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03/10/2010 - 08h00

Livro investiga história da polícia de São Paulo no século 19

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EUCLIDES SANTOS MENDES
DE SÃO PAULO

"A polícia paulista do final do século 19 nunca conseguiu cumprir a contento os projetos de controle social --afirmar que ela funcionou como 'braço armado do Estado' implica numa visão redutora e simplificada--; também ela não serviu como uma ferramenta dócil e eficiente a mando 'das elites'". Esta é uma das avaliações que faz o historiador André Rosemberg no livro "De Chumbo e Festim - Uma História da Polícia Paulista no Final do Império" (Edusp/Fapesp, 472 págs., R$ 58). Em entrevista ao caderno Ilustríssima, o autor comenta "a cultura da violência" na história brasileira e a relação ambígua da polícia com o movimento abolicionista.

Folha - Qual o papel do chumbo e do festim na relação da polícia com a sociedade paulista, no século 19?

André Rosemberg - O título do livro --"De Chumbo e Festim"-- funciona como uma metáfora que simboliza a ambivalência representada pela presença da polícia, em São Paulo, no final do século 19. Significa, de um lado, o papel de controle social, inerente à instituição que sustenta o "monopólio da violência legítima", parte fundante dos Estados modernos. De outro lado, aponta para uma instituição que tinha muitas dificuldades em fazer impor essas prerrogativas, seja por conta de uma aguda precariedade material, seja porque os interesses próprios da corporação, em seus vários níveis hierárquicos, limitavam uma ação eminentemente instrumental, conforme sugere a historiografia mais recente, aliada aos trabalhos etnográficos da sociologia da polícia.

Dito em outras palavras, a polícia paulista do final do século 19 nunca conseguiu cumprir a contento os projetos de controle social --afirmar que ela funcionou como "braço armado do Estado" implica numa visão redutora e simplificada--; também ela não serviu como uma ferramenta dócil e eficiente a mando "das elites". Ao contrário, ela contava com grandes espaços de autonomia funcional que ampliavam o leque de possibilidades relacionais entre a polícia (e os policiais) e a população nos seus vários estratos. Repressão e violência sem dúvida faziam parte desse repertório. Mas não só: negociação, arranjos, deferência e alguma legitimidade também.

Folha - Como a polícia da época lidava com a violência (inclusive a gerada por ela própria)?

André Rosemberg - O final do século 19 é marcado pelo ocaso da escravidão, instituição que pautou os fundamentos da sociedade brasileira em quase 400 anos. De acordo com alguns historiadores, essa divisão social tão hierarquizada, paternalista e personalista faz do Brasil uma sociedade culturalmente violenta. A polícia, portanto, inserida em tal contexto, reproduziria esses mesmos traços.

Por outro lado, ao menos formalmente, as instituições policiais nos Estados modernos --Brasil incluso-- funcionariam como o bastião que monopoliza a força física, impedindo seu emprego por mãos particulares. Dito de outro modo, a polícia está consubstanciada em (e deve proteger os) ideais liberais, isto é, deve zelar pela universalidade do regime legal e pela proteção de direitos individuais. Ora, a sociedade brasileira escravista estava assentada num paradoxo insolúvel: a de ser, ao mesmo tempo, uma monarquia constitucional fundada na escravidão, o que pressupunha que uma parcela da população estava desprovida de direitos. Assim, a polícia, em sua rotina diária, convivia com essa contradição.

A violência no contato com a população (principalmente a população pobre) era moeda corrente, sem dúvida. E pode ser considerada um reflexo de uma "cultura da violência". Mas, por outro lado, pelo fato de a polícia estar moldada em princípios legais e burocráticos, havia alguns mecanismos de contenção mais rigorosos do que aqueles que vigoravam num plano social mais amplo. Muitos policiais que agiam abusivamente ou com violência eram punidos regimentalmente, mesmo que a vítima fosse gente da arraia-miúda. Ao mesmo tempo, em outras ocasiões, a instituição acobertava e justificava os desmandos cometidos por seus agentes.

Folha - De que maneira esta instituição de controle social reagiu ao fim da escravidão e do Império?

André Rosemberg - A relação da polícia com o movimento abolicionista foi ambígua, uma vez que, nos estertores do regime escravista, a posição em que se colocavam as "pessoas gradas" --a favor ou contra a escravidão-- era bastante movediça. A historiografia recente mostra que, principalmente na década de 1880, em certos momentos, algumas autoridades policiais --delegados e subdelegados-- se aliavam aos abolicionistas numa posição antissenhorial. Já outras autoridades mantiveram sua postura prudencial e escravocrata.

Quanto aos policiais, pode-se dizer que se articulavam de acordo com os interesses mais imediatos. Podiam ser acusados de furar um comício abolicionista, para logo em seguida serem vistos saudando o célebre Luiz Gama, em uma homenagem póstuma. Muitos policiais recebiam gratificações quando recuperavam escravos fugidos e se aproveitavam das relações sociais que estabeleciam no dia a dia para localizá-los. Em outras ocasiões, a solidariedade comunitária se impunha ante os interesses mesquinhos e protegiam-se os prófugos do cativeiro.

Folha - Era possível a inserção de ex-escravos entre os policiais? Como a sociedade da época reagia a isso?

André Rosemberg - Na minha pesquisa, foi possível verificar que a polícia militarizada (a predecessora da Polícia Militar atual) sempre acolheu, em suas fileiras, prioritariamente, policiais brasileiros e não brancos (pardos, pretos, morenos, mulatos, fulas, de acordo com a designação oficial).

Estes últimos estavam sobrerrepresentados em relação à população geral, segundo os dados dos censos oficiais, que indicavam no Estado de São Paulo uma predominância de indivíduos brancos. Isso significa dizer que o Estado, por meio da polícia, funcionou como porta de entrada para uma população que, com o fim da escravidão e a chegada cada vez mais maciça do imigrante europeu (branco), passa a ser preterida no mercado de trabalho formal (principalmente no setor de serviços e da indústria).

Interessante notar que no início do período republicano a proporção de policiais não brancos aumenta ainda mais. Esse movimento pode denotar que, pela via da burocracia policial, os não brancos (e dentre eles, sem dúvida, muitos ex-escravos) tiveram acesso a um espaço de cidadania que antes lhes era obstado. Alguns, inclusive, aproveitaram as raras brechas abertas e galgaram postos hierárquicos, atingindo o oficialato e ascendendo, até mesmo economicamente, na escala social. Ainda que fossem atípicas, essas trajetórias levam a crer que a polícia militarizada, embora ausente em um cálculo consciente, mostrava-se mais "democrática" do que o próprio modelo republicano recém-instaurado.

Folha - O que diferencia a polícia paulista do final do século 19 da de hoje?

André Rosemberg - Essa é uma pergunta capciosa, pois não há resposta possível. A distância não permite comparações diretas, sem que o contexto geral esteja qualificado, ainda que a polícia, principalmente a Polícia Militar, seja afetuosamente ligada ao seu mito de origem.

De todo modo, como comparar a sociedade escravista do século 19 à sociedade atual, formalmente democrática? Entretanto, ambas convivem a seu modo com instituições policiais. Nesse sentido, a análise histórica serve como alerta de que os traços constitutivos corporativos e institucionais, as identidades policiais --tanto aquelas que são impingidas a partir de fora, como as que são criadas a partir de dentro-- e a "cultura" policial não devem ser naturalizados. Em outras palavras, não podemos considerá-los um atributo endêmico, imutável ou essencial à polícia --na base do "sempre foi assim e, por isso, sempre será assim".

Um olhar sob a perspectiva histórica indica que todas essas construções podem ser localizadas em sua genealogia e que, por isso, não são autoexplicativas. Um exemplo: a violência policial. Explicá-la como uma "herança cultural", um atributo teleológico, é o primeiro passo para a resignação. Ao contrário: deve-se tentar compreendê-la em cada contexto histórico, a partir das tramas, interesses, discursos e dinâmicas de poder que se desenham e se articulam.

 

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