da língua francesa. No estilo dos "Ensaios" de Montaigne (que, aliás, também abordou o tema em "Sobre a Força da Imaginação", de 1580), "A Arte de Peidar" conjuga o tom faceto com uma grande erudição.

Esta é também a marca distintiva de "It's a Gas - A Study of Flatulence" (Xenos Books), de Eric Rabkin e Eugene M. Silverman, o primeiro, doutor em filosofia, o segundo, médico. É um levantamento histórico, literário e também fisiológico da flatulência, com reproduções das obras de artistas famosos: Aubrey Beardsley, Pieter Brueghel, Hyeronimus Bosch, James Ensor.

Palco É possível levar ao palco a flatulência como arte; foi o que fez o flatulista ("farteur" ou "fartiste", em francês) Joseph Pujol (1857-1945). Pujol tinha um incrível controle da musculatura abdominal e do períneo, o que lhe permitia modular, por assim dizer, as emissões de gás. No começo, imitava instrumentos musicais, mas conseguia também, introduzindo uma ocarina no ânus, executar melodias como "O Sole Mio" e até a "Marselhesa" (o que deve ter revoltado os patriotas franceses).

Exibia-se no Moulin Rouge e seu público incluiu figuras famosas, como Eduardo, príncipe de Gales, Leopoldo 2º, rei da Bélgica, e Sigmund Freud. Pujol ficou conhecido como "Le Pétomane" (algo como "peidomaníaco") e inspirou livros, filmes e musicais. Mais: fez escola. Um de seus discípulos é o britânico Paul Oldfield, mais conhecido pelo nome artístico de Mr. Methane, o Sr. Metano, que deixou seu trabalho como ferroviário para se apresentar em shows.

Mas nem só de flatulência é feita a escatologia. Os resíduos sólidos também interessam a ficcionistas e pesquisadores. Exemplo é o grande escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), que, como Rabelais, tinha outra profissão além da literatura (era clérigo). Swift mostra aquilo que críticos classificaram como "visão excrementícia" em vários poemas.

Estudos Em termos de estudos com propósito mais, digamos, sérios, a bibliografia é grande. É conhecida a obra do americano John Bourke, "Scatologic Rites of All Nations", de 1891 ("Ritos Escatológicos de Todas as Nações, W.H. Lowdermilk). Bourke (1843-96) era militar e serviu com as tropas no oeste dos EUA, onde conviveu com tribos indígenas, observando seus costumes; de suas anotações nasceu o livro que teve como prefaciador ninguém menos que Freud.

Mais recentemente apareceram "Histoire de la Merde" (1978, ed. Christian Bourgois), de Dominique Laporte, que segue a linha da história cultural tão ao gosto dos franceses da Escola dos Anais; e "Merde - Excursions in Scientific, Cultural and Socio-Historical Coprology" ("Merda - excursões na coprologia científica, cultural e sócio-histórica", Random House), de Ralph A. Lewin, professor na Universidade da California (mas de biologia marinha; a área pode não ter muito a ver, mas vale o princípio da interdisciplinaridade).

O interesse científico no assunto talvez leve a rumos imprevistos. Recentemente a Folha noticiou que um novo tipo de automóvel foi lançado no Reino Unido: um VW New Beetle movido a biometano, gás extraído dos dejetos. Mr. Methane deve estar adorando.

 

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